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O rio Ji-Paraná 127 

No documento A Tradição Polícroma no alto rio Madeira (páginas 138-144)



Figura 34: Contraste entre a planície aluvial onde se encontra o sítio Barro Roxo e as serras graníticas que o circundam o sítio, no alto Ji-Paraná (foto: Fernando Ozorio de Almeida, 2009).

 

O rio Ji-Paraná (ou Machado) é o último a ser trabalhado nesta contextualização regional. Nasce na serra dos Parecis e possui uma extensão aproximada de 800km. O trecho com maior número de cachoeiras se situa entre a foz de dois importantes afluentes, o Urupá e o Machadinho. Em grande parte do percurso, são encontrados afloramentos de rochas, que

podem formar ilhas. Assim como no Jamari, a topografia de entorno do alto e médio curso do Ji-Paraná é muito mais acidentada do que o baixo curso, com serras predominantemente graníticas que formam conjuntos de relevo com topos estreitos e alongados.

A bacia desse rio é rica em dados sobre grupos falantes de distintas famílias linguísticas do tronco Tupi. Mais uma vez, é Miller (1987a, 1987b, 1987d; 1986/87) que traz as primeiras informações sobre a arqueologia local. Os dados fornecidos pelo arqueólogo indicam uma divisão ecológica entre grupos TPA localizados do encontro do rio Ji-Paraná com o Madeira até as primeiras cachoeiras rio acima – e outros grupos que ocupavam a parte encachoeirada do rio. Na descrição dos sítios levantados na região, Miller indica surpresa pelo fato de ter encontrado mais fases “não Tupiguarani” do que “Tupiguarani”: das sete fases criadas pelo autor, só uma era “Tupiguarani”. Por outro lado, a única fase “Tupiguarani” possui o mesmo número de sítios do que todas as demais fases juntas.

Identificação Idade Material (cerâmica)

Tradição “Tupiguarani” Fase Urupá (6 sítios)

s/d Vasos e tigelas, com eventual presença de carenas. Decorações unguladas, corrugadas, serrunguladas, roletadas, engobo branco e vermelho. Bases convexas ou plano-cônicas. O antiplástico é mineral.

Fase Quiíba

(1 sítio) s/d Vasilhame simples, com parede fina, às vezes com perfurações opostas junto à borá. Não há fragmentos decorados. O antiplástico é mineral.

Fase Imbirussu (1 sítio)

s/d Cerâmica simples, com rara presença de decoração incisa. Presença de tigelas e vasilhas globulares. O antiplástico é mineral.

Fase Jaru

(1 sítio) s/d Decorações incisas retas, rasas e pouco profundas. Tigelas pequenas a médias com contorno simples, inflectido ou composto. O antiplástico é mineral.

Fase Graúna (1 sítio)

s/d Material muito erodido, de difícil descrição (incluindo as formas). A única decoração é roletada. O antiplástico é mineral. Fase Inimbó

(1 sítio)

s/d Marca de corda realizada sobre a parte superior da borda. Decorações entalhadas, ponteadas e unguladas. O antiplástico é mineral.

Fase Ironçaba

(1 sítio) s/d A única decoração (raramente) presente é acanalada. Presença de assadores. O antiplástico é de caraipé ou mineral.

Tabela 16: Relação das fases e Tradições identificadas por Miller no médio rio Ji-Paraná (fonte: MILLER, 1986/1987).

 

Durante as etapas de campo do PALMA no alto Madeira e baixo Jamari, foram realizadas três visitas à região do alto Ji-Paraná, quando foi estabelecida uma parceria com o Museu Regional de Arqueologia de Rondônia, localizado na cidade de Presidente Médici. Nas visitas, os professores Maria Coimbra e José Garcia, responsáveis pelo Museu, nos

levaram a uma série de sítios por eles levantados69. Muitos desses sítios possuem, no interior

ou no arredor, afloramentos (geralmente de arenito) com gravuras rupestres e/ou bacias de polimento. As gravuras rupestres (Fig. 33) foram foco do estudo de mestrado por parte da professora Maria Coimbra Garcia (2010) e não serão discutidas em detalhe no presente texto.



Figura 35: Gravura rupestre (em arenito) do sítio Cachoeira Alta e bacia de polimento do sítio Barro Roxo, no alto Ji-Paraná (fotos: Fernando Ozorio de Almeida, 2009).



A semelhança com o contexto do baixo Tocantins logo chamou a atenção. Isso devido à maciça presença de sítios de terra firme ao longo da extensa rede de drenagem formada pelos igarapés afluentes do rio Ji-Paraná, que recortam o terreno acidentado dessa região. Os levantamentos preliminares no alto curso desse rio sugerem uma superioridade quantitativa de sítios de terra firme em relação aos sítios encontrados nas margens da drenagem principal (ALMEIDA, 2010b). Os sítios, ao que parece, não possuem áreas tão grandes quanto os do baixo Tocantins, mas a tendência a uma rasa estratigrafia (entre 20 e 50cm de profundidade) parece se repetir. Outra impressão foi a de que havia mais sítios nessa região do que no baixo Tocantins, o que faz sentido caso sejam comprovadas as antigas datas para grupos ceramistas (Tupi?) na região.





69 Atualmente, dois pesquisadores do Programa de Pós-Graduação do MAE-USP realizam estudos em parceria

com o Museu Regional. O objetivo de Rodrigo Suñer é realizar atividades exploratórias nos sítios da região, e o trabalho realizado por Maurício Silva busca compreender o próprio contexto de implantação do Museu Regional.

Figura 36: Fragmento corrugado encontrado na região do alto rio Ji-Paraná (foto: Fernando Ozorio de Almeida/Acervo Museu Regional de Rondônia, 2009).



O material proveniente desses sítios possui uma significativa quantidade de elementos que Miller chamaria de “Tupiguarani” (Fig. 35). Além desse autor, Cruz (2008) e Zimpel (2009) realizaram estudos com sítios da região. Todos os três pesquisadores tecem descrições semelhantes para o material cerâmico dos sítios estudados por eles. A cerâmica seria manufaturada com roletes e possuiria predominância de antiplástico mineral. Os tratamentos de superfície não eram abundantes, se restringindo à presença de corrugados e ungulados, no campo plástico, e à presença de engobo branco, no campo das pinturas. Por outro lado, ao contrário de Miller, Cruz e Zimpel indicam uma quase ausência de formas com ângulos70. As tipologias de forma apresentadas, em geral, têm uma baixa variabilidade. Dentre as formas, destaca-se a presença, no Museu Regional, de uma urna funerária com formato muito semelhante ao que La Salvia e Brochado (1989) chamariam de um yapepó Guarani.



Figura 37: Lâmina de machado polida encontrada em barranco de estrada que evidencia materiais do sítio Rainha da Paz (foto: Fernando Ozorio de Almeida, 2009).





Além disso, os autores apontam uma imensa quantidade e variedade de objetos polidos, em especial lâminas de machado (CRUZ, 2008; ZIMPEL, 2009) – o que rapidamente se confirma com a visita a qualquer sítio da região ou ao Museu Regional de Rondônia. Outro ponto que chama a atenção na arqueologia da região são as datas antigas. Zimpel apresenta datas recuadas ao extremo para o sítio Encontro (Tabela 17). Se tais datas estiverem corretas, o sítio possui uma das cerâmicas corrugadas mais antigas da América do Sul.

Nível Idade(a.C.) Idade(cal.) 4050cm 1900+80 4255+185

6070cm 2020+70 4425+200

Tabela 17: Datações do sítio Encontro (fonte: ZIMPEL, 2009: 149).

 

Está claro que os dados arqueológicos apresentados por Miller, Zimpel e Cruz são coerentes com a hipótese linguística de que o sudoeste da Amazônia seria a “terra natal” dos Tupi, ainda que os mesmos dados sejam insuficientes para oferecer uma visão consistente do papel dos Tupi-Guarani nesse contexto. Por exemplo, Miller apresenta uma data ainda mais antiga, de 3000 a.C., que ele relaciona a um “Proto-Tupiguarani”, se encaixando com perfeição na (mesma) data proposta pelos estudos léxico-estatísticos realizados por Aryon Rodrigues (1964; RODRIGUES e CABRAL, 2012).

A vinculação dessa data a esse contexto “Proto-Tupiguarani” é problemática. Primeiro, conforme visto (Capítulo 1), os dados linguísticos são muito valiosos, mas não devem ser levados ao pé da letra, principalmente as estimativas cronológicas. Segundo, o autor dá a entender que os Tupi-Guarani teriam sido dos primeiros a se separar do macro agrupamento Tupi e que, 3000 anos a.C., esses Tupi-Guarani já possuiriam seu tool kit cerâmico completo – o que é possível, mas improvável. Os dados apresentados por Cruz e Zimpel e o material presente no Museu Regional indicam elementos em comum com uma cerâmica Tupi-Guarani, mas estão longe de indicar que, de fato, se trata de uma cerâmica Tupi-Guarani. O que em parte ocorre devido à falta de dados contextuais sobre grupos Tupi- Guarani na região do rio Ji-Paraná, que também é assolada pela indefinição da cronologia Kagwahiva. Da mesma forma, não há dados históricos e etnográficos suficientes para que a imensa variabilidade de material cerâmico da região seja compreendida. Os dados produzidos por Miller ilustram bem o fato de que a cerâmica “Tupiguarani” é apenas uma entre muitos outros Estilos cerâmicos da região (cf. Capítulo 7).



Figura 38: Estatueta cerâmica encontrada no sítio Laranjeiras, um típico elemento não Tupi-Guarani presente nos sítios da região do alto Ji-Paraná (foto: Fernando Ozorio de Almeida/Acervo Museu Regional de Rondônia).



Para complicar ainda mais, grupos de língua Tupi-Mondé, como os Gavião e os Cinta- Larga71, identificam os fragmentos cerâmicos pintados e corrugados encontrados nos sítios como sendo “dos seus antepassados”. Ou seja, se a análise da cerâmica arqueológica

proveniente de áreas bem contextualizadas (litoral e sul do Brasil) parece fornecer uma distinção consistente entre grupos Tupi-Guarani e não Tupi-Guarani, por outro lado, os dados provenientes de análises cerâmicas dentro do macro contexto Tupi do sudoeste amazônico ainda não permitem diferenciar internamente esse agrupamento. Por fim,

como visto no início deste capítulo, a presença de quase todos os elementos que formariam a Tradição Tupi-Guarani (e.g. vasos com ângulos, policromia, corrugados, urnas funerárias) em contextos não Tupi no sudoeste amazônico (e.g. Pano e Jívaro) é só mais um indicador da complexidade de realizar análises arqueológicas cladísticas nessa região.

  



71 Os Cinta-Larga também alegam que as urnas funerárias (extremamente semelhantes à que está exposta no

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