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A bacia do alto Madeira, no período pré-colonial, foi um grande mosaico cultural, tanto cronológica quanto espacialmente. Até hoje, após muitas décadas de iniciada a desastrosa colonização da região pelos “civilizados”, é possível observar uma grande diversidade cultural e linguística, ainda que muitos grupos estejam ameaçados de desaparecer. É mais do que claro que o mosaico atual é bastante diferente daquele que existia na época em que os europeus chegaram ao continente sul-americano. O que se observa, então, é uma série de quebra-cabeças que precisam der encaixados horizontal e verticalmente. Por mais que a montagem desses quebra-cabeças tridimensionais seja uma tarefa muito complexa, é ainda mais complexo tentar compreender o quadro todo a partir de algumas poucas peças provenientes do centro do mosaico.

Assim, se os rios Jamari e Madeira (este, entre o Jamari e a cachoeira de Teotônio), são o objeto central do presente estudo, rios como o Guaporé e o Ji-Paraná forneceram dados fundamentais para a compreensão do entorno do alto Madeira, como também auxiliaram na discussão do pano de fundo deste estudo, a relação entre os Tupi e os Tupi-Guarani, e a relação destes com a Tradição Polícroma da Amazônia. No rio Madeira, fomos apresentados, enfim, à Subtradição Jatuarana, principal foco deste estudo, assim como aos diversos problemas históricos que dificultam relacionar essa Subtradição a um grupo específico. A partir do rio Guaporé, ficou cristalizada a sensação de que os grupos Guarani que hoje habitam a bacia do alto Madeira parecem possuir uma história recente na região – se eles voltaram a um lugar onde seus antepassados viveram é uma outra história. Nas descrições sobre esse rio, também foi indicada uma possível correlação entre as cerâmicas dos Tupari e da fase Corumbiara. Por fim, pôde-se compreender, a partir da revisão bibliográfica do rio Ji-

Paraná, que é nessa região que reside o maior potencial estilístico e cronológico para a compreensão da história Tupi na região.

A descrição do médio Jamari também forneceu a base bibliográfica para a realização de pesquisas arqueológicas no baixo curso desse rio. Foi realizada uma primeira tentativa de desvencilhar a Tradição Jamari da Subtradição Jatuarana. Advogou-se que Jamari e Jatuarana não são agrupamentos caracterizados por um “antecedente” comum, mas apenas por eventuais relações entre grupos geograficamente próximos. A análise dos sítios Associação Calderita e Jacarezinho (Capítulos 4 e 5) trará outros elementos para justificar essa conclusão. A cachoeira de Samuel, veremos, não foi uma fronteira cultural absoluta, mas com certeza funciona para estabelecer uma distinção mais grosseira entre os agrupamentos. Para um leigo na arqueologia da região, essa questão pode parecer irrelevante. No entanto, desde o início das pesquisas no baixo Jamari, houve dúvida a respeito da relação cultural entre esses agrupamentos.

Poder-se-ia pensar que a abertura demasiada do foco complicaria mais do que facilitaria a compreensão da arqueologia regional. Mas como trabalhar os elementos politéticos TPA e Tupi(-Guarani) sem levar em conta os demais grupos que compartilham elementos estilísticos com estes agrupamentos? O exemplo mais significativo é o dos grupos de língua Pano. Conforme apontado, com base no mapa etno-histórico de Nimuendajú (1942), alguns destes grupos teriam realizado movimentos a partir dos rios Beni e Madre de Dios para o alto Madeira, durante o período colonial. Métraux (1948b) indica que esses grupos (no período histórico) possuiriam cerâmica simples (sem decorações), mas fragmentos arqueológicos pintados e corrugados identificados no rio Madre de Dios, área ligada à ocupação dos Pano meridionais, podem indicar que a cerâmica pré-colonial desses grupos era distinta (com decorações). Por outro lado, essa cerâmica pode não ter nada a ver com os Pano, e estar relacionada aos Guarani ou a outro grupo Tupi.

Caso confirmado o quadro arqueológico esboçado por Miller (1992, 1999), com um predomínio milenar TPA (Subtradição Jatuarana) nas margens do alto Madeira, e a proposta etno-histórica (Nimuendajú 1942) que infere uma entrada tardia de grupos Pano na região, haveria elementos semelhantes, incertos e inversos à da histórica cultural do Ucayali, tecida por Lathrap e seus alunos. Semelhantes no sentido de que, em ambos os casos, os grupos Pano preenchem o vácuo deixado por grupos produtores de cerâmica TPA no período colonial. Incertos quanto à ligação TPA-Tupi-Guarani apontada para o Ucayali (os Kocama seriam Tupi-Guarani produtores de cerâmica TPA), mas sobre a qual não se tem

conhecimento no alto Madeira. E inversos no sentido de que, no Ucayali, os grupos Pano (teoricamente) tomaram de volta um território (dos Kocama) que já era deles, o que, a priori, não ocorreu no alto Madeira.

No caso do Ucayali, os grupos Pano (Tradição Cumancaya) ocupariam grandes extensões desse rio até por volta de 1000 d.C., quando passaram a ser empurrados rio acima pelos Kocama que vinham do médio Amazonas (LATHRAP, 1970; ROE, 1973; WEBER, 1975). Brochado (1984) recua o período de contato entre esses grupos (TPA e Cumancaya) no alto Amazonas, com o intuito de explicar uma suposta transição entre a cerâmica TPA e a cerâmica da Subtradição Guarani. Isso porque a cerâmica Cumancaya possui uma série de elementos existentes na cerâmica Guarani que não estão presentes na cerâmica TPA, como a presença de antiplástico de caco moído, as grandes urnas funerárias piriformes e corrugadas (as mesmas utilizadas para o preparo de fermentados), e as vasilhas para consumo de bebidas alcoólicas, com ombros e motivos pintados geométricos restritos ao bojo superior do vaso. Com isso em mente, torna-se evidente que as semelhanças observadas por Brochado (1984) entre o material Pano e o material da Tradição Tupi-Guarani possuem um significado que pode ser vital para a compreensão da história cultural dos grupos do sudoeste amazônico.

4 LEVANTAMENTO E ESCAVAÇÃO ARQUEOLÓGICA NO ALTO

MADEIRA E BAIXO JAMARI



An anthropologist (or archaeologist) tends, no matter what its ostensible subject, to be but an expression of his research experience, or, more accurately, of what his research experience has done to him (GEERTZ, 1973: vi).

O pormenor é essencial. No entanto, os pormenores do trabalho de outras pessoas são outra coisa (LEACH, 1976: 10).



No documento A Tradição Polícroma no alto rio Madeira (páginas 148-151)