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Classificação 24 

No documento A Tradição Polícroma no alto rio Madeira (páginas 35-41)

A arqueologia é uma ciência (humana) que estuda o registro arqueológico (cf. NEVES, 2012; SCHIFFER, 1987), em geral pensado como composto por vestígios materiais de antigas populações. No caso da Ecologia Histórica, não seria errado dizer que se estudam os vestígios materiais referentes às relações humano-humano, humano-ambiente, humano- objeto, objeto-objeto. No entanto, há casos nos quais vestígios materiais não são o objeto central do estudo arqueológico. Um estudo de cronologia, por exemplo, não é um estudo de cultura material e ainda assim é arqueológico. Seguindo Schiffer (1987), pode-se dizer que, para adentrar o registro arqueológico, o objeto só precisa ser depositado em um local onde ele (a priori) não vá ser mais utilizado (uma lixeira, um depósito, uma área de descarte no quintal de uma casa etc.) por seu antigo proprietário. Ou seja, pode-se estudar o registro arqueológico de populações ainda vivas (não só das antigas), talvez no próprio quintal onde ainda moram. Por exemplo, o jardim do Museu de Arqueologia e Etnografia (MAE-USP) – onde todos os dias arqueólogos fazem seu intervalo do café – não deixa de ser um sítio arqueológico, já que possui vestígios (lascas, micro lascas, estilhas, núcleos de lascamento, algumas bitucas de

cigarro etc.) de atividades experimentais que ali ocorrem ocasionalmente. Nada impediria que esse material fosse classificado.

A classificação é qualquer “atividade que tenha como produto uma ordem ou ordens,

qualquer procedimento que leve à criação de unidades” (DUNNEL, 2007: 67). Para

classificar o registro arqueológico, não há uma fórmula para cada tipo de material que se queira ordenar. Tudo depende das perguntas que forem feitas. A classificação de objetos deve sempre ter um propósito e uma maneira de pôr em prática esse propósito. Não há um jeito certo ou errado de classificar as coisas, mas há jeitos melhores ou piores de atingir propósitos específicos, uma vez decididos quais são esses propósitos (ADAMS e ADAMS, 1991:4-5).

O primeiro passo para uma boa classificação é definir os termos que guiam os agrupamentos. Em um sentido amplo, classificar é definir (ADAMS e ADAMS, 1991: 64). Essas definições devem fornecer às classes, simultaneamente, coesão interna e isolamento externo (CORMARK, 1971: 329). Além disso, as definições devem instruir o uso de instrumentos conceituais que permitam duas ou mais pessoas utilizar conscientemente o mesmo instrumento com um grau de consistência quanto aos propósitos com os quais esses instrumentos foram designados (ADAMS e ADAMS, 1991: 15).

Apesar de muitos estudiosos em arqueologia brasileira terem criticado a terminologia que sintetiza as classes criadas, é raro encontrar hoje pesquisadores que se preocupam com definições terminológicas. Por exemplo, ao longo de sua formação, arqueólogos amazônicos utilizaram grande número classes, ou agrupamentos, para definir seus conjuntos artefatuais (tais como Tradições, Subtradições, fases, Horizontes, Estilos, Tipos), mas são poucos os que, como os antigos (e.g. CRUXENT e ROUSE, 1958; MEGGERS e EVANS, 1970) se dão o trabalho de definir os termos: “ocorre, no entanto, que o exacerbamento dessas críticas [aos antigos métodos culturalistas históricos] está levando também a uma doença oposta à

intoxicação, que é a inanição classificatória” (NEVES, 2010: 565).

Tradição: referente a Estilos (incluindo técnicas) politéticos com persistência temporal e

abrangência espacial. Um conjunto de fases distribuídas por áreas vastas e com grande amplitude cronológica.

Subtradição: frequentemente usada e raramente definida, tende a indicar um conjunto de

fases (ou sítios) em uma região mais restrita (e.g. a bacia de um rio). Pressupõe a existência de uma Tradição que a englobe. A discussão desse conceito será retomada adiante.

Fase: é um conjunto de atributos recorrentes em uma área restrita (e.g. um trecho de rio), em

um período que é determinado pela manutenção de uma coerência politética nos elementos estudados. Assim, o presente uso de fase possui um caráter mais espacial (o tamanho e a quantidade de sítios relacionados encontrados em uma área) do que temporal, ainda que o

último seja fundamental. Não se restringe a um único coletivo ou grupo étnico.

Horizonte: é um contínuo espacial representado por traços culturais e conjuntos cuja natureza

e modo de ocorrência permitem assumir uma dispersão rápida e ampla.

(Compilados e remodelados a partir de CHYMZ et al., 1976; NEVES, 2006; WILLEY e PHILIPS, 1958)



Antes de definir os termos, é preciso que o pesquisador olhe para os objetos que deseja classificar e decida se as classes de atributos que está criando existem “naturalmente” (se eles são êmicas) ou se são ferramentas analíticas “artificiais”, criadas pelos pesquisadores. Há cinquenta anos, essa tarefa seria semelhante a escolher entre os Tipos naturais de Spaulding (1953) e os artificiais de Ford (1954; 1962; cf. ADAMS e ADAMS, 1991: 67; O’BRIEN e LEONARD, 2001: 6; WILLEY e PHILIPS, 1958: 13). Os integrantes do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA), entre eles o arqueólogo Eurico Miller, que classificou a imensa maioria do material da bacia do alto Madeira até o presente, utilizaram com insistência o método Ford para criar Tipos, fases, Tradições e lançar suas interpretações a respeito da Tradição Polícroma da Amazônia (e.g. EVANS e MEGGERS, 1968; MEGGERS e EVANS, 1957; MILLER, 1992; MILLER et al., 1992; PEROTA, 1992; cf. NOELLI, 1999-2000). Por outro lado, alguns arqueólogos das terras baixas que trabalharam com histórias de longa duração, como Brochado (1984; BROCHADO et al., 1990; LA SALVIA e BROCHADO, 1989; WEBER, 1975; cf. NOELLI, 2008b) ou com contextos etno-arqueológicos (DEBOER e LATHRAP, 1977; HECKENBERGER, 2005; LATHRAP, 1962; NEVES, 1998; ROE, 1982, 1995), por inúmeras vezes conseguiram se aproximar de categorias mais êmicas, que correspondem a escolhas e comportamentos6.

Resumindo e simplificando, o grupo dos pronapistas buscou, de forma muitas vezes criticada7, organizar os vestígios arqueológicos em classes artefatuais que eram compreendidas dentro do próprio universo das classes analíticas8. Os Tipos, fases e Tradições



6 Os pronapistas também achavam que havia uma relação entre escolha e comportamento que definiria o grupo

arqueológico.

7 O campo classificatório representa apenas uma das muitas críticas feitas ao PRONAPA. Noelli (1999-2000)

faz uma extensa explanação dessas críticas, com ênfase na irrelevância dada pelos membros do PRONAPA aos dados históricos e etnológicos que permitissem a realização de histórias de longa duração de grupos indígenas, indicando um “preconceito etnocêntrico” por parte dos mentores do programa (pp. 223-224). O autor cita também, entre outros, o fato de que o padrão unilinear do PRONAPA excluía pesquisadores com propostas alternativas ao mainstream de concessão de verbas para o apoio à pesquisa, assim como das publicações (p. 221). Outra crítica feita pelo autor ao PRONAPA é o distanciamento que os dados produzidos possuíam com o publico geral, criado por “esquemas interpretativos ininteligíveis e criptografados” (p.262).

8 Com o passar do tempo, alguns pronapianos, como o próprio Miller, mudaram a orientação de algumas de suas

classes (Tradições e fases) para ligá-las a grupos indígenas vivos, também no sentido da longa duração. Assim, apesar de Miller (com. pessoal) não observar a ligação entre os Tupi e a Tradição Polícroma da Amazônia,

eram o fim e não o meio (cf. CHILTON, 1998: 132; DIAS e SILVA, 2001; NEVES, 2010, 2012: 60). O segundo grupo buscou, por meio de uma visão de história indígena, compreender os vestígios materiais a partir de grupos indígenas do presente ou de uma densa compreensão de registros históricos (NOELLI, 1999-2000, 2008b).

O presente estudo é simpático a uma classificação mais êmica dos artefatos. No entanto, ao contrário dos exemplos citados, a Tradição Polícroma da Amazônia não possui relatos históricos detalhados9 ou mesmo grupos vivos que ainda produzam esse tipo de cerâmica, por meio dos quais seja possível delinear categorias criadas pelos próprios produtores dos vasos. Dessa forma, resta apenas uma saída intermediária, conciliando as duas abordagens classificatórias. Então, seguindo Adams e Adams, pode-se dizer que modalidades são criadas como fruto da relação entre o ser humano e a natureza, mas são os classificadores que fazem escolhas entre essas modalidades para um propósito particular seu. “It is also we

who have to draw arbitrary boundaries between modalities, if they are to be used in sorting categories, where often enough there are no such boundaries in nature” (1991: 68).

Por que utilizar o conceito de Subtradição? O conceito de Subtradição possui um uso

coerente com agrupamentos classificatórios de sítios que ocupam vastas áreas, mas que podem ser inseridos em agrupamentos ainda mais amplos. Por exemplo, esse termo foi adequadamente utilizado por Miller na descrição da Subtradição Jatuarana, do alto Madeira, identificada em sítios localizados a mais de 500km desse rio, mas que pertence à Tradição Polícroma da Amazônia, com distribuição pan-amazônica. Uma ideia semelhante à de Lathrap e Brochado, que propuseram inserir as Subtradições Guarani e Tupinambá na Tradição Polícroma da Amazônia (proposta não compartilhada pelo presente estudo, que indica que as Subtradições Tupinambá do litoral, Tupinambá da Amazônia e Guarani pertencem a uma grande Tradição Tupi-Guarani). Quando Noelli indica que “as subtradições também foram descartadas por Brochado” (2008b: 34), ele se refere às Subtradições pintada, corrugada e escovada, atribuídas de forma errônea pelos pronapistas a uma evolução estilística dos “Tupiguarani”, não significa que ele abandonou os conceitos de Tradição e Subtradição, utilizados por ele de maneira êmica, para se referir aos grupos Tupi e aos Tupinambá e Guarani (respectivamente).



Por outro lado, é no momento de cruzar os elementos politéticos para fazer comparações que surge a possibilidade de utilizar uma metodologia mais lathrapiana (cf. RAYMOND, 2009: 516-517). Segundo Brochado e Lathrap (1982; cf. NOELLI, 2008b: 38), 

conforme sugeriram Brochado e Lathrap, ele aponta (2009) para a existência de uma Tradição arqueológica ligada a cada uma das famílias do tronco Tupi (os falantes do Tupi-Guarani estariam ligados à Tradição Tupiguarani, os Tupi-Mondé, à Tradição Tupimondé, e assim por diante). Voltaremos a esse tópico.

9 A exceção clássica é a descrição do encontro de Orellana com os Omágua (grupos Tupi-Guarani do alto

para realizar comparações cerâmicas, como a proposta no presente estudo, é necessário reconstruir o máximo possível e interligar as diversas fontes do Estilo, quer elas residam na forma do vaso, na decoração ou no antiplástico utilizado.

De qualquer forma, seguindo Neves (2010; 2012), o presente estudo defende a necessidade da permanência dos tradicionais conceitos culturalistas históricos. Por mais que se possa falar hoje em cerâmica Guarani, não se pode falar (de forma êmica) em cerâmica Polícroma ou Zonada-Hachurada como se houvesse certeza de que essas representem arqueologicamente grupos culturais e/ou linguísticos. Assim, será mantida a nomenclatura clássica, com o intuito de aprimorá-la por meio da abordagem politética e dos resultados obtidos a partir comparações entre diferentes fases, Subtradições e Tradições.

A classificação politética no campo antropológico/arqueológico possuiria a desvantagem de fazer que as comparações se tornem mais complexas e até, em uma escala ampla e detalhada, impraticáveis. Por outro lado, as classificações politéticas possuiriam a vantagem de serem altamente informativas, por gerarem menos riscos de exclusões arbitrárias de elementos significativos, e seriam mais “fiéis” ao contexto original do qual o material classificado é proveniente. Premissas que, se confirmadas, pagariam o preço relativo ao aumento na dificuldade de realizar tais comparações (NEEDHAM, 1975: 358).

Depois de uma série de referências ao conceito de politético, é chegado o momento de realizar uma explicação mais detalhada desse termo, em especial dentro das classificações cerâmicas que serão apresentadas. Para tal, será emprestada a descrição das Polythetic

Features (características politéticas), adaptada por David Clark (1978; cf. ADAMS e

ADAMS, 1991; NEEDHAM, 1975). Para o autor, é possível definir um grupo de entidades a partir de uma série de propriedades de forma que: (I) cada entidade possua um número alto, mas não especifico, de um conjunto particular de atributos; (II) cada atributo seja compartilhado por um alto número de entidades; (III) nenhum atributo necessariamente pertença a todas as entidades do grupo (CLARK, 1978: 36-37).

Assim, por exemplo, se a cerâmica da Subtradição Guarani é reconhecida por possuir como atributos diagnósticoso antiplástico de caco moído, formas angulares, decorações corrugadas, unguladas e pintadas, e a cerâmica da Tradição Polícroma da Amazônia é reconhecida por possuir antiplástico de caraipé, formas angulares, com presença de flanges, bordas reforçadas e decorações pintadas e acanaladas, isso não quer dizer que a ausência de

qualquer um desses atributos signifique que o material não pertença a esses agrupamentos. Daí o fato de as características não serem mono e sim politéticas.

Os atributos escolhidos para estas comparações politéticas são, em geral, os que possibilitam ao estudioso mais bem compreender a relação entre a estrutura e as práticas dos povos que fabricaram estes artefatos. Além de comparar listas de atributos encontrados em indústrias intra e intersítios, assim como de agrupamentos regionais, pretende-se, como uma forma de dar mais consistência a esses conjuntos de elementos, criar Tipos. Um Tipo, de maneira ampla, consiste em uma “coisa”, somada às ideias que temos dessa coisa, somada às palavras e/ou imagens com as quais expressamos essas ideias (LEACH, 1976: 17-22). Se um Tipo é uma coisa, pode ser utilizado para exemplificar qualquer coisa, de tipos de lingerie a tipos de ideia. No entanto, dentro da arqueologia, os Tipos geralmente pertencem uma categoria taxonômica específica, localizada acima dos atributos e abaixo das fases, Tradições etc. Cada Tipo é formado por uma série de atributos, e cada Estilo, fase ou Tradição pode possuir uma série de Tipos.

No presente estudo, os Tipos criados serão incipientes, uma vez que as amostras dos sítios não permitem criar Tipos “fechados” sustentados por níveis de frequência. Isso ocorre especialmente pelo fato de a forma cerâmica ser a base tipológica (e.g. BROCHADO, 1984; ROUSE, 1960; WEBER, 1975: 106-107), o nível mais alto na hierarquia dos elementos a ser comparados. Opção que requer cuidado, já que não foram trabalhadas peças inteiras, e sim reconstituições provenientes de fragmentos. Assim, em vez de criar designações tipológicas como semi-esférico inciso, será feita apenas uma referência às possibilidades de tratamento de superfície que cada uma das formas pode possuir10. Trata-se de um pequeno avanço no método adotado durante a última pesquisa (ALMEIDA, 2008; Capítulo 2 da presente tese) na qual, em geral, as formas e os tratamentos de superfície foram abordados em separado. A ideia é que, com a continuação das análises no alto Madeira – quem sabe com uma maior amostra de vasos inteiros –, será possível investir em Tipos mais consistentes, mas não engessados e engessantes.

Para sumarizar e amarrar a discussão, é necessário voltar rapidamente ao conceito de Estilo, já que é nele que se encontra um sintetizador para o conjunto de classes em todos os níveis da taxonomia. As escolhas estilísticas estão presentes desde a escolha dos elementos ou atributos que serão transformados em artefatos e chegam à recorrência de determinados 

Tipos artefatuais no tempo e espaço, que podem gerar a criação de uma Tradição. Dessa forma, para o arqueólogo que busca correlacionar Estilos (encontrados nos Tipos, fases, Subtradições, Tradições) com populações humanas dentro da longa duração, é de extrema importância identificar os elementos – os que sobreviveram no registro arqueológico – que permitiram que esses grupos se diferenciassem na época em que os artefatos estudados foram utilizados.



1.4 Ferramentas auxiliares para a interpretação arqueológica: etnologia, história

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