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Diletantes e especialistas

Sumário: Os patriotas de cada época. Diletantes. Incipiência da historiografia

artística. Os autores «casuais» de estudos artísticos. Alguns exemplos: Almeida Garrett, Francisco Adolfo Varnhagen, marquês de Sousa Holstein, 2.º visconde de

Juromenha, Latino Coelho e Manuel Maria Bordalo Pinheiro. Cépticos. A reacção

contra o diletantismo historiográfico. Atanazy Raczynski e Joaquim de Vasconcelos.

Ramalho Ortigão, o sistematizador. A grande figura do nacionalismo artístico de

final do século XIX. Novos diletantes. O diletantismo implacável e o reforço do tom

evangelizador. Efeitos do neo-romantismo. Alberto de Oliveira, A. A. Baldaque da

Silva, Gabriel Pereira, Manuel de Macedo e Veiga Simões. José de Figueiredo e

Reynaldo dos Santos, os especialistas da nação. O programa de José de Figuei-

redo: provar a existência da «escola portuguesa de pintura» através de Nuno Gon- çalves e da caracterologia. O seu sucesso público, apesar das objecções de Coelho de Carvalho e Joaquim de Vasconcelos. Reynaldo dos Santos, continuador de José de Figueiredo e estudioso exímio da sensibilidade artística portuguesa. O apogeu

do essencialismo. Uma polémica exemplar. A historiografia artística portuguesa

no início do Estado Novo: erudição e nacionalismo. José de Figueiredo e Reynaldo dos Santos contra Vergílio Correia e António Augusto Gonçalves. A confiança dos patriotas. Intuição e documentos. Vergílio Correia contra a historiografia de pendor nacional. Luís Reis Santos crítico de José de Figueiredo. Recapitulando

a «descoberta» dos painéis de Nuno Gonçalves. Programáticos. Os patriotas

cada vez mais exaltados e exigentes. Alguns defensores da casa portuguesa: Sousa Viterbo, Emídio de Brito Monteiro, A. Mesquita de Figueiredo, Eduardo Nunes

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Colares, Guerra Maio, Raul Lino, Edmundo Tavares, Mário Gonçalves Viana e João Reis Gomes. Alguns continuadores das buscas identitárias: Aarão de Lacerda, Guedes de Oliveira, Diogo de Macedo, Fernando de Pamplona, João Barreira, Luís Chaves e Egas Moniz. A exasperação doutrinária da Filosofia Portuguesa. António

Quadros e Afonso Botelho. Resistentes. António Ferro e os valores modernistas.

Alsácia Fontes Machado e o internacionalismo. Nacionalismo e internacionalismo comunistas. A universalidade presencista. Gonçalo de Santa-Rita, Álvaro Cunhal, Adolfo Casais Monteiro, João Gaspar Simões, Arlindo Vicente, Mário Dionísio, Almada Negreiros, José Bacelar, José Régio, Castelo Branco Chaves e Fernando Lopes-Graça. Os arquitectos do 2.º Modernismo. Francisco Keil do Amaral e Fer-

nando Távora. Novos críticos e indiferentes. A queda do paradigma nacional. A

busca de invariantes morfológicas. Jorge Henrique Pais da Silva, Yves Bottineau, Alexandre Alves Costa, José Manuel Fernandes, Vítor Serrão e Walter Rossa. A indiferença dos artistas e dos críticos em 1990: Pedro Portugal, Leonel Moura, João Lima Pinharanda e Alexandre Melo. O curador António Pinto Ribeiro: a nação como anacronismo. O que significa Joana Vasconcelos?

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Para um patriota, nada do que é nacional lhe é estranho. Os sentimentos identitários suscitam possibilidades atraentes, convicções e por fim certezas inabaláveis. Cada época criou o seu tipo próprio: o idealista romântico, o céptico metódico, o diletante apaixonado, o especialista e, no declinar do século XX, o indiferente. Os contributos individuais oferecem outra maneira de observar a deriva nacional da arte. É uma história de exacer- bações, de conflitos e de algumas polémicas.

Diletantes

Os patriotas oitocentistas do manuelino e da escola portuguesa de pintura eram diletantes em arte. Ausente da universidade, a historiografia artística era uma vocação secundária de professores, jornalistas, escritores, políti- cos, bibliotecários, conservadores, artistas e diplomatas. O nacionalismo

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artístico começou por se fazer com amadores que produziam textos curtos, intrinsecamente hipotéticos, discursivamente afirmativos.

Apesar da sua enorme importância literária e cultural, Almeida Gar- rett (1799-1854) publicou apenas um pequeno «ensaio sobre a história da pintura» e apelos ao «aportuguesamento». Francisco Adolfo Varnhagen (1810-1878) voltou-se para a história do Brasil depois de cunhar o termo

manuelino. O 2.º visconde de Juromenha (1807-1887) escreveu brevemente

sobre Grão Vasco e dedicou o seu maior labor a Camões. Francisco de Sousa Holstein (1838-1878) precisou apenas de dois ou três artigos e de uma ideação imaginativa para avolumar a questão da pintura antiga. Latino Coelho (1825-1891) exercitou o empolamento literário nos Mosteiros dos Jerónimos e da Batalha antes de ser par do Reino e ministro da Marinha. Manuel Maria Bordalo Pinheiro (1815-1880) foi um pintor e funcionário da Câmara dos Pares que produziu dois artigos com reflexões identitárias.

Luciano Cordeiro (1844-1900) vai da dúvida para a esperança. Não é um diletante. Professor, director-geral da Instrução Pública, deputado e fundador da Sociedade de Geografia, publicou vários volumes de crítica. Em 1869, recusou a existência da escola portuguesa de pintura, preferindo destacar o atraso do país e a presença dominadora de artistas estrangei- ros. Em 1876, porém, imbuído de uma cientificidade tomada talvez do positivismo e de Taine, teorizou sobre a «acção complexa do Meio, da Tradição e da Evolução» e postulou que a «nação portuguesa» adquiriu individualidade no século XIV. Estas convicções levaram-no a protestar contra as excessivas influências francesas e a apelar à criação de uma arte de cunho nacional. É uma trajectória singular pela pretensão científica. Contudo, não será sobre esta base que o nacionalismo artístico se afirmará. Pelo contrário, a análise objectiva parece favorecer os cépticos.

Cépticos

Os primeiros cépticos protagonizaram uma reacção historiográfica contra as liberdades ideativas dos diletantes românticos. Alguns desses relapsos não combatiam a originalidade que provinha da etnografia, mas duvida- vam dos excessos erguidos em cima do estilo manuelino e de Grão Vasco. Já tivemos oportunidade de sugerir que o desígnio de uma especificidade

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portuguesa começou na maior incerteza. As dúvidas de Raczynski e Joa- quim de Vasconcelos eram portanto legítimas e até naturais.

No seio de uma historiografia incipiente, a chegada a Lisboa do diplomata prussiano Atanazy Raczynski em 1842 revelou-se um acontecimento feliz. Les

Arts en Portugal e Dictionnaire Historico-Artistique du Portugal, publicados

poucos anos depois, estabeleceram um novo padrão de rigor. Talvez seja exagerado considerá-lo um céptico, uma vez que não nega propriamente as particularidades colectivas. Ele contesta a procura voluntarista, esse esforço mesquinho, vão, e, do ponto de vista crítico e histórico, irrelevante para a compreensão da arte portuguesa. O escla recimento do caos de referências parecia-lhe mais importante do que as apreciações patrióticas.

Joaquim de Vasconcelos (1849-1936) também causou um grande efeito. O primeiro grande historiador de arte português não hesitou em atribuir à

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Alemanha a sua «existência intelectual e moral».[1] Nesse país teria adqui-

rido a competência que lhe permitiu afrontar as expressões mais superficiais de patriotismo artístico. O comprazimento delineado pelo Romantismo e gradualmente transferido para o campo das artes plásticas sofreu o efeito deste estrangeirado disposto a combater as rotinas discursivas e a passivi- dade metodológica.

Joaquim de Vasconcelos é um patriota, defensor da inspiração popu- lar, mas crítico das petulâncias nacionais. Contraria com persistência os arroubos acerca da valia e especificidade da arte portuguesa, quer porque privilegia o enquadramento ibérico e europeu, quer porque não reconhece à generalidade das manifestações a qualidade e a originalidade necessárias à afirmação de uma arquitectura e de uma pintura próprias. Não se opõe, como é evidente, ao sistema nacional. Recusa, isso sim, resumir as expres- sões de originalidade a meros acessórios ou enquadramentos acidentais. Exige uma «originalidade da concepção». E esta parece-lhe negada pela sujeição portuguesa a modelos estrangeiros.

Numa fase inicial, as objecções de Joaquim de Vasconcelos obrigaram os «patriotas» a sofisticar os juízos identitários. Depois, o seu trabalho de inventariação e de crítica das fontes, sem nunca ser posto em causa, começou a ser ultrapassado pelas narrativas caracterológicas. O papel de Ramalho Ortigão foi, neste ponto, decisivo.

Ramalho Ortigão, o sistematizador

Em 1935, Reynaldo dos Santos proferiu uma conferência sobre o autor de

Holanda. O corifeu do nacionalismo artístico aproveitou a ocasião para

fixar as suas próprias referências legitimadoras. Se a renovação da «histó- ria erudita» coubera a Joaquim de Vasconcelos, ninguém como Ramalho Ortigão se deixara entusiasmar com as «originalidades da arte portuguesa»

e soubera intuir «o sentido misterioso e íntimo do seu simbolismo».[2]

1 Joaquim de Vasconcelos, O Consumado Germanista (Vulgo o snr. José Gomes Monteiro) e o

Mercado das Letras Portuguesas. Porto, Imprensa Portuguesa, 1873, p. 1.

2 Reynaldo dos Santos, Ramalho Ortigão. Lisboa, Câmara Municipal, 1935, p. 11. Seguem-se

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Os dois representavam, no declinar do século XIX, sensibilidades opos- tas. Um negou a autonomia do estilo manuelino e da escola portuguesa de

pintura, o outro defendeu-a com vigor. Joaquim de Vasconcelos desconfiou

de mais, mas teve o mérito de derrubar as «ingenuidades dos patriotas da génese espontânea da arte portuguesa». Ramalho Ortigão, animado com a «força de sentimento, nacionalista», conseguiu escapar à «corrente cos- mopolita e hipercrítica» e antecipar «aquilo que a geração seguinte havia de definitivamente provar». Revelou uma «visão de alma mais lúcida que a crítica dos eruditos». Na «interpretação das obras nacionais» teria tido uma «lucidez divinatória».

Ramalho Ortigão é a grande figura do nacionalismo artístico de final de Oitocentos. Ninguém escreveu tanto sobre o assunto como ele. E ninguém conseguiu expressar melhor a transição para um paradoxal optimismo

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identitário. Almeida Garrett, Francisco Adolfo Varnhagen, Manuel Maria Bordalo Pinheiro e o marquês de Sousa Holstein eram diletantes em his- tória da arte. Ramalho Ortigão é um conhecedor multifacetado, unindo a crítica, a historiografia e a defesa do património. As opiniões publicadas em

O Culto da Arte em Portugal (1896), mesmo as mais negativas, transmitem

uma confiança ontológica que decorre da «epopeia» dos Descobrimentos e das florescências ruralistas de Silva Porto e José Malhoa.

A mudança discursiva não escapou a Joaquim de Vasconcelos, que avaliou o impacto de O Culto da Arte em Portugal nos seguintes termos: «Livro cheio de brilho no estilo e de brio nas intenções; mas que desenrola uma fata morgana, uma série de perigosas ilusões. Não conheço livro que mais pudesse influir sobre o espírito nacional no sentido de um chauvinismo

funesto!»[3] Apesar destas críticas veementes, os tempos pendiam cada

vez mais para o campo dos «patriotas», onde emergia uma nova geração de diletantes.

Novos diletantes

Os antigos diletantes falavam sobretudo do passado. Os novos pretendem determinar o presente, expondo (e cada vez mais impondo) um programa de reaportuguesamento. E para esse efeito precisavam menos do aparato erudito do que de convicções fortes. Assim se começou a formar o diletan-

tismo implacável que alimentou os discursos mais exaltados. Referimo-nos

ao tom evangelizador do neolusitanismo. Em 1894, o jovem Alberto de Oliveira (1873-1940), que havia de prosseguir carreira diplomática, inti- mava os artistas a inspirarem-se nos costumes e paisagens rurais. Na revista

Arte Portuguesa, A. A. Baldaque da Silva (1852-1915), oficial da armada

e engenheiro hidrógrafo, que se notabilizou por obras sobre a costa e as pescas de Portugal, alvitrou, como se viu, o reaportuguesamento através de uma multiplicidade de nós de marinheiro. Gabriel Pereira (1847-1911),

3 Nota de Joaquim de Vasconcelos em: Francisco de Holanda, Da Pintura Antiga. 1.ª edição

completa, comentada por Joaquim de Vasconcelos. Porto, 1918, p. 327. Sobre a actividade de Ramalho Ortigão no campo do património e da arte, ver Isabel Simões, Ramalho Ortigão e a

Arte. Ideário nacional, Universidade de Aveiro, 2008, dissertação de mestrado policopiada, e

Alice Nogueira Alves, Ramalho Ortigão e o Culto dos Monumentos Nacionais no Século XIX, Universidade de Lisboa, 2009, dissertação de doutoramento policopiada.

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director da Biblioteca Nacional, e o ilustrador Manuel de Macedo (1839- 1915) conjugam o desenvolvimento das «artes aplicadas» com a descoberta apaixonada do país. Veiga Simões (1888-1954), sendo ainda estudante de Direito, apresenta a «nova geração de neolusitanismo».

As objecções dos cépticos, por mais eruditos que fossem, perdiam eficácia perante a força crescente do neo-romantismo, do tradicionalismo e de um patriotismo cada vez mais exclusivista. Para os novos diletantes, a nação tornou-se um dogma que não admitia relutâncias. Faltava um especialista que produzisse uma nova síntese e que ajustasse o discurso ao poder crescente da caracterologia étnica. Essa figura foi José de Figueiredo.

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José de Figueiredo e Reynaldo dos Santos, os especialistas da nação

José de Figueiredo chegou com estrépito ao debate sobre a arte portuguesa. Em 1901, ainda atribuiu a desnacionalização ao «desconhecimento da nossa terra». Nos anos seguintes, porém, destacou o valor identitário do românico e trabalhou para impor a existência da escola portuguesa de pin-

tura. Ao entregar-se por completo à ideia nacional, ganhou uma legião de

admiradores. Segundo Joaquim de Vasconcelos, isso também o conduziu

a muitas «afirmações fantasiosas».[4]

Reynaldo dos Santos descreveu-o como um homem «pequeno, del- gado, de aspecto frágil, de uma saúde aparentemente delicada, assaltado a

miúdo por crises inibitórias que lhe paralisavam a vontade».[5] Licenciou-se

em Direito pela Universidade de Coimbra em 1893, quando por lá andavam também Alberto de Oliveira e António Nobre. Esteve seis anos em Paris, frequentando no Louvre os cursos livres de Taine e Georges Lafenestre e convivendo com o escultor Rodin e o historiador e arqueólogo Salomon Reinach. Entrou no meio intelectual português em 1901 com O Legado Val-

mor e a Reforma dos Serviços de Belas-Artes, dedicado a Ramalho Ortigão, e

com Portugal na Exposição de Paris, onde manifesta o espírito nacionalista que aplicará à pintura antiga (que começou a estudar em 1905) e frutificará na Evolução da Arte em Portugal (1908) e sobretudo em O Pintor Nuno

Gonçalves (1910).

Este último estudo e o entusiasmo público em torno dos painéis de São Vicente deram-lhe uma reputação sólida, que poucos ousaram afrontar. O capítulo final, onde brilham os preciosismos identitários caracterológicos, ainda foi escrito contra uma carta aberta do advogado e cônsul Coelho de Carvalho (1852-1934), que recusava com veemência a existência de uma especificidade artística portuguesa. A hora, porém, era de exaltação vicentina e de glorificação de José de Figueiredo. O inevitável Joaquim de Vasconcelos irritou-se com a exorbitância. «O que os amigos do autor disseram desta obra em jornais diários foram tais e tantas fantasias que não há senão uma resposta a dar-lhes, com a sentença do célebre poeta

4 Nota de Joaquim de Vasconcelos em: Francisco de Holanda, Da Pintura Antiga, p. 327. 5 Reynaldo dos Santos. «Homenagem à memória do Dr. José de Figueiredo», Boletim da

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inglês: “But of all plagues, good Heaven thy wrath can send… / Save, save,

oh save me from the candid friends!» Na sua opinião, estava mais uma vez

em causa, quarenta anos depois do marquês de Sousa Holstein, um certo voluntarismo superficial e complacente. «Nunca uma publicação notável, uma acção portuguesa, generosamente executada, digna de séria, condigna discussão, como esta, foi tratada mais levianamente, isto é com elogios

mais estúpidos, por serem banais e inconscientes.»[6] A opinião dominante

preferia ver nele um Messias e celebrá-lo pelo «altíssimo Patriotismo» de

que deu prova «na exaltação e definição de uma Arte Nacional».[7]

6 Nota de Joaquim de Vasconcelos em: Francisco de Holanda, Da Pintura Antiga, p. 329. 7 Dedicatória de Aarão de Lacerda em Notícia Acerca de um Quadro Primitivo na Igreja de

Sardoura. Separata de Prisma, Porto, n.º 2, Novembro de 1936. Uma visão orgulhosa da

vitória nacionalista de José de Figueiredo encontra-se nas páginas finais do artigo de Feliciano Ramos, «Eugénio de Castro e a poesia nova. VI – As Palavras Loucas de Alberto de Oliveira e a valorização de Portugal», Ocidente, Lisboa, vol. XVII, n.º 52, Agosto de 1942, pp. 465-480. Sobre José de Figueiredo e o contexto europeu de criação de «escolas nacionais de pintura» associadas aos primitivos no início do século XX, ver também José Alberto Seabra Carvalho, «A invenção de uma identidade para os Primitivos Portugueses», in. Primitivos Portugueses

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A José de Figueiredo, falecido em 1937, sucedeu como protagonista da historiografia artística nacionalista o médico Reynaldo dos Santos, que assumiu a bandeira do seu «maior e mais querido Mestre», amigo «durante mais de vinte e cinco anos» e companheiro de muitas viagens

no País e no estrangeiro.[8] Em 1938, já se apresentava como «autoridade

primeira entre os mais cultos, crítico de imaginação e original condutor de ideias [que], qual poeta navegador, foi arrancar ao mar e mais além as

razões de glória para a Arte da nossa terra».[9] Este panegírico diz bem o

que se esperava de um historiador de arte no auge do nacionalismo: um escritor que compusesse no passado hinos de orgulho e de amor à Pátria.

E foi assim que, ao redigir o catálogo da exposição Os Primitivos Por-

tugueses, em 1940, Reynaldo dos Santos apareceu como «historiador de

arte número 1 entre os melhores que temos, culto e arguto investigador, de preciosa visão e excepcional sensibilidade plástica, digno continuador da

obra e do sonho de José de Figueiredo».[10] Aarão de Lacerda chamou-lhe

avis rara, «temperamento apaixonado», «homem de ciência», «eminente

personalidade», «hegeliano», «heurista», «esteta» e «experimentado

taxinomista».[11]

Natural de Vila Franca de Xira, Reynaldo dos Santos (1880-1970) seguiu a carreira médica, que era também a de seu pai. Concluiu a licencia- tura em 1903 e estagiou em centros franceses e norte-americanos, entre os quais os laboratórios de cirurgia experimental de Alexis Carrel, em Chicago. Até 1921, concentrou-se na medicina, onde atingiu grande relevo como cirurgião dos hospitais de Lisboa desde 1906 e professor da Faculdade de Medicina a partir do ano seguinte. Os estudos dedicados à urologia foram coroados pela invenção de um aparelho e um método de uroritmografia, apresentado em Portugal em 1909-1910 e em França em 1911. Nesta época, encetou os trabalhos que vieram a culminar, em 1928, na sua «obra capital como cientista»: «a arteriografia, e sobretudo, a descoberta da aortografia

8 Reynaldo dos Santos, «Homenagem à memória do Dr. José de Figueiredo», já citado, pp. 10

e 11.

9 Diogo de Macedo, «Notas de arte – L’Art Portugais», Ocidente, Lisboa, vol. III, n.º 7, Novembro

de 1938, p. 141.

10 Diogo de Macedo, «Notas de arte», Ocidente, Lisboa, vol. X, n.º 29, Setembro de 1940, p. 445. 11 Aarão de Lacerda, «A propósito da Exposição dos Primitivos Portugueses»,Ocidente, Lisboa,

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– ou visualização abdominal no vivo».[12] A sua vasta e frutuosa actividade

médica e científica trouxe-lhe inúmeras distinções internacionais, sobre- tudo a partir dos anos trinta.

Reynaldo dos Santos representa o cume da leitura essencialista da identidade artística portuguesa. A aprendizagem com José de Figueiredo floresceu, a um nível superior, na conferência proferida no Rio de Janeiro em 1941, intitulada O Espírito e a Essência da Arte em Portugal (comple- mentada pelo artigo Carácter da arte portuguesa através dos tempos, de 1961) e em três obras de referência: Os Primitivos Portugueses (1940), O

Estilo Manuelino (1952) e Oito Séculos de Arte Portuguesa (1963-1970).

Mas a natureza do seu labor está patente em muitos outros estudos, cujos títulos são reveladores da procura de um «sentido» nacional português ou do seu «carácter», «significado» e «originalidade». Tal orientação nasceu de uma reflexão do lugar do estudioso no seu tempo e da convicção de que a arte não se entende sem o elemento nacional.

Reynaldo dos Santos permaneceu fiel à perspectiva nacional dos anos quarenta. Até falecer, trabalhou no aperfeiçoamento da síntese, conver- tendo as ideias desgarradas do século XIX e as intuições de José de Figuei- redo num verdadeiro sistema. Aprendeu com Spengler e Toynbee que a História é um fresco amplo e vigoroso, cujo sentido o estudioso deve revelar. Reynaldo dos Santos via-se como o precursor «duma visão artística, quase duma obsessão, em que o destino da arte se liga intimamente ao

destino da Nação».[13]A sua magna e derradeira obra, Oito Séculos de Arte

Portuguesa, toca a atemporalidade. As diferentes épocas, artes e autores

irrompem como declinações de uma poderosa «unidade de espírito». Uma polémica exemplar

A historiografia artística era ainda, no início do Estado Novo, um mosaico de abordagens. A procura de uma legitimidade científica promovia, nos melhores casos, uma história metódica, analítica, erudita, às vezes obcecada

12 Exposição Itinerante da Obra de Egas Moniz e Reynaldo dos Santos. Catálogo. 1982-1983. Lisboa,