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CAPÍTULO 1: Modelos teóricos para o uso de questões sociocientíficas no ensino de

5.1 Coerências entre fundamentos, métodos e fins em cada modelo analisado

De um modo geral, todos os artigos apresentam certa coerência entre fundamentos, meios e fins da educação científica a partir de QSCs, sendo alguns trabalhos mais alinhados (por exemplo, artigos 2, 3, 5, 7, 9, 11), e outros menos alinhados (por exemplo, artigos 1, 13, 15).

No modelo do artigo 5, por exemplo, a ênfase sobre aspectos relacionados ao conhecimento científico, contextualizado por casos sobre QSCs, facilita o interesse dos estudantes para a aplicação da ciência em questões cotidianas. Apesar de ser um modelo em que os componentes poderiam, em nossa perspectiva, ter características mais críticas12, não há contradições entre as classificações nas categorias analisadas e os objetivos da educação assumidos pelos autores. No modelo do artigo 7, os autores superam uma perspectiva ética antropocêntrica, ao adotarem um posicionamento ecocêntrico, consistente com a ideia defendida na corrente de justiça socioambiental, além de criticar pensamentos e práticas hegemônicas em relação ao alcance da consideração moral. Adicionalmente, ao fomentar a educação para virtudes para agir no âmbito dos sistemas socioecológicos, em busca de maior justiça a indivíduos, sociedades e ambientes, a partir de trabalho coletivo e denúncia de valores e ideologias dos atores sociais envolvidos nas QSCs, há coerência com a formação de identidade e caráter do estudante, o que se alinha à corrente do desenvolvimento moral e às abordagens pedagógicas sociocríticas. Ainda, ressalta-se que os três trabalhos (artigos 6, 7 e 9) que defendem a educação CTSA voltada para a justiça socioambiental o fazem em consonância com abordagens pedagógicas sociocríticas, e com a perspectiva teórica- epistemológica transformacionista, indicando um adequado alinhamento e coesão entre fundamentos, meios e fins.

Ainda assim, algum grau de inconsistência pode ser notado, em alguns artigos analisados. Por exemplo, no artigo 1, apesar do autor mencionar a importância da autonomia e da participação crítica sobre QSCs, assume apenas processos de ensino e

12 Nesse modelo, consideramos que o potencial da QSC é subutilizado por não fomentar algo que é

possibilitado na adoção de QSCs na educação científica, relacionado ao aprofundamento sobre aspectos éticos e políticos para melhor tomada de decisão do cidadão, voltado a um letramento científico crítico, por exemplo.

aprendizagem conceituais, sem adotar métodos para uma reflexão crítica sobre o status quo e ideologias e valores que orientam ações individuais e coletivas; ou seja, falta consideração sobre aspectos éticos e políticos para o alcance do objetivo de empoderar cidadãos. O modelo, da forma como foi apresentado, dificulta a preparação do estudante para mudar estruturas e práticas sociais, que mantêm, por exemplo, problemas socioambientais, pois não há aprofundamento sobre conexões entre CTSA e uma perspectiva crítica sobre processos de manipulação e dominação social. No artigo 15, não há implicação direta e simples, entre a defesa da formação de identidade do sujeito, e o predomínio de estratégias em que prevalece o desenvolvimento cognitivo-motor, em que predominam dimensões conceituais e procedimentais dos conteúdos, numa ênfase das relações CTSA conforme raciocínio lógico e argumentação. Do modo como é apresentado, parece que tanto a abordagem pedagógica como a tendência de educação CTSA adotadas são insuficientes para o alcance desse objetivo do ensino de ciências, que deveria incluir, explicitamente, uma formação ética, conforme nossa perspectiva. Nesse quesito de alinhamento entre, por um lado, meios didáticos, e, por outro, fins pretendidos da educação científica, o mesmo podemos dizer para o artigo 13, ou seja, a adoção de abordagens utilitarista, antropocêntrica, neocognitivistas é insuficiente para o alcance de empoderamento e engajamento para justiça social global, uma vez que essas perspectivas não fomentam desenvolvimento de virtudes, ampliação de consideração moral, concepção ampla de conteúdos, além do que não contemplam a complexidade de pensamentos e ações individuais e coletivas. No artigo 14, em que se recomenda que o estudante assuma o ponto de vista do outro, caso esse movimento não seja adequadamente refletido, a perspectiva de assumir o lugar do outro poderia reforçar, por exemplo, estereótipos de identidade, principalmente sobre minorias sociais, frequentemente excluídas da consideração moral. Dessa forma, o alcance de um letramento científico funcional, veiculado pela empatia e capacidade de raciocínio, poderia ser dificultado. Este não é, contudo, um problema interno da ideia de fomentar a empatia e a capacidade de raciocínio; o problema é muito mais sobre como adotá-las, sem perceber que seria necessário algo mais, como, por exemplo, a própria reflexão crítica sobre valores, a fim de superar limitações de usar apenas tais ideias. Outro

exemplo de inconsistência seria a adoção uma perspectiva ética antropocêntrica para o desenvolvimento de empatia em situações que envolvem animais não-humanos.

Apesar das diferentes abordagens, apresentadas na literatura, que podem fundamentar os modelos teóricos sobre o uso de QSCs no ensino de ciências, percebemos uma predominância de posicionamentos pós-positivistas (nove artigos) e antropocêntricos (treze artigos). Isso pode indicar uma tendência na literatura em desconsiderar outros posicionamentos e fundamentos para a educação científica com QSCs, inviabilizando um aprofundamento na abordagem das QSCs, por exemplo, a partir de um raciocínio ético biocêntrico, que considera moralmente todos os seres vivos, enquanto indivíduos com um valor intrínseco, independente do uso humano. Contudo, oito trabalhos estão associados à perspectiva ética das virtudes, e seis artigos à vertente da educação CTSA por valores e desenvolvimento moral. Adicionalmente, quase todos os artigos classificados na vertente sociocultural e multiculturalismo estiveram relacionados com a teoria ética das virtudes. Isso é uma característica esperada, uma vez que um dos objetivos gerais da educação CTSA é a inserção de discussões éticas sobre as controvérsias relacionadas às QSCs. Outra característica comum na educação CTSA é o incentivo a habilidades relacionadas à comunicação científica, a partir de argumentação e lógica. Nesse trabalho, identificamos oito artigos que destacam a importância dessa formação, classificados na vertente raciocínio lógico e argumentação. Em relação às abordagens pedagógicas, seis artigos foram caracterizados nas perspectivas holísticas, cinco nas cognitivistas e quatro artigos com predominância nas perspectivas sociocríticas (sendo que dois desses – os artigos 7 e 9 – apresentam também influência de abordagens holísticas, ou seja, não se restringem a apenas uma vertente pedagógica, mas ampliam para outro conjunto, de modo a aumentar a possibilidade de alcance dos objetivos educacionais). As abordagens holísticas e sociocríticas são grandes categorias que têm influenciado o desenvolvimento de inovações didáticas, principalmente no sentido de superar problemas das perspectivas tradicionais e tecnicistas, mas também voltadas a uma visão mais ampla do ensino de ciências, incluindo interdisciplinaridade, contextualização socioambiental e política, e aumento de participação ativa do estudante na mobilização de conteúdos para a resolução de problemas socioambientais do cotidiano. Por outro lado, as abordagens

neocognitivistas, apesar de terem características e estratégias muito relevantes para a formação científica dos estudantes, quando predominantes no contexto educacional, podem representar, em alguma medida, a manutenção de perspectivas mais conservadoras, hegemônicas e conceitualistas, no âmbito da pesquisa e da aplicação em educação, que muitas vezes dificulta o engajamento e a formação necessária do estudante para perceber, refletir e superar valores e práticas hegemônicos que contribuem para a manutenção ou o agravamento dos problemas socioambientais atuais. A percepção e a reflexão sobre valores e práticas hegemônicos demandam sensibilização (ex. empatia), criticidade (ex. não se acomodar com as opções estabelecidas), engajamento (ex. sentir-se parte) e participação ativa (ex. reconhecer a importância da participação individual e coletiva), atitudes que são mais facilmente mobilizadas em estratégias pedagógicas holísticas e sociocríticas.

Em alguns casos, não foram explicitadas13 as bases teóricas dos frameworks, o que pode indicar ausência ou insuficiente reflexão sobre a coerência entre fundamentos, meios e fins da educação científica, sendo essa reflexão essencial para melhor qualificar essas propostas e aumentar as possibilidades de aplicação na educação científica.

Alguns trabalhos não explicitam as noções de valor que adotam com relação à natureza não-humana, tornando-se mais difícil esclarecer a perspectiva ética com relação ao alcance da consideração moral. Na medida em que, neste trabalho, discutimos e explicitamos quatro critérios relevantes para a organização clara de modelos teóricos sobre QSCs, indicamos a importância destes critérios para a proposição de novos modelos teóricos, mais abrangentes e capazes de esclarecer consonâncias entre fundamentos, meios e fins da educação científica a partir de QSCs.

Em nossa perspectiva, a abordagem antropocêntrica, presente na maior parte dos artigos analisados, é insuficiente para a consideração de problemas socioambientais, uma vez que a desconsideração moral da natureza não-humana (i.e. de outros organismos, comunidades, ecossistemas, etc.) é um problema moral relevante14

13 Além disso, cabe destacar que o que o autor escolhe para justificar seu argumento é o que ele valoriza,

e o que ele não explicita é o que ele provavelmente não considera relevante ou adequado para o contexto (desde o ponto de vista do autor). Nesse sentido em que se poderia refletir sobre discursos e valores nas propostas educacionais, por exemplo sobre QSCs, o que não é objetivo desse trabalho.

14 Consideramos ao menos dois conjuntos de razões para a superação do antropocentrismo no

(JAMIESON, 2010), que influencia a própria resolução das QSCs (CONRADO; EL-HANI; NUNES-NETO, 2013).

Como forma de fornecer mais detalhes sobre as análises realizadas, no Apêndice A, poderão ser encontrados Quadros com fragmentos de cada texto analisado para exemplificar cada categoria encontrada nos aspectos analisados. Também, no Apêndice B, poderá ser localizada uma descrição geral e sucinta de cada um dos artigos analisados, com algumas informações relevantes que justificam as classificações encontradas.