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Classicismo monumental totalitário Sumário: O tempo da imposição de normas estéticas De movimento intelectual

a obrigação política. Condicionamento político. Estatização do nacionalismo

artístico. O Decreto n.º 1 da Primeira República. O apelo totalitário dos anos trinta: o pintor Severo Portela Júnior, Oliveira Salazar e um jornalista do Diá-

rio de Coimbra. Classicismos nacionais. Classicismo e arquitectura de poder.

Nacionalização do classicismo através da valorização das variantes neoclássicas. A nacionalização do classicismo russo através da valorização da época de Pedro

o Grande. Estilo pombalino. Ódio liberal ao estilo pombalino (o exemplo de

Teófilo Braga) e sua revalorização no Estado Novo. Recepção crítica da exposição Moderna Arquitectura Alemã (1941). Apreço de Albert Speer pela arquitectura pombalina. A Exposição do Mundo Português e a superação do modelo naciona- lizador oitocentista. Valorização da feição pombalina da arquitectura do Estado Novo por Élie Lambert (1948).

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A defesa intransigente de uma identidade artística nacional conduziu a tentativas de imposição de normas estéticas. Até ao fim do século XIX, as indicações revestem-se de um carácter benigno. Adquirem um arroubo exclusivista durante o neogarrettismo. E chegam a constituir uma obriga- ção do Estado nos regimes autoritários e totalitários. O que antes era um movimento liderado pelos intelectuais passa a ser gradualmente assumido pelos políticos. As propostas convertem-se em exigências.

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Condicionamento político

Desde que à arte foi concedida uma fundamentação e uma finalidade iden- titária, tornou-se um dever patriótico contribuir para a sua nacionalização. Se numa primeira fase isso significava «simplesmente» tornar mais portu-

guesa a arte, o Estado Novo, à semelhança de outros regimes autoritários

e totalitários, transformou o discurso de boas intenções num projecto de instrumentalização ideológica.

Embora de modo inconsequente, isso já se observa na Primeira Repú- blica. O preâmbulo do decreto que reorganizou os serviços artísticos e arqueológicos e as Escolas de Belas-Artes de Lisboa e do Porto elege o povo

como a raiz e o fim de toda a arte.[1] O legislador pretendeu criar condições

para que o povo acedesse facilmente à arte e, ao mesmo tempo, a arte correspondesse às necessidades educativas do Estado. Há um indisfarçado

1 Decreto n.º 1, de 29 de Maio de 1911, publicado no Diário do Governo, Lisboa, n.º 124, 29 de

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intuito de condicionamento no realce dado à «moralizadora acção política da arte, como educadora dos meios populares». A isto chama «nacionalizar a nossa arte».

Com o mesmo fito, o Governo reviu os conteúdos do ensino das belas-artes, a organização dos museus e até o regime de bolsas de viagem ao estrangeiro. A nacionalização da arte passaria pela procura da especifi- cidade portuguesa, que porém não é definida para lá do apreço pelo natu- ralismo e pelos conceitos de sinceridade e verdade. Os museus deveriam ser «padrões, tanto quanto possível, vivos, da nossa cultura e modo de ser típico, através dos tempos».

Nos anos trinta, o apelo tornou-se totalitário. Devia o novo regime controlar a actividade artística? As respostas dos artistas foram, em certos casos, mais veementemente afirmativas do que as dos políticos. Em 1936, o pintor Severo Portela Júnior reclamou «a formação duma nova mentalidade

artística […] sob a influência da acção disciplinadora do Estado».[2] Esta

vocação totalitária nunca se concretizou, ao contrário do que sucedeu na Alemanha nazi e na União Soviética, mas sustentou a última mutação do discurso patriótico. Os apelos artísticos em nome da Nação converteram-se em apelos artísticos em nome do Estado.

No discurso proferido em 25 de Junho de 1942, Oliveira Salazar consi- derou necessário e urgente «pôr a arte e a literatura ao serviço dos valores lusíadas. Para isso», lê-se no Diário de Coimbra, «devem uma e outra buscar nas fontes vivas da Nação - na sua história, na sua tradição, no seu modo de ser, na sua alma, enfim - o motivo e a inspiração da obra de beleza a realizar, - estranhas, portanto, às sugestões das coisas estrangeiras.» Con- cluindo, o presidente do Conselho pediu:

«Que, no redobrar de esforços exigidos por esta época de ressurgimento, se não desprendam (os intelectuais e os artistas) do que em nós é comandado pela natureza, ou pela história, ou pelas qualidades de inteligência e coração, para, sendo do nosso tempo, sermos da nossa terra.»

O jornalista glosou o pensamento de Salazar, mas extremou-o, dando assim o último (e fatal) passo:

2 Portela Júnior, Arte Antiga, Arte Moderna. Lisboa, 1936, pp. 80-81. Cf. o nosso trabalho O

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«O apelo de Salazar não pode ter outro sentido. Ele fê-lo numa hora bem grave para a Europa e para o Mundo, numa hora em que a guerra ameaça destruir a arte e a cultura das nações. Importa, por isso, que os artistas e os intelectuais portugueses, em frente desta ameaça, saibam defender-se das sugestões maléficas vindas lá de fora, e procurem firmar-se cada vez mais e melhor no campo do que é nacional, a fim de, defendendo a pureza da sua inspiração e do seu acto criador, defenderem também os valores humanos que fazem a personalidade forte de Portugal.

A Nação é muito rica de motivos de beleza. Não há necessidade de ir pro- curá-los fora das fronteiras. Isso seria esquecer que nós temos um património moral e cultural inesgotável para o trabalho da inteligência e da arte. Há razões ponderosas e de sobra para darmos este exemplo ao Mundo. É preciso que a

arte e a literatura completem, em seu domínio próprio, a obra política e admi- nistrativa que entre nós se operou sob o signo do Estado Novo.»[3]

Classicismos nacionais

A exaltação do poder do Estado conduziu a uma nova modalidade de nacio- nalismo arquitectónico: o classicismo monumental totalitário. Os regimes autoritários e totalitários de entre as duas guerras mundiais promoveram o

revivalismo tradicionalista em bairros sociais e pequenos edifícios públicos,

veiculando desse modo uma ideologia ruralista. Ao mesmo tempo, porém, e sem sombra de contradição, afirmaram categoricamente o poder do Estado em grandiosos edifícios de inspiração clássica. Não haverá, como já escrevemos, uma contradição insanável no facto de um regime racista como o nazi transformar o classicismo, de raiz grega e romana, no modelo

dos maiores edifícios estatais?[4]

A Alemanha nazi, a União Soviética estalinista, a Espanha franquista e Portugal salazarista responderam a esta objecção procedendo à nacio-

nalização do classicismo, processo cujas raízes parecem aliás ser anteriores

aos anos trinta. Cada um destes países invocou, não a arte greco-romana propriamente dita, mas as variantes clássicas desenvolvidas na Europa após

3 A. M., «A arte e a literatura ao serviço da Pátria», Diário de Coimbra, Coimbra, ano XIII,

n.º4069, quinta-feira, 16 de Julho de 1942, p. 1. Itálicos nossos.

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o Renascimento. O nazismo filiou a sua arquitectura no neoclassicismo prussiano de início do século XIX; o franquismo, no Escorial e no Museu do Prado. No processo longo de criação de um estilo neo-russo na segunda metade do século XIX, difundiu-se, ainda antes da Revolução de Outubro, a convicção de que na época de Pedro o Grande se teria desenvolvido um estilo arquitectónico original, classificado por Ilia Bondarenko, um dos seus primeiros estudiosos, como uma «”nacionalização” do classicismo tardio». Outros autores viram na arquitectura da época de Catarina II e de Alexandre I o auge da arte nacional russa. E assim, embora até aos anos de 1930 o carácter nacional estivesse associado sobretudo à arte antiga e popular, surgiu a ideia de que existe uma especificidade nacional na arte

do tempo de Pedro o Grande.[5]

Estilo pombalino

Em Portugal, os nacionalistas mais exaltados exigiram a cópia do estilo pombalino. Assim fez, algo atabalhoadamente, o articulista da revista A

Arquitectura Portuguesa, em 1939. Intimou os arquitectos a «criar um estilo

português» ou, se não soubessem como fazê-lo, a reproduzir «o manuelino,

o D. João V ou o pombalino fielmente, e mesmo servilmente».[6]

A revalorização do estilo pombalino no contexto do Estado Novo constitui uma novidade assinalável, porquanto o ódio liberal ao absolutismo produzira, no século XIX, variadas diatribes contra a sua arte. Em Questões

de Literatura e Arte Portuguesa, Teófilo Braga verberou no Real Edifício de

Mafra a falta de gosto e de respeito pela nobre tradição construtiva gótica, concluindo de modo lapidar:

«A intervenção da autoridade na Arte produz o alinhamento, como o pedan- tismo das arcádias produz a poesia correcta, bem metrificada, mas fria. O excesso de absolutismo exercido pelo marquês de Pombal acabou de matar

a arquitectura portuguesa; o estilo pombalino é um documento moral.»[7]

5 Evguenia Kiritchenko, «Style russe et néo-russe, 1880-1910», in: L’Art Russe dans la Seconde

Moitié du XIXe Siècle: en quête d’identité, Paris, Musée d’Orsay, 2005, pp. 149-150.

6 «Façam-se casas portuguesas em Portugal», A Arquitectura Portuguesa, Lisboa, III série, ano

XXXI, n.º 46, Janeiro de 1939, p. 9.

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O apreço parece ter-se acentuado cerca de 1940, em parte como res- posta ao classicismo monumental nazi. Isso está evidente na recepção crítica da exposição Moderna Arquitectura Alemã, patente em Lisboa em Novembro de 1941. Vários autores, impressionados com o carácter afirmativo que se desprendia das maquetes e fotografias, encontraram no pombalino um digno equivalente. Para o jornalista Dutra Faria, ambas as

arquitecturas exprimiam «uma política de máxima tensão autoritária».[8]

As «afinidades com o nosso pombalino, nas arcadas da Praça circular de Berlim e na uniformidade das janelas das construções urbanas», levaram outros articulistas a antever, com agrado, «o efeito monumental que se

pode[ria] tirar da nossa arquitectura chamada pombalina».[9] A confirmar

esta íntima comunhão, Albert Speer, o arquitecto de Hitler, que se deslocou propositadamente a Lisboa, de automóvel, para inaugurar a exposição,

declarou ter ficado «deslumbrado» com a Lisboa pombalina.[10]

A referência encomiástica à arquitectura pombalina levou os discursos nacionais a distanciarem-se do padrão oitocentista. Em 1940, o crítico de arte Fernando de Pamplona ainda considerou o Pavilhão de Honra e de Lisboa, concebido por Cristino da Silva, «a obra-prima arquitectónica» da Exposição do Mundo Português. Graças ao modo como evocava as «nossas mais sugestivas tradições artísticas», mantendo-se contudo «viva e actual», às suas «linhas majestosas e elegantes» e às sugestões da Casa dos Bicos, da Torre de Belém e do gótico em geral, apresentava-se como

o verdadeiro padrão de reaportuguesamento.[11]

Apesar do entusiasmo, tais palavras pareciam, nessa data, velhas, ultra- passadas, artisticamente inconsequentes. Os novos tempos estavam a criar um novo discurso. Em vez do estrito (e facilmente condenável) historicismo de Fernando de Pamplona, Élie Lambert, acolhendo os ensinamentos de Reynaldo dos Santos, defendeu a existência de «caracteres originais» na

8 Dutra Faria, «A propósito da exposição de arquitectura alemã», Acção, Lisboa, ano I, n.º 30,

13 de Novembro de 1941, p. 5. Ver o nosso trabalho «Recepção da arte nazi em Portugal»,

in: Mário Matos e Orlando Grossegesse (org.), Zonas de Contacto. Estado Novo / III Reich,

Perafita, TDP Edições, 2011, pp. 95-121

9 «Moderna Arquitectura Alemã. Recepção à Imprensa na Sociedade Nacional de Belas-Artes»,

A Voz, Lisboa, ano XV, n.º 5274, sexta-feira, 7 de Novembro de 1941, pp. 1 e 6.

10 Diogo de Macedo, «Notas de arte – Exposição da Moderna Arquitectura Alemã», Ocidente,

Lisboa, volume XV, n.º 44, Dezembro de 1941, pp. 438-439.

11 Fernando de Pamplona, «Uma obra de arte: a Exposição do Mundo Português», Ocidente,

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arquitectura portuguesa de todos os tempos. Entre essas verdadeiras «cons- tantes» destacam-se a «nobreza», «a simplicidade grave», o «calmo ver- ticalismo», que no século XVIII deram origem à «simplicidade de linhas» do estilo pombalino. Assim, a Lisboa pombalina constituía, na sua opinião, a obra «mais nacionalmente portuguesa» que se pode encontrar. E era o seu espírito que Élie Lambert encontrava nas «mais recentes criações do

urbanismo» salazarista.[12]

Estamos no seio das maiores certezas, de onde nascem, como já sugerimos, as atitudes mais inflexíveis. Poucos eram capazes de afrontar a unanimidade em torno dos condicionamentos nacionais. No início da carreira, o jovem músico Fernando Lopes-Graça atreveu-se a esse sacrilégio inesperado. O seu caso ajuda a entender a deriva geral.

14. O desamparo de