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Climacus, Haufniensis e Agostinho

No documento humbertoaraujoquagliodesouza (páginas 61-71)

CAPÍTULO 1: KIERKEGAARD E AGOSTINHO

1.3. Climacus, Haufniensis e Agostinho

Os anos de 1843 e 1844 foram bastante produtivos para Kierkegaard. Foi nesses dois anos que o pensador de Copenhague publicou algumas de suas obras mais conhecidas. Em 1843, Kierkegaard publicou Ou-Ou: Um Fragmento de Vida, livro volumoso, elaborado como uma edição, feita pelo pseudônimo Victor Eremita, de diversos textos de pessoas diferentes, alguns aparentemente desconexos e fragmentados, como cartas, breves anotações, ensaios, crítica de arte, e outros mais consistentes. Este talvez tenha sido o maior sucesso comercial de Kierkegaard, seu livro que mais vendeu125. No mesmo ano, Kierkegaard ainda publicou duas outras obras sob pseudônimo, Temor e Tremor, de Johannes de Silentio, e A Repetição, de Constantin Constantius, além de nove de seus Discursos Edificantes, assinados veronimicamente, publicados em três volumes de dois, três e quatro discursos respectivamente. Também em 1843126, Kierkegaard escreveu o primeiro texto atribuído a Johannes Climacus, De Omnibus Dubitandum Est, que não chegou a ser publicado durante a vida do pensador de Copenhague. Não custa lembrar que foi em 1843 que Kierkegaard

123 Søren KIERKEGAARD. Pós-escrito às migalhas filosóficas, vol. II, p. 344. SKS 7, 572: “[…] med dyb

Ærefrygt Firmaet Kts.”

124 Idem, nota de rodapé.

125 Cf. Edna HONG; Howard HONG. Historical Introduction, in Søren KIERKEGAARD. Philosophical

Fragments/Johannes Climacus, p. xix.

126 Cf. Jon STEWART. Søren Kierkegaard: Subjectivity, Irony, and the Crisis of Modernity, p. 56. Contudo,

Alvaro Valls situa a redação dessa obra em 1842 (cf. Søren KIERKEGAARD. É preciso duvidar de tudo, p. xiv).

adquiriu os dezoito volumes das obras completas de Agostinho, editadas pelos padres maurinos de Veneza entre a última década do século XVIII e a primeira do século XIX.

Em 1844, Kierkegaard publicou mais nove de seus discursos, seguindo o mesmo padrão de publicação do ano anterior, finalizando o conjunto de textos que posteriormente passariam a ser mais conhecidos como os Dezoito Discursos Edificantes de 1843 e 1844. Kierkegaard também publicou em 1844 o livro Prefácios, sob o pseudônimo Nicolaus Notabene, além das duas obras que serão discutidas mais detidamente neste tópico: O Conceito de Angústia, de Vigilius Haufniensis, e Migalhas Filosóficas, de Johannes Climacus.

Há, no conjunto dos escritos de Kierkegaard, algumas peculiaridades dessas duas obras que são dignas de menção. Ambas foram publicadas no mesmo mês, junho de 1844, com apenas quatro dias de diferença127. O livro de Climacus foi publicado no dia 13, e o de Haufniensis quatro dias depois, em 17 de junho128. Quando, em 1846, foi publicada a última obra assinada por Johannes Climacus, o Pós-escrito, Kierkegaard acrescentou a ela uma espécie de posfácio intitulado Uma primeira e última explicação, no qual coloca uma espécie de ponto final àquilo que viria posteriormente a ser chamado de sua “primeira autoria”. Nesse posfácio, Kierkegaard assume a responsabilidade jurídica e literária pelas obras pseudonímicas, deixando bem claro, porém, que as ideias expostas pelos pseudônimos são pontos de vista distintos dos dele. Mas Johannes Climacus parece ser um caso especial. Em uma nota de rodapé desse posfácio, Kierkegaard explica porque colocou seu próprio nome como editor de Migalhas Filosóficas: “a significação absoluta do assunto tratado requeria na realidade efetiva a expressão da devida atenção, de que havia um responsável nominado para assumir o que a realidade poderia oferecer”129. Ao contrário de outras obras publicadas sob pseudônimo, Kierkegaard parece perceber que Migalhas Filosóficas deveria ter um tipo de “conexão” com a vida real maior do que obras ficcionais têm. Climacus é um personagem, um autor fictício. Mas Kierkegaard, ao se colocar como editor da obra, aproxima seu personagem de sua própria pessoa, de alguém real, alguém a quem os leitores poderiam se dirigir. O criador do personagem, Kierkegaard, faz com que Climacus interaja com ele. Em uma passagem do Pós-escrito, Climacus escreve algo semelhante a uma sequência de resenhas de algumas obras publicadas nos últimos anos na Dinamarca. Essas obras são aquelas escritas

127 Cf. Edna HONG; Howard HONG. Historical Introduction, in Søren KIERKEGAARD. Philosophical

Fragments/Johannes Climacus, p. xvi.

128 Cf. Søren BRUUN. The Genesis of The Concept of Anxiety, p. 12.

129 Søren KIERKEGAARD. Pós-escrito às migalhas filosóficas, vol. II, p. 342. SKS 7, 570: “[…] Gjenstandens

absolute Betydning i Virkeligheden krævede det Udtryk for pligtskyldig Opmærksomhed, at der var en navngiven Ansvarhavende til at overtage, hvad Virkeligheden maatte byde.”

por Kierkegaard sob pseudônimo. Quando chega o momento de falar de seu próprio texto, Migalhas Filosóficas, Climacus se refere ao “Magister Kierkegaard” e aos seus discursos edificantes, que são textos “que bem poderiam ser chamados de sermões”130. O que chama a atenção nesse texto de Climacus de 1846 é que o autor pseudônimo atribui elevada seriedade à questão tratada no livro de 1844; tanta seriedade que o problema existencial mais difícil não se encontra nos textos explicitamente religiosos do Magister Kierkegaard, mas no seu (de Climacus) próprio livro, Migalhas. Os discursos de Kierkegaard, segundo Climacus, vão até o limite alcançável na imanência:

Assim termina decerto também o que se pode alcançar na imanência. Enquanto a exigência do ético é mantida em vigor, enquanto a vida e a existência são acentuadas como um caminho exaustivo, a decisão, contudo, não vem a ser posta num paradoxo, e a retirada metafísica para o eterno, pela recordação, é sempre possível e dá à imanência o traço de humor, como uma revogação do todo pelo infinito no já-estar-decidido lá atrás na eternidade. A paradoxal expressão da existência (ou seja, o existir) como pecado, a verdade eterna como o paradoxo por ter surgido no tempo, em poucas palavras, o que há de decisivo para o religioso- cristão, não se encontra nos discursos edificantes [...]131.

O convite à reflexão sobre o Paradoxo, então, não se encontra em um discurso direto, ou diretamente religioso, mas sim no texto de Migalhas Filosóficas. Na verdade, é mais do que um convite à reflexão, já que o entendimento não pode abarcar o Paradoxo Absoluto. É um convite ao pathos, à paixão do próprio pensamento. Estas passagens que Kierkegaard escreveu em 1846, tanto em seu nome quanto sob pseudônimo, mostram como a ligação entre Climacus e Kierkegaard é, de certo modo especial, ainda que se considere essa ligação especial pelo simples prisma da seriedade do tema tratado. Mas a essas passagens do Pós-escrito pode ser acrescentada uma informação que o casal Hong apresenta na introdução histórica à sua tradução de Migalhas Filosóficas. Segundo os Hong, Kierkegaard manteve seu nome como autor de Migalhas Filosóficas tanto no rascunho do livro quanto na cópia final; só depois ele riscou seu nome (mantendo-se como editor da obra), e acrescentou o de Johannes Climacus132.

130 Søren KIERKEGAARD. Pós-escrito às migalhas filosóficas, vol. I, p. 286. SKS 7, 246: “[…] man godt

kunde kalde dem Prædikener […]” grifo no original e na tradução brasileira.

131 Idem, p. 285-286.SKS 7, 245-246: “Saaledes ender vel ogsaa hvad der er at naae ved Immanentsen. Medens

det Ethiskes Fordring gjøres gjeldende, medens Livet og Tilværelsen accentueres som en møisommelig Gang, bliver dog Afgjørelsen ikke sat i et Paradox, og den metaphysiske Erindringens Tilbagetagen i det Evige er bestandig mulig, og giver Immanentsen Humorens Anstrøg som en Uendelighedens Tilbagekaldelse af det Hele i Evighedens Afgjorthed bag ved Existent sens (det at existere) paradoxe Udtryk som Synd, den evige Sandhed som Paradoxet ved at være blevet til i Tiden, kort hvad der er afgjørende for det Christelig-Religieuse findes ikke i de opbyggelige Taler […]”.

132 Cf. Edna HONG; Howard HONG. Historical Introduction, in Søren KIERKEGAARD. Philosophical

Quanto à obra de Haufniensis, O Conceito de Angústia, Climacus também tece algumas considerações sobre esse livro em seu Pós-escrito. Climacus afirma que, dos livros pseudônimos que Kierkegaard escreveu, o de Haufniensis é sui generis, pois “a forma dele é um pouco direta e até um pouco docente”133. Isso parece então uma exceção à regra de Kierkegaard, de se comunicar indiretamente. Contudo, a leitura da obra permite que se afirme que também essa comunicação direta do livro de Haufniensis serve ao propósito mais amplo da comunicação indireta, pois o estilo “tratadístico” da obra conseguiu captar a atenção dos próprios docentes que Kierkegaard, com seu pseudônimo Haufniensis, tentou emular. E é no livro de Haufniensis que se encontra a única discussão direta sobre o pensamento agostiniano na obra pseudonímica. É pertinente lembrar aqui o que Lee Barrett afirmou, de que outras menções a Agostinho ou a textos agostinianos nas obras pseudônimas são quase que somente ornamentais134. O livro de Haufniensis, contudo, traz um tema eminentemente agostiniano que já é indicado no próprio subtítulo da obra: “Uma simples reflexão psicológico- demonstrativa direcionada ao problema do pecado hereditário”135.

O nome de Agostinho é citado apenas duas vezes em O Conceito de Angústia. A primeira citação ao nome do Bispo de Hipona é feita no primeiro parágrafo do Caput I, que aborda historicamente o problema do pecado hereditário na teologia dogmática. Haufniensis inicia o capítulo indagando se o conceito de pecado hereditário é idêntico ao conceito de primeiro pecado, ou do pecado de Adão que acarretou a queda136. O problema se desdobra, pois explicar o pecado hereditário envolve explicar tanto as razões pelas quais Adão, em seu estado de bem-aventurança, chegou a pecar, quanto compreender como todos os seres humanos, os descendentes de Adão, participam do pecado e têm culpa por esse estado de pecado que caracteriza a existência humana. Haufniensis procura as origens do conceito de pecado hereditário, e identifica em Agostinho aquele que o desenvolveu de modo a chamá-lo de “peccatum originale, (quia originaliter tradatur)”137, e a permitir uma distinção entre pecado originante e pecado originado. É importante salientar que Kierkegaard transcreve o conceito agostiniano em latim, mas usa o termo dinamarquês “Arvesynd” como equivalente à expressão latina “peccatum originale”. “Arve”, porém, se refere a algo herdado, diferente do termo latino que designa origem.

133 Idem, p. 285. SKS 7, 245: “[…] at dets Form er ligefrem og endog lidt docerende”. 134 Cf. Lee BARRETT. Eros and Self Emptying, p. 34.

135 Søren KIERKEGAARD. O Conceito de Angústia, p. 3. SKS 4, 309: “En simpel psychologisk-paapegende

Overveielse i Retning af det dogmatiske Problem om Arvesynden”

136 Cf. SKS 4, 332. 137 SKS 4, 333.

Haufniensis trata então de lidar com o problema da culpa, mostrando as diferenças entre a concepção escolástica e a protestante de pecado hereditário. O desenvolvimento do problema leva à dificuldade de se lidar com o conceito de pecado hereditário. Haufniensis chega a um dilema: se o pecado de Adão for algo que se repete em todo o gênero humano, ou seja, se todos os seres humanos são como Adão, e pecam um primeiro pecado, não há mais sentido em se falar de pecado hereditário, pois esse pecado não é mais algo que se herda, mas sim um modelo, uma representação daquilo que ocorre com todos os sujeitos ao longo de todas as eras. Adão seria, então, um modelo para todas as pessoas: “A cada momento as coisas se passam de tal modo que o indivíduo é ele mesmo e o gênero humano”, e “Adão é o primeiro homem, ele é ao mesmo tempo ele mesmo e o gênero humano”138.

Kierkegaard, escrevendo como Haufniensis, deixa claro que há um problema grave com a ideia de pecado hereditário, pois esse conceito pode conduzir quem sobre ele reflete a uma conclusão que elimina a responsabilidade do homem pelos pecados. Como se poderia pensar em culpa se o pecado é algo que o sujeito herda desde o nascimento, sem qualquer possibilidade de escolha? Haufniensis defende a ideia de que Adão não é diferente do gênero humano, mas sim parte da humanidade:

Ele não é essencialmente diferente do gênero humano; pois nesse caso o gênero humano nem existiria; ele não é o gênero humano, pois aí nem haveria o gênero humano: ele é ele mesmo e o gênero humano. Por isso, aquilo que explica Adão explica o gênero humano, e vice-versa.139

Este é um ponto no qual muitos intérpretes da obra de Kierkegaard percebem uma distinção forte entre o pensamento do dinamarquês e o do sacerdote bérbere-romano. Em um texto publicado no Cambridge Companion to Kierkegaard, Timothy Jackson defende a ideia de que Kierkegaard adotava uma posição arminiana, e que mostra discordância de Agostinho no que se refere aos problemas do pecado original, da graça e do livre-arbítrio. É pertinente transcrever um trecho do texto de Jackson aqui para ilustrar essa interpretação:

Agostinho desenvolveu a sua [sua posição sobre a graça e o livre-arbítrio] ao longo do tempo, à medida que ele combatia diferentes heresias. Mas o Agostinho anti-pelagiano maduro aparentemente abraçou tanto o auxílio espiritual decisivo dado decisivamente por Deus aos seres humanos, quanto o decisivo dano espiritual dado decisivamente por Adão (e Eva) aos seus descendentes. Agostinho endossava o seguinte: (a) a graça irresistível movendo as vontades dos eleitos, deixando-os, no paraíso, non posse peccare e (b) pecado original transmitido biologicamente por Adão para todas as futuras gerações, deixando-as, em si

138 Søren KIERKEGAARD. O Conceito de Angústia, p. 31. SKS 4, 335: “I ethvert Øieblik er det saaledes, at

Individet er sig selv og Slægten” e “Adam er det første Menneske, han er paa eengang sig selv og Slægten”.

139 Idem. SKS 4, 336: “Han er ikke væsentlig forskjellig fra Slægten; thi saa er Slægten slet ikke til; han er ikke

Slægten; thi saa er Slægten heller ikke til: Han er sig selv og Slægten. Hvad der derfor forklarer Adam forklarer Slægten og omvendt”.

mesmas, non posse non peccare. Kierkegaard não aceitará nada disso. Deus pode despertar o temor nos inocentes – como quando Adão e Eva, nus no Jardim, são lançados na angústia pela proibição de Deus contra comer da Árvore do Conhecimento – mas nem Deus e nem a humanidade podem compelir ao vício ou à virtude. Como diz o pseudônimo Vigilius Haufniensis: “pecado pressupõe a si mesmo, obviamente não antes de ser posto (o que seria predestinação), mas no fato de ser posto”. Todos caem livremente, como caiu Adão; nós somos radicalmente e individualmente responsáveis140.

Essa interpretação de Jackson sobre a oposição entre Kierkegaard (e Haufniensis) e Agostinho, é bastante razoável se aquelas ideias expostas em O Conceito de Angústia forem, de fato, uma boa representação do pensamento do Bispo de Hipona. Ocorre que este é um ponto bastante problemático e passível de discussão. Discutir esse ponto em profundidade seria fugir do escopo desta tese, mas algumas considerações sobre ele devem ser feitas, e alguns estudos relevantes sobre o tema devem ser trazidos à baila. Inicialmente, vale recordar o que foi afirmado acima: Não seria correto pensar nas relações entre Kierkegaard e Agostinho como se fossem relações com um tipo de “Agostinho-em-si”, mas sim com o agostinianismo de seu tempo e a imagem que se fazia do Bispo de Hipona e de suas ideias na Dinamarca daquele tempo. Voltando, então, àqueles autores e professores por meio dos quais Kierkegaard teve contato com o agostinianismo, é pertinente mencionar aqui brevemente o que Lee Barrett expôs sobre Marheineke, que foi professor de Kierkegaard em Berlim:

Philipp Marheineke, grandemente influenciado por Hegel, também descreve favoravelmente o tratamento dado por Agostinho ao pecado original nas preleções de Berlim que Kierkegaard frequentou. Contra os sobrenaturalistas como Hahn e Hengstenberg, Marheineke argumenta que Agostinho não apresentou essencialmente Adão como estando de algum modo fora da raça humana, por causa da peculiaridade de seu status como primeiro ser humano. Para Agostinho, Marheineke argumenta, Adão não era apenas um indivíduo específico cuja situação histórica, por ser anterior à queda, era completamente diferente da nossa141.

140 Timothy JACKSON. Arminian Edification: Kierkegaard on Grace and Free Will, p. 244. No original:

“Augustine developed his over time, as he combatted different heresies. But the mature anti-Pelagian Augustine apparently embraced both decisive spiritual help decisively given by God to human beings and decisive spiritual harm decisively given by Adam (and Eve) to their descendants. Augustine endorsed, that is, (a) irresistible grace moving the wills of the elect, leaving them, in heaven, non posse peccare and (b) original sin bequeathed biologically by Adam to all future generations, leaving them, in themselves, non posse non peccare. Kierkegaard will have none of this. God can awaken dread in innocents – as when Adam and Eve, naked in the Garden, are thrown into anxiety by God’s prohibition against eating from the Tree of Knowledge – but neither God nor humanity can necessitate vice, or virtue. As the pseudonym Vigilius Haufniensis says: “sin presupposes itself, obviously not before it is posited (which is predestination), but in that it is posited”. All fall frelly, as did Adam; we are radically individually responsible”.

141 Lee Barrett. Eros and Self-Emptying, p. 50. No original: “Philipp Marheineke, greatly influenced by Hegel,

also favorably describes Augustine’s treatment of original sin in Berlin lectures that Kierkegaard attended. Against supernaturalists like Hahn and Hengstenberg, Marheineke argues that Augustine did not essentially present Adam as being somehow outside the human race because of the peculiarity of his status as the first human being. For Augustine, Marheinike argues, Adam was not just an specific individualwhose historical situation, being prelapsarian, was utterly iunlike our own”.

Lee Barrett explica que Marheineke se opõe à tradição luterana de interpretação de Agostinho, de que a substância da natureza humana alterou-se com a queda de Adão e tornou- se má. Marheineke adota o mesmo entendimento de Kant, de que a queda de Adão é mais um evento simbólico do que genético, e defende a ideia de que tanto para o Apóstolo Paulo quanto para Agostinho, não haveria uma diferença essencial entre Adão e seus descendentes. Não haveria assim, uma distinção essencial entre o pecado de Adão, o primeiro, e os primeiros pecados de cada ser humano que já viveu sobre a face do planeta. Lee Barrett conclui que:

De fato, Marheineke está construindo a análise que Agostinho faz do pecado de Adão como o ato de segurar um espelho no qual o indivíduo poderia ver a gênese de sua própria pecaminosidade. De certa forma, Marheineke está sendo pioneiro de uma leitura retórica de Agostinho, pois ele presta bastante atenção ao propósito religioso das ruminações doutrinais de Agostinho142.

Vê-se, assim, que a interpretação de Marheineke do pensamento agostiniano não difere muito daquilo que geralmente é interpretado como uma antítese ou contraposição elaborada por Haufniensis diante das ideias de Agostinho. Se Marheineke for, de fato, uma das influências sobre Kierkegaard naquele período143, então as ideias que Haufniensis desenvolve, e que sustentam a possibilidade de atribuição de responsabilidade ao homem pelo pecado, são tomadas em grande parte de Marheineke, de quem Kierkegaard foi aluno em Berlim.

Mas há ainda outras questões a serem levadas em consideração sobre esse problema, e que podem ser contrapostas à interpretação de Jackson exposta acima. Como visto, a interpretação de Marheineke diverge de uma leitura que o protestantismo havia feito das ideias de Agostinho. Sobre essa interpretação especificamente protestante do pensamento agostiniano, Niels Jørgen Cappelørn desenvolveu um trabalho no qual aborda justamente a discussão do pecado hereditário no livro de Haufniensis e suas relações com a tradição luterana, e mais especificamente com o próprio Lutero. Como visto acima, Haufniensis usa o termo dinamarquês “Arvesynd” que significa, literalmente, pecado hereditário. Segundo Cappelørn, esse termo é uma tradução do alemão “Erbsünde”, que tem o mesmo significado

142 Idem, p. 51. No original: “In effect, Marheineke is construing Augustine’s analysis of Adam’s sin as the

holding up of a mirror in which the individual could see the genesis of the individual’s own sinfulness. In a way, Marheineke is pioneering a rhetorical reading of Augustine, for he pays close attention to the religious purpose of Augustine’s doctrinal ruminations”.

143 Sem, contudo, deixar de ressaltar a forte oposição de Haufniensis à identificação que Marheineke faz entre

inocência e imediatidade (Cf. Jonas ROOS. Tornar-se Cristão, O Paradoxo Absoluto e a existência sob juízo e

em português. Contudo, Cappelørn afirma que o termo agostiniano em latim era justamente “peccatum originale”, pecado original, expressão que não traz explícita a afirmação de hereditariedade daquela palavra alemã. Assim, esse estudioso dinamarquês de Kierkegaard chama atenção para o fato de que Lutero, ao traduzir o termo do latim para o alemão, promoveu uma “interpretação radicalizada da tradição agostiniana”144. É possível dizer, a partir do trabalho de Cappelørn, que Lutero fez uma “tradução interpretativa” do termo, forçando nele um sentido específico que não estava claro na expressão latina original. Assim,

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