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O Paradoxo Absoluto e os paradoxos do tempo

No documento humbertoaraujoquagliodesouza (páginas 74-104)

CAPÍTULO 2: TEMPO E ETERNIDADE

2.1. O Paradoxo Absoluto e os paradoxos do tempo

A questão da indistinção entre tempo e eternidade nos “modernos” (colocando o termo entre aspas, como Dupré o fez) será mencionada no quarto capítulo desta tese. Mas o problema da distinção entre o temporal e o eterno entre os antigos, e especialmente entre os pensadores não-cristãos, deve ser discutida aqui antes da exposição das ideias agostinianas sobre esse tema. Recentemente, James Wilberding publicou um estudo sobre a eternidade na filosofia antiga, investigando essa ideia entre pensadores pertencentes à tradição grega, de Parmênides e Platão até Proclo e Plotino, e entre pensadores cristãos como Severino Boécio153.

Como mencionado anteriormente, o ponto central da distinção entre a perspectiva cristã e a grega está na sua absolutez. Investigações sobre uma ideia de eternidade estão presentes de maneira clara em obras como o Timeu ou as Enéadas, e é inegável que a tradição platônica, por vários séculos, ocupou-se com reflexões sobre o tempo. Leitores de obras pertencentes a essa tradição podem até mesmo afirmar, com base em algumas interpretações possíveis desses textos, que a contraposição entre tempo e eternidade empreendida desde Platão até Plotino resulta em uma clara distinção entre os dois âmbitos, e que essa distinção até mesmo precede e inspira aquela adotada pelo cristianismo. Com base, porém, no estudo de Wilberding, é possível defender uma posição oposta, qual seja, a de que as ideias

153 In: Yitzhak MELAMED. Eternity: A History, p.14-55. A obra pertence à série Oxford Philosophical

desenvolvidas pela tradição grega, conquanto constatem até mesmo a possibilidade de o tempo ter tido um marco inicial, não levam o problema ao seu limite da maneira como Agostinho o fez, e não estabelecem assim o caráter fundamentalmente aporético da questão. Um dos pontos que Wilberding mostra em seu estudo é justamente o esforço da tradição platônica em compreender racionalmente a possibilidade de um âmbito distinto do tempo, e em elaborar uma teoria dessa espécie de não-tempo que seja racional e acessível ao entendimento. Wilberding inicia seu texto expondo uma distinção:

Apesar de ser comum hoje o uso da palavra “eternidade” para se referir a um período de tempo sem fim ou simplesmente muito longo, essa palavra de fato deriva de um termo latino, aeternitas, que era usado nos círculos filosóficos da antiguidade tardia para se referir a um modo de ser que era completamente separado do tempo (e no caso de alguns filósofos, como veremos abaixo, também da duração). Assim, Boécio (480 – 525/6 E.C.) distinguia a eternidade sem tempo (aeternitas) de Deus da duração temporal que dura para sempre (sempiternitas) dos céus, e uma distinção similar entre αιων (eternidade) e αιδιοτης (duração para sempre) pode ser encontrada nos platonistas gregos da antiguidade tardia.154

Antes de se fazer uma exposição da pesquisa de Wilberding, é importante fazer algumas observações sobre esse primeiro parágrafo de seu texto. O autor já começa especificando o período histórico no qual o termo aeternitas era utilizado como referente à distinção entre algo completamente separado do tempo: a Antiguidade tardia. Essa denominação se aplica perfeitamente ao período de vida da Agostinho, no qual boa parte da historiografia tradicionalmente identifica a transição entre Idade Média e Idade Antiga, e nele o pensamento cristão já era influente e parte importante do debate cultural no ocidente. Em seguida, Wilberding cita o nome de Severino Boécio como exemplo de filósofo que faz a distinção entre o eterno e o sempiterno (ou perene), o que é interessante, visto que esse pensador romano, nascido meio século depois da morte de Agostinho, é cristão, mártir, e também considerado um dos Pais da Igreja155.

Mas o trabalho de Wilberding abrange ideias de filósofos bem mais antigos. O primeiro exemplo de pensador grego analisado por Wilberding é Parmênides. Segundo esse autor contemporâneo, os neoplatônicos “foram os principais responsáveis por articular e

154 Idem, p. 14. No original: “Although it is common today to use the word ‘eternity’ to refer to a an endless or

even simply a very long period of time, this word actually derives from a Latin term, aeternitas, that was used in philosophical circles of late antiquity to refer to a mode of being that was removed from time altogether (and in the case of some philosophers, as we shall see below, from duration as well). Thus, Boethius (480 – 525/6 C.E.) distinguished the timeless eternity (aeternitas) of God from the everlasting temporal duration (sempiternitas) of the heavens, and a similar distinction between αιων (eternity) and αιδιοτης (everlastingness) can be found in the Greek Platonists of late antiquity.”

155 Cf., por exemplo, a introdução do tradutor italiano à edição bilíngue de A Consolação da Filosofia (Severino

desenvolver a noção de eternidade”156, αιων, distinta da ideia de uma duração indefinida e ilimitada. Wilberding salienta que os neoplatônicos consideravam Parmênides como um dos maiores precursores da tradição platônica, e tendiam a interpretar o eleata de modo a ver nele as origens de sua própria doutrina. Foi assim que os neoplatônicos leram o termo αιων, usado por Parmênides, como se o eleata já estivesse esboçando uma distinção entre eternidade (como ausência de tempo) e tempo sem fim. Ocorre que não era esse o propósito de Parmênides. A leitura dos fragmentos e citações posteriores dos escritos do eleata mostra que sua ontologia voltava-se muito mais para a demonstração da impossibilidade de conciliação entre o ser e as ideias de mudança, movimento e devir. Ora, isto é diferente de afirmar duas coisas que são, mas que são de modo distinto. A tradição platônica não percebia o tempo como algo pertencente à esfera do não-ser, e ainda que o próprio Platão tenha reconhecido a importância de Parmênides, ele rejeita algumas das premissas mais importantes do pensamento do eleata, como a impossibilidade de qualquer discurso sobre o não-ser, o que pode ser constatado pela leitura do diálogo Sofista e da famosa passagem do “parricídio”157. O Uno de Parmênides é aquilo que o eleata admitia na esfera (literalmente, uma esfera) do ser, fora da qual nada é. Parmênides pode, então, ser considerado alguém que introduziu na história da filosofia um importante paradoxo, ou que estabeleceu a constatação do caráter fundamentalmente paradoxal da realidade, uma vez que seu argumento, partindo da premissa fundamental de que o ser é e o não-ser não é (“pois que não é pronunciável ou concebível que o não-ser seja”158), é logicamente sólido. Sobre Parmênides e os eleatas, há mais a se dizer, especialmente em sua contraposição ao pensamento heracliteano a às consequências ontológicas dessa contraposição, e essas questões ainda serão discutidas mais adiante.

As tradições platônica e cristã, posteriores a Parmênides, concebem o tempo como algo que devém, algo que vem a ser, ou seja, algo que, mesmo tendo pertencido ao âmbito do não ser, passou ao âmbito das coisas que são. E isso é bem diferente do que Parmênides propôs. O próprio Wilberding reconhece que “Parmênides não dá nenhuma indicação de que ele vê esse ser ‘eterno’ [o Uno] como causa do mundo temporal sensível”159. Platão, por sua vez, introduz uma ideia diferente. Em uma passagem do Timeu (também citada por

156 Idem, p. 16. No original: “[…] were chiefly responsible for articulating and developing the notion of

eternity”.

157 Cf. Sofista, especialmente o texto entre 236e-242c (Na edição consultada: PLATONE, Tutti gli scritti, p. 281-

286).

158 Jonathan BARNES, Filósofos pré-socráticos, p. 155.

159 James WILBERDING. Eternity in Anciente Philosophy, p. 21. No original: “For Parmenides gives no

Wilberding160), o filósofo grego faz uma exposição de sua visão acerca da origem do tempo. É importante citar essa passagem, pois há nela muitos elementos que se aproximam notavelmente das ideias desenvolvidas por Agostinho, que serão discutidas a seguir neste capítulo desta tese. Escreveu Platão:

O Pai gerador, quando observou este mundo em movimento, e vivente, e imagem dos deuses eternos, sentiu-se feliz com ele, e se alegrou e pensou de torná-lo ainda mais semelhante ao modelo.

E, portanto, já que aquele modelo é Vivente eterno, assim também este universo, o tanto quanto possível, ele procurou torná-lo semelhante àquele.

Ora, nós havíamos notado que a natureza do Vivente é eterna, e não era possível adaptá-la perfeitamente àquilo que é gerado. Por isso, Ele pensou em produzir uma imagem móvel da eternidade, e, enquanto constituía a ordem do céu, da eternidade que permanece na unidade, fez uma imagem eterna que procede segundo o número, que é justamente aquela que nós havíamos chamado de tempo. De fato, os dias e as noites e os meses e os anos, que não existiam antes que o céu fosse gerado; Ele os gerou e produziu junto à constituição do próprio céu. E todos eles são partes do tempo, e o “era” e o “será” são formas geradas do tempo, que não conseguimos nos referir ao ser eterno de modo correto. De fato, dizemos que o tempo “era”, “é” e “será”, ao passo que ao ser eterno, segundo o raciocínio verdadeiro, somente o “é” se adéqua, enquanto o “era” e o “será” convêm que se digam da geração que se realiza no tempo.

Com efeito, estes são dois movimentos, enquanto aquele que é sempre imovelmente idêntico não convém que se torne nem mais velho e nem mais jovem no curso do tempo, nem o ser que deveio em certo momento, nem o devir de agora e nem o devir que ocorrerá: nada, em suma, lhe convém em relação ao que a geração conferiu às coisas que se movem na ordem do sensível, que são formas do tempo que imita a eternidade, e se move ciclicamente segundo o número.

E, além destas coisas, dizemos também outras: aquilo que deveio “é” devindo, aquilo que devirá “é” deveniente, aquilo que devirá no futuro “é” o que devirá no futuro, e o não-ser “é” não-ser; e sobre estas coisas não dizemos nada de maneira correta.

Mas sobre estas coisas não seria o momento propício, na presente circunstância, de discutir com precisão.

Portanto, o tempo foi produzido juntamente com o céu, a fim de que, assim como nasceram juntos, se dissolvessem também juntos, se alguma vez houver uma dissolução deles. E foi produzido com base no modelo da realidade eterna de modo que lhe fosse semelhante no grau mais alto, na medida do possível. De fato, o modelo é um ser para toda a eternidade, enquanto o céu, até o fim, por todo o tempo foi gerado, é e será161.

160 Idem, p. 26-27.

161 Timeu, 37c-38c (PLATONE. Tutti gli scriti, p. 1366-1367. Na edição italiana consultada: “Il Padre

generatore, quando osservò questo mondo in movimento e vivente e immagine degli dèi eterni, se ne compiacque, e, rallegratosi, pensò de renderlo ancora più símile all’esemplare. E, dunque, poiché quell’esemplare è Vivente eterno, cosi anche quest’universo, per quanto era possibile, Egli cerco di renderlo símile ad Esso. Ora, abbiamo notato che la natura del Vivente è eterna, e questa non era possibile adattarla perfettamente a cio che è generato. Pertanto Egli penso di produrre uma imagine móbile dell’eternità, e, mentre costituisce l’ordine del cielo, dell’eternità che permane nell’unità, fa um’immagine eterna che procede secondo Il numero, che è appunto quella che noi abbiamo chiamato tempo. Infatti, i giorni e Le notti e i mesi e gli anni, che non esistwevano prima che Il cielo fosse generato, Egli li generò e produsse insieme Allá costituizione del cielo medesimo. E tutte queste sono parti del tempo, e l’ “era” e Il “sará” sono forme generate di tempo, che non ci accorgiamo di riferire all’essere eterno in modo non correto. Infatti diciamo che Esso “era”, “è” e “sará”; invece ad esso, secondo Il vero ragiobamento, solamente l’ “è” si addice, mentre l’ “era” e Il “sara” conviene che si

O texto de Platão deixa claro ao leitor alguns pontos importantes, que merecem destaque. O primeiro ponto relevante para a discussão deste capítulo desta tese é o de que, no Timeu, o tempo foi criado ou, mais especificamente, gerado (e essa distinção entre geração e criação revela-se mais significativa quando se trata particularmente do pensamento cristão). O tempo, então, teve um início no pensamento de Platão, assim como no pensamento de Agostinho que será exposto a seguir. Esse ponto, porém, não é suficiente para dizer que Dupré está absolutamente errado ao afirmar que os gregos não distinguem eternidade do tempo, pois é preciso levar outros pontos em consideração. Outro ponto importante a ser destacado é que, em Platão, o tempo é uma “imagem móvel da eternidade”, e “foi produzido com base no modelo da realidade eterna de modo que lhe fosse semelhante no grau mais alto, na medida do possível”, como citado acima. Isso quer dizer que o movimento e a mudança já eram identificados por Platão como relacionados ao tempo, assim como no pensamento cristão subsequente. Mas não são atributos exclusivos do tempo. Wilberding ressalta bem esse ponto da cosmologia platônica:

Recontando brevemente, dois estágios da história da criação no Timeu que precedem a introdução do tempo mostram que mudança (movimento) e duração existem independentemente do tempo. Antes que o Demiurgo sequer começasse a criar o Cosmos, há um estado de coisas inicial que podemos chamar de estágio pré-cósmico, e que é caracterizado por um “movimento discordante e desordenado”. O Demiurgo, então, começa a impor ordem inteligível ao criar o corpo e a mente do universo. Esta Alma-do-Mundo é descrita como sendo não apenas espacialmente extensa – ela se parece com um complexo de oito círculos concêntricos – mas até mesmo se mantém em movimento espacial, na medida em que cada um desses círculos se move em revolução. São essas revoluções da alma as responsáveis pelo movimento dos planetas e estrelas, já que esses estão contidos naquela. Neste ponto há um cosmos (embora ainda incompleto), mas o tempo ainda não existe; então, vamos nos referir a isso como um estágio cósmico pré-temporal. Ambos esses estágios envolvem movimento e, portanto, duração, mas nenhum deles é tempo. O próprio Platão enfatiza esse ponto quando ele chama a atenção para o fato de que o universo está “em movimento e vivo”.162

dicano della generazione che si svolge nel tempo. In effeti, questi due sono movimenti, mentre cio che è sempre immobilmente idêntico non conviene che divenga né più Vecchio né più Giovane nel corso del tempo, né l’essere divenuto ad um certo momento, né Il divenire ora, né Il divenire in avvenire: nulla, insomma, gli conviene di quanto la generazione há conferito alle cose che si muovono nell’ordine del sensibile, che sono forme del tempo che imita l’eternità, e si muove ciclicamente secondo Il numero. E, oltre a queste cose, diciamo anche queste altre: cio che è divenuto “è” divenuto, cio che è diveniente “è” diveniente, cio che “è” per divenire in futuro “è” per divenire in futuro, e Il non-essere “è” non essere; e di queste cose nulla diciamo in modo correto. Ma intorno a queste cose non sarebbe Il momento giusto, nella presente circostanza, di discutere com precisione. Dunque, Il tempo fu prodotto insieme com Il cielo, affinché, cosi come erano nati insieme, si dissolvessero anche insieme, se mai dovesse avvenire uma loro dissoluzione. E fu prodotto in base al modello della realtà eterna in modo che gli fosse al più alto grado símile nella misura del possibile. Infatti Il modello è um essere per tutta l’eternità, mentre Il cielo fino Allá fine per tutto Il tempo è stato generato, è e sara”).

162 James WILBERDING. Eternity in Anciente Philosophy, p. 27. No original: “Briefly recounting two stages of

the Timaeus’ creation story that precede the introduction of time shows that change (motion) and duration exist independently of time. Before the Demiurge even begins to create the cosmos there is an initial state of affairs

Ora, a cosmologia platônica, tal como exposta no Timeu, pode até mesmo apresentar semelhanças com a cosmologia cristã (que será abordada abaixo na exposição das reflexões de Agostinho sobre o tempo), mas fica claro que ela atribui movimento, duração e mudança ao âmbito do αιων, da eternidade. Kierkegaard (e mais especificamente Climacus) e Agostinho, ao contrário, vão tomar como premissa a ideia de que mudança só pode ser atributo do temporal, e não da eternidade. Segundo a interpretação de Wilberding, Platão considera o tempo como algo que vem a ser, que devém, com a criação dos astros. Dias, noites, anos, meses, são unidades de tempo dadas pelo movimento dos astros163, mas o próprio movimento, assim como a noção de “duração”, são pré-existentes ao tempo. Como expõe Wilberding: “[...] eternidade, embora não possua tempo, não é necessariamente extra- duracional”164. Há mais a se dizer sobre o que Platão entende por eternidade, e a análise de Wilberding se aprofunda nesse tema. Para o propósito desta tese, porém, basta estabelecer os pontos de distinção que estão sendo delineados com a premissa platônica já abordada, de que o movimento (e, consequentemente, mudança) não é atributo exclusivo do tempo.

A questão da eternidade no pensamento neoplatônico e os desdobramentos desse problema na filosofia da antiguidade tardia, especialmente na obra de Plotino, serão abordados no capítulo 3 desta tese, no qual serão discutidas mais atentamente as implicações onto-antropológicas da distinção entre o eterno e o temporal. Tendo em mente o que foi dito sobre Platão e sua narrativa da criação do tempo no Timeu, é possível passar agora à exposição principal sobre as distinções entre tempo e eternidade nos pensamentos agostiniano e kierkegaardiano, salientando que Agostinho, ao contrário de Platão, levará o problema do tempo às suas últimas consequências, revelando seu caráter eminentemente aporético, abrindo caminho para o posterior desenvolvimento da ideia kierkegaardiana de Paradoxo Absoluto.

No início de sua obra Tempo e Narrativa, Paul Ricoeur reconhece a dificuldade de se refletir sobre a questão do tempo em Agostinho de forma isolada do problema das relações entre tempo e eternidade:

which we might call the pre-cosmic stage and which is characterized by a ‘discordant and disorderly motion.’30 The Demiurge then begins to impose intelligible order by creating the body and the soul of the universe. This World-Soul is described as being not only spatially extended – it resembles a complex of eight concentric circles – but even as engaged in spatial motion, as each of these circles is revolving. It is these revolutions of soul that are to account for the movements of the planets and stars, once the latter are embedded into the former. At this point there is a cosmos (though it is not yet complete), but time still does not yet exist, so let us refer to this as the pre-temporal cosmic stage. Both of these stages involve motion and thus duration, but neither of them is in time. Plato himself emphasizes as much at the start of our passage, when he draws attention to the fact that the universe is ‘in motion and alive’.”

163 Cf. Idem, p. 28.

[...] eu inicio minha leitura do livro XI das Confissões no capítulo 14:17 com a questão: ‘O que, então, é o tempo?” Não ignoro que a análise do tempo é estabelecida dentro da uma meditação sobre as relações entre tempo e eternidade, inspiradas pelo primeiro versículo do Gênesis, in principio fecit Deus... Neste sentido, isolar a análise do tempo desta meditação é fazer uma violência contra o texto [...]165.

Ricoeur reconhece, assim, a dificuldade de se pensar a ideia de tempo em Agostinho de maneira separada do problema das relações entre tempo e eternidade. Mas este tema da reflexão filosófica sobre o tempo em Agostinho não apresenta apenas esta dificuldade. A investigação do contraste entre tempo e eternidade sob a ótica agostiniana revela outros problemas, de tal maneira que Ricouer chega a falar de um “caráter aporético da pura reflexão sobre o tempo”166. Prosseguindo em seu texto, Ricoeur discorre:

Não obstante, uma certa justificativa para esta violência pode ser encontrada no próprio raciocínio de Agostinho, o qual, quando se ocupa com o tempo, não mais se refere à eternidade exceto para enfatizar mais fortemente a deficiência ontológica característica do tempo humano e para lidar diretamente com as aporias que afligem tal concepção de tempo. [...] isolada da meditação sobre a eternidade [...] a análise agostiniana do tempo apresenta um caráter altamente interrogativo, e até mesmo aporético, que nenhuma das antigas teorias sobre o tempo, desde Platão até Plotino, levaram a tamanho grau de perspicácia. Agostinho, como Aristóteles, não apenas prossegue sempre com base nas aporias transmitidas pela tradição, mas a resolução de cada aporia faz surgir novas

No documento humbertoaraujoquagliodesouza (páginas 74-104)

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