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CAPÍTULO 2: Um modelo teórico para o ensino a partir de questões sociocientíficas:

2.1 Uso de casos e questões norteadoras para a abordagem das QSCs

Inspirando-nos em Sá e Queiroz (2010), Lima e Linhares (2008) e Velloso et al. (2009), assim como em trabalhos prévios nossos (CONRADO; EL-HANI; NUNES-NETO, 2015; CONRADO, 2013; CONRADO et al., 2012), nos parece adequado abordar QSCs na forma de casos, construídos como histórias curtas, contendo, se possível, diálogos e personagens que se aproximam do(s) contexto(s) sociocultural(is) dos estudantes. A este elemento das propostas de ensino baseadas em QSCs denominamos simplesmente caso ou história. A organização de uma sequência de eventos na forma de uma história, como no uso de narrativas, é um modo de explicitar diferentes interpretações, pontos de vista, crenças e juízos de valor, além de permitir a aproximação do tema controverso com o estudante, contribuindo para sua sensibilização e seu engajamento (ZEIDLER et al., 2005; LEVINSON, 2006). As narrativas, conforme Faraco (1992), são compostas por enredo; pessoas ou personagens; lugar da ocorrência dos fatos; narrador e foco narrativo (i.e. ponto de vista do narrador, podendo ser um personagem da história ou um narrador que não participa da história). Como recurso didático, as narrativas possibilitam o diálogo e a articulação entre os conteúdos de diferentes áreas do conhecimento, além de suscitar a participação indireta do leitor sobre os fatos, processos e atividades da ciência (SANTOS; CARMO, 2015).

O uso de casos – como temos defendido – nos permite observar possíveis tomadas de decisão, que envolverão, sobretudo, os elementos da dimensão atitudinal. Na discussão sobre razões que influenciam a tomada de decisão, além dos conhecimentos científicos e tecnológicos e conhecimentos não científicos e não tecnológicos, elementos de ética poderão ser colocados, pelo professor, como: as teorias éticas que fundamentam a justificativa para a decisão tomada (RACHELS, 2006; SINGER, [1981] 2011); e a ontologia moral para a consideração moral dos envolvidos (FELIPE, 2009; SINGER, [1981] 2011). Nesse sentido, o uso de casos sobre QSCs, além de aumentar o interesse dos estudantes pela ciência, contextualizada em situações cotidianas (EKBORG; IDELAND; MALMBERG, 2009; CONRADO, 2013), potencializa a promoção de habilidades de pensamento crítico, desenvolvimento moral e também auxilia na configuração de um ambiente para o desenvolvimento de empatia e engajamento, tanto no discurso, como na reflexão sobre relações CTSA (ZEIDLER et al., 2005; KAHN; ZEIDLER, 2016).

Contudo, o caso por si só pode ser mal ou subutilizado para o desenvolvimento de habilidades, conhecimentos e atitudes, uma vez que é amplo, complexo, etc., o que pode dificultar o alcance dos objetivos de aprendizagem pelos estudantes. Deste modo, a fim de mobilizar determinados aspectos, sobretudo dos problemas sociocientíficos presentes no caso, de acordo com nossa abordagem, no contexto educacional, sugerimos a utilização do que chamamos de questões norteadoras (podendo ser também denominadas orientadoras ou mobilizadoras). Estas são, simplesmente, questões claramente colocadas como perguntas sobre o caso e/ou sobre aspectos globais que podem estar instanciados no caso, e que demandarão, dos estudantes, ações condizentes com os objetivos de aprendizagem previamente definidos. Conforme Fullick e Ratcliffe (1996), as questões norteadoras se aproximam da estratégia de discussões, em grupos, sobre questões que dirigem, de modo equilibrado, a atenção dos estudantes para a natureza do problema, as possíveis soluções e estimulam um debate crítico acerca dos valores que fundamentam as diferentes soluções. Jones et al. (2012) indicam o uso de questões norteadoras para mostrar complexidades, diferentes escalas (pessoal, local, nacional, global, etc.) e múltiplas perspectivas. Ainda, as questões norteadoras podem ter diferentes graus de profundidade sobre a discussão de determinados aspectos do caso. Desse modo, os estudantes poderão, inicialmente, responder questões mais gerais sobre o caso, e, conforme a ocorrência de discussões que sugerem aprofundamento de alguns conteúdos, outras questões, mas específicas, poderão ser elaboradas pelos estudantes ou sugeridas pelos professores, segundo os objetivos de aprendizagem estabelecidos.

Em relação ao desenvolvimento de argumentos sobre o caso (que apresenta a QSC), as respostas às questões norteadoras/orientadoras podem contribuir, por exemplo, para a elaboração de componentes de um argumento, como dados, garantias, justificativas, apoios teóricos, exemplos, refutações, qualificações e contra-argumentos possíveis para a solução do caso (JIMÉNEZ-ALEIXANDRE; FREDERICO-AGRASO, 2006; OSBORNE; EDURAN; SIMON, 2004; DRIVER; NEWTON; OSBORNE, 2000).

Esse processo levará ao aumento da compreensão de teorias e conceitos científicos, da investigação sobre técnicas e tecnologias, do entendimento de implicações e influências de sociedade, política e valores de atores sociais envolvidos, dos juízos

sobre esses atores sociais e consequências socioambientais das diferentes decisões, e, por fim, das tomadas de decisões socialmente responsáveis, sendo todos esses aspectos relacionados à QSC aplicada nas aulas de ciências. Além disso, os estudantes poderão praticar o trabalho coletivo, as colaborações entre universidade/escola e comunidade do entorno, as discussões sobre os meios de comunicação de massa, a divulgação de informações e de resultados sobre a investigação acerca da QSC, entre outras atividades que extrapolam os limites do trabalho em sala de aula.

Cabe notar que propomos questões norteadoras como parte do modelo, para apresentar e discutir questões sistematicamente colocadas pelo professor (ou até pelos estudantes, se já souberem lidar com as QSCs em sala de aula, ou, ainda, se souberem se organizar para definir conteúdos que representam lacunas de aprendizagem). Essas questões constituem um meio para fomentar processos dialógicos e de argumentação em ambientes de aprendizagem, sobretudo quando relacionam o caso aos objetivos de aprendizagem. Para promover adoção de posição (assunção ‘de um lado’) dos estudantes e discussão sobre valores envolvidos no caso, recomendamos que os casos, que expõem QSCs, direcionem os estudantes a tomarem decisões, discutindo relações CTSA envolvidas e levando ao engajamento dos estudantes. Especificamente, a fim de discutir as possibilidades de posicionamentos, sugerimos, como exemplos, no Quadro 1, algumas questões norteadoras/orientadoras gerais, a serem colocadas pelo professor, mas que também poderão ser aprofundadas pelos estudantes. Para cada questão, organizamos uma breve explicação, indicando sua importância para o acompanhamento do caso a ser exposto e discutido pelos estudantes.

Quadro 1 – Alguns exemplos de questões norteadoras para discussão de relações CTSA de um caso sobre uma QSC.

Que decisão você tomaria com relação ao caso? Por quê?

O estudo de casos em sala de aula nem sempre exigirá uma tomada de decisão pelos estudantes, pois a resolução do caso poderia ser simplesmente a compreensão de relações CTSA ou, também, o caso poderia ser utilizado apenas para contextualizar socialmente um tema e aproximar este do estudante, com vistas a aumentar o interesse pelos conteúdos relacionados. Desse modo, esse tipo de questão geral é relevante por, no mínimo, três razões: a) explicitar a tomada de decisão auxilia no posicionamento dos estudantes, o que contribui

para seu engajamento com a QSC e, em certa medida, reforça a importância da participação deles enquanto atores sociais; b) a tomada de decisão exige algum tipo de justificativa, o que auxilia na exposição dos conteúdos considerados relevantes pelos estudantes, além de indicar a relevância do conteúdo aprendido para a resolução de problemas socioambientais; c) promove discussões e explicitação de valores que orientam as decisões e possibilidades de ações sobre o caso.

Que conhecimentos científicos e tecnológicos são relevantes para a compreensão e a tomada de decisão sobre o caso?

Sugerimos essa questão geral, envolvendo conteúdos relacionados à ciência e à tecnologia como um modo de direcionar, explicitamente, esses conteúdos, ainda de modo geral, para os estudantes. Isso é fundamental, pois, muitas vezes, os estudantes não conseguem distinguir os conhecimentos de ciência e tecnologia que devem ser entendidos e aplicados para a compreensão e a solução do caso. Questões mais específicas, sobre conteúdos relacionados diretamente com os objetivos de ensino e de aprendizagem do contexto escolar podem derivar dessa questão geral.

Que condicionantes sociais e ambientais são relevantes para a compreensão e a tomada de decisão sobre o caso?

Esse tipo de questão geral contribui para que os estudantes percebam que apenas conhecimentos científicos e tecnológicos não são suficientes para a compreensão e a resolução de um caso sobre uma QSC, uma vez que ela envolve questões sociais complexas. Além disso, o componente ambiental está sempre presente, pois nossa sobrevivência enquanto organismo (e enquanto ser social) depende de condições ambientais mínimas, relacionadas com interações que nós estabelecemos com outros seres e com a natureza. Assim, aspectos culturais, éticos, políticos, econômicos, ambientais, etc. vão influenciar a escolha de determinados conteúdos para a compreensão do caso e caminhos para a solução do caso. A questão geral pretende explicitar alguns desses componentes, que poderão ser aprofundados em questões mais específicas, de acordo com os objetivos de ensino e de aprendizagem estabelecidos.

Quais as consequências socioambientais de sua decisão?

Sugerimos essa questão geral para indicar a importância da reflexão por parte dos estudantes sobre a responsabilidade de nossas decisões e ações, explicitando questões éticas e políticas, nas consequências para o sujeito que toma a decisão e para outros (como outros seres vivos e a natureza). Dessa forma, os estudantes poderão discutir, refletir e fazer juízo moral sobre as diferentes consequências possíveis de suas decisões. Esse é um exercício interessante que, inclusive, contribui para avaliar se a decisão tomada, de fato, contribui para a resolução do caso.

Por fim, cabe notar que nossa perspectiva está apoiada em pressupostos teórico- epistemológicos pós-positivistas, particularmente mais orientados pela perspectiva da epistemologia engajada22 de Hugh Lacey (2010) (e não tanto pelas perspectivas mais

22 A epistemologia engajada se refere a um trabalho filosófico baseado na teoria crítica, de articulação de

clássicas dentro do pós-positivismo, como a de Kuhn ou Lakatos), que visa uma crítica às estratégias materialistas de produção de conhecimento, valores e aplicações tecnológicas, como, por exemplo, a que está presente na construção de conhecimento e práticas envolvendo os transgênicos, os agrotóxicos e o grande agronegócio. Nesse sentido, Lacey é um filósofo da ciência que assume uma articulação entre aspectos do pós-positivismo com o transformacionismo. Contudo, ainda que a posição assumida pelo autor nos pareça muito mais adequada em termos de fundamento teórico e para nossos propósitos sociais (justamente por colocar mais ênfase em valores), pensamos que é importante considerar aspectos de filosofia moral, em particular, numa educação científica com explicitação das teorias éticas normativas, dos valores envolvidos nas relações entre CTSA e das diferentes posições quanto ao alcance da consideração moral. Uma apreciação adequada dos problemas socioambientais – da nossa perspectiva – depende de olhares sobre tais problemas que advenham da filosofia moral e da ética ambiental, sobretudo no sentido de contestar as causas últimas (não apenas de conhecimento, mas em grande medida de valores, ações e práticas sociais) da crise ambiental atual, assim como dos graves problemas de injustiça que afetam a natureza e a humanidade. Por exemplo, trata-se de contestar, de modo claro e contundente, o antropocentrismo, visando uma perspectiva (seja biocêntrica, seja ecocêntrica, seja alguma combinação criteriosa de ambas) na qual mais seres – sem grandes prejuízos23 para os seres humanos – sejam moralmente considerados por sua própria natureza (ou seja, por seu valor intrínseco). Assim, por contestarmos determinados valores (ex. competição e individualismo) e práticas sociais (ex. especismo e consumismo) hegemônicos, buscando uma formação crítica, ética e política dos estudantes, também nos apoiamos em perspectivas teórico-epistemológicas transformacionistas.

relacionados, por exemplo, à produção de alimentos, aos movimentos populares e às críticas ao neoliberalismo (OLIVEIRA, 1998).

23 O debate sobre necessidades humanas, sobretudo se considerarmos interesses primários e

secundários, não é trivial e caberia um estudo e uma discussão particular sobre o assunto, o que não é o

propósito desse trabalho. Desse modo, sugerimos, inicialmente, a leitura de Singer (2004; [1981]2011); Beckert (2012) e Felipe (2009).

3 Aprendizagem de ciências considerando três dimensões dos

conteúdos

Nessa seção, defenderemos que as dimensões conceituais, procedimentais e atitudinais (CPA) dos conteúdos da educação científica são objetos adequados para uma educação científica com base na perspectiva da educação CTSA, e para uma formação mais integral dos estudantes. Para isso, discutimos uma concepção mais ampla dos conteúdos escolares/acadêmicos, especificamente nas dimensões CPA, e que abrangem o desenvolvimento de conhecimentos, habilidades, valores e atitudes essenciais voltados para uma formação mais integral dos sujeitos enquanto indivíduos efetivamente engajados em participação social. Em seguida, apresentamos um modo de se abordar essas dimensões, a partir do planejamento de objetivos de aprendizagem, de modo a explicitar dimensões CPA dos conteúdos.