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O terceiro espaço de gravação se dá na Colônia Penal do Bom Pastor. A transição entre as cenas na praia e a cena no Bom Pastor é impactante: passa-se de uma fotografia iluminada, com cores fortes e vibrantes, composta pelas diversas tonalidades de colorações das vestimentas das mulheres, do dia ensolarado, o mar e o céu se completando em degradés de azul, como vemos na Figura 33. Esta cena é cortada para um plano escuro, em ambiente fechado, corredor estreito, trazendo a sensação de clausura, onde aos poucos os rostos das mulheres vão se tornando visíveis.

Na cena da praia, a narrativa está centrada no dia em que a repressão encontrou os ―aparelhos‖, como se deu o cerco policial, ou seja, momento de adrenalina e medo, mas que ainda estavam em liberdade. Com a mudança de cena para a prisão - que nesse momento poderia ser qualquer prisão, pois tudo o que vemos são grades se abrindo no estreito corredor, tendo a escuridão amenizada por algumas luzes no teto, porém de fraca iluminação - a narrativa nos leva a conhecer os terrores das torturas. Aos poucos, as vozes se intercalam, contando as diferentes violências sofridas.

Ao fim do corredor, a narrativa sobre as torturas também acaba e a cena volta a ficar iluminada. Andando pelo pátio da Colônia Penal,a história segue, falando do momento de chegada ao Bom Pastor. Estas falas estão sempre no direcionamento de pensar este espaço enquanto um ―paraíso‖, discussão já feita no capítulo anterior. Porém, aqui é interessante ressaltar como a produção artística a partir da construção da narrativa e dos jogos de câmeras e luzes produz um discurso a respeito daquele espaço enquanto uma ―dulcíssima prisão‖ 143,

passando em alguns momentos a impressão de docilização, relativização do espaço de cárcere.

Entre apontares de dedos, as ex-presas indicam os lugares em que ocupavam na Colônia, reconhecendo a Capela, as celas, o jardim. Abrir as janelas era um ato muitas vezes referenciado por elas como uma imagem forte em suas memórias, pois, na época, tinham grades decoradas, diferente das outras prisões. Lembram a disposição das camas, da mesa e do fogão que tinham dentro de um grande quadrado que lhes servia como cela. Falam do seu cotidiano, das freiras e padres com quem mantinham contato. Relembram das presas comuns,

das árvores frutíferas que se espalhavam pela Colônia Penal, que para elas muito se assemelhava a uma chácara.

Depois de caminharem pela a Colônia - pátio, celas, capela, jardim- a cena passa a ser filmada de dentro das celas e corredores, com as lentes voltadas para as portas. Neste momento, a narrativa tem como temática a saída da prisão.Suas vozes novamente tornam-se sonoras, contando como receberam as notícias de soltura da prisão, da saída para o exílio ou da transferência para outra prisão em suas cidades natais.

As vozes se intercalam e não fica claro para o expectador de quem é cada história. Não se consegue fazer a ligação entre o rosto e a voz, trazendo-nos a impressão de que aquela história pode ser de qualquer uma daquelas mulheres foco do documentário, mas também de outras que assumiram estes papéis políticos nos anos de ditadura.

É então uma história que se propõe coletiva, na tentativa de trazer uma representatividade não apenas para as ex-presas políticas do Bom Pastor, mas também para as várias outras militantes que possam se identificar com as memórias expostas no documentário, o que endossa a ideia de construção da memória coletiva desse grupo de mulheres, que se colocam pertencentes a uma mesma geração, ideia ligada a uma identidade ou grupo de identificação (HALL,2000).

Ainda dentro da Colônia Penal, onde tantas vezes tiveram que silenciar, onde o medo, a insegurança e o esquecimento lhes eram destinados, elas prestaram homenagem às companheiras e aos companheiros que foram assassinados nos porões da ditadura, tecendo uma teia com linha de lã vermelha, o vermelho que simboliza a militância política de esquerda, mas também o sangue nas torturas.

FIGURA 34: Tecendo resistências

Fonte: Documentário Vou Contar para Meus Filhos(2011).

Dispostas de modo a formar um grande círculo como na ciranda, seguravam as vermelhas linhas e revezavam-se, proferindo os nomes de companheiras/os, enquanto as

demais respondiam com a palavra: ―PRESENTE‖. Em tons de segunda voz deste lamento, Maria do Socorro Diógenes cantava parte da música Mes hommes à moi,enfatizando os versos em destaque:

Mes hommes Mes hommes à moi

[...]

La nuit, je les entends qui marchent J'entends les noms, j'entends les voix De mes hommes

San Fuentes et sa chemise noire

Muerto!

Fernandez qui me doit trois cigares

Muerto!

El Frances qui était là par hasard

Muerto! Mes hommes Mes hommes à moi

Je jure sur le sang du monde

Qu'avant longtemps, sur votre tombe La liberté refleurira

Mes hommes

(GILBERT BÉCAUD, Mes hommes à moi, 1966)144.

Os nomes dos homens que aparecem na música acima foram trocados pelos nomes das companheiras e companheiros de militância. Desse modo, elas e eles foram lembrados. Suas mortes, ainda que por um instante, saíram do silêncio sepulcral para serem publicizadas no audiovisual, pondo em prática o compromisso do não deixar esquecer, compromisso dos vivos para com os mortos(SELINGMANN-SILVA, 2008).