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CAPÍTULO 3: Implementação e avaliação de modelo teórico com questões sociocientíficas

3.3 Presença de discurso cientificista em argumentos e questionários

Em primeiro lugar, cabe notar que, em aulas anteriores aos encontros para a discussão de questões sociocientíficas, os estudantes debateram concepções equivocadas da ciência, com base no texto de Gil-Pérez et al. (2001). Desse modo, consideramos que os estudantes teriam condições de discutir, ao menos inicialmente, algumas questões associadas ao discurso cientificista.

No primeiro caso, entre as seis equipes que optaram por investir em novas técnicas e tecnologias para evitar o fungo, duas equipes enfatizaram crença em novas técnicas da agricultura, como garantia da produção e do lucro, caracterizando presença do mito do salvacionismo tecnológico. Segundo Auler e Delizoicov (2006); Rosa e Auler (2016), que também discutiram resultados semelhantes, devido à falta de discussão sobre as interações entre CTSA na formação do cidadão, a perspectiva salvacionista/redentora ainda é comumente encontrada no discurso docente e discente, e gera uma atitude passiva do cidadão diante do desenvolvimento científico-tecnológico.

Após os estudantes exporem seus argumentos, indicamos um exemplo de um argumento simples para justificar uma tomada de decisão sobre o caso 1 (Figura 2), que possibilitou a discussão de elementos cientificistas sobre o tema da QSC, como por exemplo, acreditar na solução exclusivamente técnica para um problema socioambiental; interesses e pressões da indústria no desenvolvimento científico e tecnológico de novos agrotóxicos e substâncias para a manutenção dos meios de produção. Além disso, outros temas, relacionados com o desenvolvimento de pensamento crítico, foram discutidos, como: a escolha pela manutenção da monocultura, como se não houvesse outras formas viáveis e sustentáveis de produção de alimentos; os valores e ideologias sobre o uso da terra; e a seleção de informações pelos meios de comunicação de massa, orientada por determinados valores, que oculta dados relevantes sobre problemas socioambientais complexos relacionados ao uso excessivo de agrotóxicos em monoculturas.

Figura 2 – Exemplo de argumento com os elementos do modelo de Toulmin para a tomada de decisão sobre o caso 1.

No segundo caso, apenas um dos argumentos (B) indica hábitos sobre uso exagerado de medicamentos pela população, enquanto as outras equipes assumem o modelo biomédico de saúde como base para a argumentação, sem o questionamento sobre práticas sociais limitadas a esse modelo, como, por exemplo, a dependência por tecnologias de diagnóstico e tratamento, ignorando dimensões socioculturais dos problemas de saúde. Não considerar possibilidades alternativas à responsabilização de médicos e cientistas para a promoção da saúde, e, nesse caso, para reduzir a frequência de bactérias resistentes aos antibióticos, é, em certa medida, reforçar sociedades tecnocráticas, por exemplo, ao responsabilizar somente o profissional da medicina (argumento H) ou ao depender de medicamentos industrializados (argumento I) para manutenção da saúde. O conhecimento construído sobre pressupostos do modelo biomédico também está intimamente relacionado com o discurso cientificista (FRANKFORD, 1994; BELKIN, 1997; WADE; HALLIGAN, 2004; AL-AZRI, 2012). A partir do argumento sobre o caso 2 (Figura 3), discutimos questões básicas de argumentação relacionado ao tema da QSC. Para uma argumentação mais ampliada, se houver tempo no planejamento, sugerimos usar um argumento com base nas Figuras 4 e 5 sobre a QSC, que consideram, respectivamente, aspectos sobre conhecimentos científicos e tecnológicos, e condicionantes sociais e ambientais, associados ao caso.

Figura 3 – Exemplo de argumento com os elementos do modelo de Toulmin para a tomada de decisão sobre o caso 2.

Figura 4 – Exemplo de argumento considerando conhecimentos científicos e tecnológicos que justificam a tomada de decisão sobre o caso 2.

Figura 5 – Exemplo de argumento considerando condicionantes sociais e ambientais que justificam a tomada de decisão sobre o caso 2.

No terceiro caso, notamos que algumas equipes optaram por soluções técnicas à situação. Geralmente, as QSCs exigem também soluções relacionadas às reflexões sobre comportamento, políticas públicas, discussão de valores (BEARZI, 2009). É interessante notar que duas equipes indicaram, em suas justificativas, a necessidade de comprovação empírica sobre a influência do agrotóxico neonicotinóide na morte de abelhas, como se isto fosse possível e mesmo suficiente para ações de redução das aplicações do agrotóxico. Tal sugestão pode indicar a presença de uma concepção ingênua de objetividade e verdade científica no discurso desses estudantes, uma vez que assume a ideia de que a ciência pode comprovar suas alegações, supostamente alcançando a verdade sobre os fenômenos de interesse, e com base, somente, na experiência (CONRADO; CONRADO, 2016a). Essa concepção ingênua, associada ao princípio da verificação, proposto por positivistas lógicos, foi duramente criticada na filosofia da ciência, a partir dos anos 1950 por filósofos pós-positivistas, como Popper, Quine e Kuhn (CHALMERS, 1993; DUTRA, 2009).

Em quase todos os argumentos (exceto da equipe B), os estudantes partem da premissa de que os agrotóxicos prejudicam as abelhas. Nas equipes A, C, D, E, G, I, a condição de refutação é sobre essa premissa, ou seja, ao indicar dados e garantias com

base em apoios na literatura, por um lado, e refutações com base na invalidade dos dados, por outro lado, os estudantes perdem a oportunidade de fortalecer o argumento com base na discussão de condições em que a conclusão não é aplicada. Apesar de que refutações são muitas vezes afirmações que se opõem aos dados ou às garantias, que indicam circunstâncias em que as garantias não se aplicam ou condições de exceção (CONRADO; NUNES-NETO; EL-HANI, 2015), a oposição da afirmação (dado, garantia e conclusão) sem alguma fundamentação enfraquece a própria refutação.

As discussões a respeito do caso, após a apresentação das equipes, ocorreram com base no argumento da Figura 6. Uma questão, retomada dos casos anteriores nesse caso, foi a discussão sobre o valor que atribuímos aos animais não humanos. O valor ecológico, sociocultural, econômico, instrumental, intrínseco, entre outros, irá determinar nossas ações e pontos de vista a respeito da manutenção da monocultura, a despeito de suas consequências socioambientais (CONRADO; NUNES-NETO, 2015b; DE GROOT; WILSON; BOUMANS, 2002). Em espaços educativos, não discutir ou problematizar os valores que influenciam nossas práticas sociais é, de certa forma, contribuir para a manutenção de ideologias e padrões de dominação e opressão, por não promover o desenvolvimento de criticidade e autonomia (LASTÓRIA et al., 2013).

Figura 6 – Exemplo de argumento com os elementos do modelo de Toulmin para a tomada de decisão sobre o caso 3.

No questionário B, em relação à questão “Você considera que o uso adequado do agrotóxico permite a eliminação total das pragas? Justifique.”, 36 estudantes consideraram que o agrotóxico não afetaria todas as pragas, justificando, principalmente, com base no conhecimento sobre seleção natural (ex. “agrotóxico como agente de seleção sobre as pragas”) e variabilidade genética de uma população (ex. pela “possibilidade de existir indivíduos resistentes ao agrotóxico”) (FUTUYMA, 2005; RIDLEY, 2006). Conhecimentos sobre interações ecológicas, como competição e predação, também foram mencionados como fatores que interferem no número de pragas de um cultivo (BEGON; TOWNSEND; HARPER, 2007; RICKLEFS, 2010). Apenas quatro estudantes afirmaram que o agrotóxico eliminaria todas as pragas de um cultivo, justificando, por exemplo, que “é um produto voltado a esse fim”, ou ainda que seria apenas necessário seguir “normas técnicas, conforme os produtores do agrotóxico”, indicando possíveis concepções relacionadas a um otimismo ou salvacionismo tecnológico e a uma tecnocracia, como se o mero cumprimento de normas ou procedimentos técnicos fosse suficiente para a resolução de um problema socioambiental complexo, ou ainda que o especialista deteria conhecimentos suficientes para justificar o uso seguro do produto (HEMPEL, 2014). Ainda, cabe ressaltar que a resposta: “existe total comprovação científica de que os agrotóxicos eliminariam toda a praga em questão” pode indicar uma concepção de objetividade e verdade científica, no discurso dos estudantes (GIL-PÉREZ et al., 2001; LACEY, 2010).

Na questão “Você considera que a ciência e a tecnologia são atividades praticadas sem a influência de valores e interesses? Justifique.”, todos responderam que a ciência e a tecnologia não são livres de interesses e valores, destacando o interesse financeiro de corporações privadas que possuem como principal valor o lucro, como no exemplo: “grandes multinacionais, visando seus interesses próprios”; ou a influência de certos grupos sociais, como oligarquias político-econômicas, sobre as decisões públicas acerca de prioridades para investimentos em áreas e linhas de pesquisas científicas e tecnológicas: “interesses políticos e lobbysmo que ocorrem no congresso nacional, influenciando e direcionando verbas e investimentos na ciência e na tecnologia”. Com relação a esta questão, nenhuma das respostas evidenciou concepções cientificistas.

Por fim, na questão “Você considera que a tecnologia poderá resolver os problemas humanos sociais e ambientais? Justifique.”, 20 estudantes negaram que a tecnologia poderia resolver problemas sociais e ambientais, enquanto 20 estudantes afirmaram que havia essa possibilidade. Nesse último ponto, podemos destacar justificativas contraditórias à afirmação de estudantes, que indicaram outros aspectos, além do científico, para a resolução dos problemas sociais e ambientais: “Sim, se associada a valores éticos e de sustentabilidade ambiental”. Aparentemente, a premissa oculta no raciocínio desses estudantes está em assumir a eficiência/suficiência na condição de eficiência da tecnologia para a solução desses problemas, desde que se considerem aspectos que não são distintivos e exclusivos da ciência e da tecnologia, como elementos de uma dimensão humanística e crítica (por exemplo, a consideração de fatores da ética). Nesse aspecto, poderíamos destacar uma concepção de linearidade no avanço científico-social, considerando o desenvolvimento científico e tecnológico suficiente para o progresso social. Cabe mencionar, ainda, que a vagueza e a redação em poucas palavras, nas respostas dos estudantes às questões, muitas vezes dificultou ou não permitiu uma análise mais aprofundada do discurso escrito.