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1. INTRODUÇÃO

2.3. Cognição e autopoiese

Cognição é a capacidade que um sistema vivo possui de aprender com o seu próprio operar autopoiético14.

Um ser vivo ocorre e consiste na dinâmica de realização de uma rede de transformações e de produções moleculares. (...) É a esta rede de produções de componentes, que resulta fechada sobre si mesma, porque os componentes que produz a constituem ao gerar as próprias dinâmicas de produções que a produziu e ao determinar sua extensão como um ente circunscrito, através do qual existe um contínuo fluxo de elementos que se fazem e deixam de ser componentes segundo participam ou deixam de participar nessa rede, o que neste livro denominamos de autopoiese (MATURANA, 1997, p. 15).

Os sistemas vivos são uma organização capaz de autoorganizar-se, autodeterminar-se e autocriar-se. Assim possuem a qualidade de monitorar-se a si próprios, por possuírem uma capacidade inata de aprendizagem dentro do processo de relações entre os componentes de uma rede molecular. A essa capacidade de apreender e determinar comportamentos que se diz cognição.

A cognição, fundamentadas nas obras de Humberto Maturana e Francisco Varela, pode ser representada sob três formas, conforme apresentou Daniel Silva (1998): cognição como função biológica; como processo pedagógico e como episteme.

2.3.1 Cognição como função biológica

No interior de todo ser vivo acontece uma auto-organização. Não há unidade sem ambiente, sendo este par inseparável. Todo sistema vivo está inserido em um ambiente, e para isto precisa estar organizado de tal forma que esteja acoplado estruturalmente ao ambiente, tendo, portanto sua clausura operacional interna, e a coerência de sua diversidade biológica. A auto-organização garante sua sobrevivência e possibilita seu acoplamento estrutural ao ambiente, desenvolvendo suas atividades (clausura operacional acontece dentro da unidade).

A clausura operacional vem da relação ambiente-unidade, do limite entre um e outro. Permite a unidade construir sua identidade e seu operar interno mantendo-se em relação com o ambiente onde se sente acoplado, mantendo desta forma relações de convivência e sobrevivência. Representa a

autonomia através do limite estabelecido entre unidade e ambiente. O acoplamento estrutural acontece quando a unidade recebe do meio, perturbações e gera mudanças internas estruturais, determinadas pela capacidade e limite da autonomia interna da unidade. A unidade precisa modificar-se para acoplar-se às novas perturbações. Por fim, a coerência de sua diversidade biológica se refere a quantidade de opções para o fluxo de energia e da matéria que circula de forma retro-alimentadora. Ou seja, a estrutura do sistema cognitivo muda constantemente para que o sistema se auto-organize.

Assim, os sistemas vivos aprendem para sobreviver, são cognitivos, o que explica o modelo autopoiético: todos os sistemas vivos são unidades vivas que aprendem com o operar, e a função biológica é um dos momentos, determinado pela capacidade de auto-organização dos sistemas vivos, por sua autodeterminação (individualização) e autocriação (capacidade de auto-referenciar-se nos processos de sua própria criação).

2.3.2 Cognição como processo pedagógico.

Os seres humanos são unidades autopoiéticas superiores que aprendem com o operar. A abordagem pedagógica nos fala da cognição como processo, no qual unidade e ambiente aprendem e se reconhecem mutuamente. Primeiramente deve-se reconhecer a história; em segundo lugar deve-se ser cooperativo (afetividade na construção das relações cognitivas) e estético (como padrão mediador do processo construtivista).

A ontogenia trabalha a história das mudanças estruturais na organização de um sistema vivo, mantendo a sua identidade. Para Maturana (1997), todo sistema vivo segue um curso de mudanças estruturais resultantes das interações (conjunto de relações da unidade). A conduta de uma unidade é definida pela dinâmica das relações e interações que acontecem entre ambiente e unidade. A cognição surge da capacidade de cada unidade participar e reconhecer as perturbações do domínio de interações condutuais e definir as suas próprias mudanças estruturais específicas, determinando assim sua história individual e única.

As emoções são consideradas como fundamento biológico das condutas. São dinâmicas corporais, fundamentadas por um biológico que especificam as ações no qual nos movemos. Somente as emoções − o amor − abre espaço para a afetividade e cooperação, tornando o outro um legítimo na relação comigo mesmo, oportunizando assim, a cognição. Para Maturana (1997) o amor é, portanto, a emoção fundadora dos processos cognitivos. Através dele há o reconhecimento do outro como legítimo outro na convivência. As estratégias e ações mudam, quando possivelmente mudou a emoção

no processo de aprendizagem. A legitimidade do outro é reconhecida pelo padrão de pertinência (reconhecimento de parte de si no outro), o que garante o espaço de cooperação pela identificação de unidade no ambiente e vice-versa. A força do amor é responsável, então, pela criação de um ambiente de afetividade e cooperação, o que garante o desenvolvimento de um processo cognitivo, pois exige a cooperação entre as duas unidades envolvidas. Assim o reconhecimento de padrões de pertinência é estratégia fundamental para o estabelecimento de processos cognitivos.

Por fim, a estética é outro elemento fundamental para o processo cognitivo. É um padrão resultante da autopoiese dos sistemas vivos. É entendida como espaço pedagógico de criação cognitiva. Para compreendê-la expõe-se em primeiro lugar, sobre o caminho da beleza: como resultado do acoplamento estrutural do universo, sendo o espaço de simetria (sensação de beleza), ordem (como resultado do processamento energético dos sistemas vivos) e harmonia (resultado da homeostase da autopoiese). É responsável pela permanência de estabilidade quando procura sempre o caminho de menor gasto de energia. A sobra de energia é armazenada na forma de organização, daí serem os sistemas vivos sistemas negüentrópicos (com entropia negativa). É, portanto um caminho estratégico, ecológico e difuso.

Em segundo lugar, o domínio de experiência dado por um observador, mostra o grau de afinidade deste com o caminho da beleza. Quando comparamos a beleza da natureza (negüentrópica), com a feiúra produzida pela sociedade, temos clara a diferença entre o caminho da beleza e um domínio de experiências. Assim, o domínio de experiência estético mostra o acoplamento estrutural com determinada estética, dependendo da visão de mundo do observador. Tanto a beleza como a feiura são padrões estéticos subjetivos construídos num processo cognitivo de aprendizagem com o próprio viver. Conforme Silva (1998), são extensões de uma ética que devem ser recriadas no sentido de nortearem condutas para a cooperação (estética do belo) e jamais para a degradação (estética do feio).

2.3.3 Cognição como episteme do observador

Conforme Silva (1998), a cognição como episteme representa a capacidade em aprender com o próprio aprendizado na formulação de pressupostos de como se explica uma observação. Para este autor, episteme significa as premissas com as quais explicamos coerentemente as nossas observações. Episteme é sempre episteme de alguém, de um observador, e exige conhecimento. Identificar a episteme de um conhecimento significa conhecer o conhecimento deste conhecimento.

O aprender com o operar, como uma episteme, pode ser caracterizado através de três fundamentos biológicos e, respectivas conseqüências epistemológicas dados pela obra de Maturana e Varela: as epistemes do olhar, do pensar e do explicar (SILVA, 1998).

A episteme do olhar mostra que não existem idéias passadas ao cérebro. Conforme comenta Maturana (1997), quando afirma que a objetividade pode ser colocada entre parênteses quando ela nos diz que não existem verdades absolutas, nem relativas, mas diversas verdades multiversas. Tudo que vemos deve ficar entre parênteses, pois o que vemos nunca é o todo, é sempre menos. Assim a realidade é proposição explicativa, sendo relativizada pela subjetividade do observador e do domínio explicativo no qual se encontra. Portanto, a idéia de que a visão e os demais sentidos captam e passam informações para o cérebro é derrubada pela epistemologia do modelo autopoiético. As informações externas atuam como uma perturbação sináptica que determina, engatilha um câmbio estrutural no interior do sistema, dentro das próprias possibilidades do sistema. Assim, “o que vemos, sentimos, é determinado deste dentro, e o que não vemos, não sabemos que vemos” (SILVA, 1998, p. 86).

A episteme do pensar significa conhecer como se conhece, conhecer como capacidade emergente dos sistemas cognitivos de promover distinções, descrições e reconhecimento de uma realidade, sempre através de um espírito que pensa, conversa e determina ações, num domínio de condutas interativas e recorrentes sobre si mesmo. O cérebro capacita o espírito (emergência vinda da relação cérebro e corpo) para a descrição da realidade por meio da linguagem. Assim o mundo não nos é dado a priori, é sim construído pela interação do domínio condutual entre sistema vivo e ambiente no qual vive. A subjetividade é aí valorizada com a quebra da objetividade da realidade. Como nem tudo que existe na realidade pode-se ver e sentir e saber que se viu e sentiu, relativiza-se a realidade diante da capacidade interna de vê-la.

Por fim a episteme do explicar é garantida através do acesso à linguagem, sendo esta o fundamento biológico que humaniza o ser humano. Não basta apenas a existência hipercomplexa de um cérebro isoladamente, nem do olhar ou dos sentidos, para se fazer o humano. É o conversar e a linguagem que permitem a este ser a capacidade de conceber uma emergência tal (relação corpo e cérebro resultando no espírito) que se conceba a si própria.

A linguagem é um fluir de coordenações de ações consensuais, no meio das quais as pessoas se entendem. Ela está na origem do humano. Uma personalidade não se constitui não sendo no meio de outros, através da linguagem como veículo de reconhecimento e comunicação. O cérebro, a linguagem e as emoções, do ponto de vista biológico, formam a circularidade conectiva e recorrente, onde as sensações sentidas com o emocionar proporcionam mudanças estruturais na autopoiese cerebral que capacitam o espírito a expressar o sentido das coisas, através de uma ação coordenada e condensada com o parceiro ou ambiente com o qual emocionou-se. Assim, a linguagem sendo um

fenômeno com fundamento biológico determinada pelo cérebro, é também determinada pelas emoções, à medida que exige palavras para serem ditas por um espírito que sente. A linguagem, portanto, tem sua dupla determinação de pertinência biológica. Tudo o que é dito é dito por alguém, por uma personalidade no mundo, e isso acontece num emocionar. Portanto, o processo de humanização se dá através desta dupla determinação de pertinência biológica da linguagem, o domínio das emoções e o domínio lingüístico.

Constatamos atualmente um homem individualista, afastado cada vez mais do humano, não se reconhecendo no outro, nem no meio que o constitui e insere. Não há, portanto maneira alguma de encontrar-se a felicidade num viver alienado, isolado e desconectado do meio. Neste movimento só resta às pessoas, a solidão de ser, resultando em competição, em fragmentação do conhecimento e em egoísmo, ou seja, uma visão de mundo partido, onde eu sou dono de uma fatia, magicamente formada. A humanização é a saída, o começo e o fim das pessoas. Emoções, linguagem e estrutura biológica em funcionamento através de um pensamento complexo.

Porém um pensamento complexo é desenvolvido pela possibilidade humana de constituição de uma personalidade, capaz de se emocionar na sua relação com o mundo. Assim, a fenomenologia existencialista, através da teoria da personalidade e de um esboço da teoria das emoções propostas por Jean Paul Sartre, fundamenta com bastante propriedade a compreensão desse “eu” capaz conceber um pensamento produtor de uma episteme complexa.