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2. O discurso sobre o parto e a maternidade nas Artes Visuais (após os anos 90)

2.2. O Parto e a maternidade nas Artes Visuais

2.2.1. A coleção Inglesa sobre Arte e Parto

Dentre as referências citadas, talvez a mais importante tenha sido a Birth Rites Collection15, uma coleção de arte contemporânea dedicada ao nascimento, fundada em 2006, na Inglaterra. O incentivo à produção e divulgação de trabalhos artísticos sobre parto é um dos objetivos da coleção desde sua fundação. Seu acervo foi primeiramente sediado na University of Salford Midwifery School, em Manchester, mas em 2017 a coleção foi transferida, por um período pré-definido de três anos, para a Kings College (Florence

Nightingale Faculty of Nursin, Midwifery e Palliative Care), em Londres. O acervo foi

construído pela artista e curadora Helen Knowles, depois do nascimento de seus dois filhos em 2006. Sua primeira ação foi convidar cinco artistas para trabalharem com médicas e enfermeiras obstétricas em hospitais em Manchester, de modo que esta residência artística fora comissionada e são estas as primeiras obras que integram a coleção, junto com a produção do filme BORN (KOWLES, 2017). De acordo com a fala de Helen Knowles em palestras, a ambiguidade da coleção, que não é mantida por um museu, colecionador ou galeria de arte tradicional, nem é uma coleção histórica ou educativa montada a partir de objetos e curiosidades sobre o parto, é um dos pontos fortes deste acervo (KNOWLES, 2017, 13'41'').

As características educativas e direcionadas ao ensino obstétrico são inegáveis ao visitarmos a coleção em Londres. Mantida em quatro diferentes prédios no Kings College, seu acesso é bastante restrito para o público em geral, que deve formalizar pedido e obter autorização para entrar em todos os ambientes e ver as obras. A estrutura de segurança foge aos padrões brasileiros, e são justificadas pelos funcionários devido aos atentados recentes que aconteceram perto da universidade, na London Bridge e no Borough Market16 em 2017. Neste caso, nota-se uma ausência do público ligado à arte, artistas, curadores, visitantes e

15A inauguração desta coleção no novo espaço, no Kings College, em Londres, em Janeiro de 2018, foi acompanhada por esta pesquisadora, que permaneceu lá com o intuito de coletar dados e fontes para esta pesquisa.

16No dia 03 de Junho de 2017, em um ataque terrorista na London Bridge, uma van atropelou várias pessoas, seus ocupantes logo depois desceram e esfaquearam turistas e funcionários dentro do Borough Market. 11 pessoas morreram e 48 ficaram feridas. (https://g1.globo.com/mundo/noticia/incidente-fecha-a-london- bridge.ghtml)

turistas, mas não se pode negar que exista sim uma presença constante de estudantes da área de saúde transitando nos corredores da instituição e observando os trabalhos da coleção. A curadora ressalta que, antes disso, já na Universidade de Salford, o espaço em que as obras se encontravam não é um lugar envolvido diretamente em pesquisa, mas uma instituição dedicada a ensinar uma técnica médica, que levará imediatamente a uma prática obstétrica. Helen Knowles percebe e registra que as mudanças na concepção do nascimento a partir das representações do parto apresentadas pela Birth Rites Collection foram imediatas, as imagens ou perturbavam ou encantavam os sujeitos que ali frequentavam (KNOWLES, 2017, 14'57'').

Atualmente, a coleção conta com quase 70 trabalhos artísticos em diversas linguagens, datados de 1980 a 2015. Dentre eles, uma peça da série de tapeçarias The Birth Project (1982- 84), de Judy Chicago, sobre o parto; e fotografias da série Kinderwunsch (2006-2012), de Ana Casas Broda. Estas duas artistas destacadas aqui mostram a importância desta coleção. Judy Chicago é uma famosa artista feminista americana e sua obra The Dinner Party (1974-1979) é uma referência para os estudos de arte feminista e, frequentemente, a obra é incluída nos livros sobre Arte Contemporânea. Já Ana Casas Broda é uma artista espanhola que trabalha com fotografia, de modo geral. Seu trabalho mais recente se concentra nas questões ligadas ao cotidiano das mulheres e dos seus corpos, em relação principalmente às relações familiares.

A Birth Rites Collection é uma organização independente que realiza encontros, simpósios, publica livros, concede premiações artísticas bianuais e residências artísticas. Dentre elas, realizou o Simpósio Birth in Contemporary Art17 realizado em 2011 na

Whitechapel Gallery em Londres. Com o objetivo de conseguir obras para a coleção, são realizados bienalmente editais para chamada de trabalhos de artistas sobre o parto. Nas duas últimas edições, em 2016 e 2018, um prêmio em dinheiro e uma residência artística com hospedagem, foram oferecidos para a artista selecionada por uma comissão julgadora. Nos últimos quatro anos, esta parece ser a política de construção do acervo, de modo a concentrar a divulgação nos editais e prêmios, os quais atraem artistas de todo o mundo e, depois dos prêmios divulgados, convidando as(os) artistas não premiados a doarem suas obras para a

17Neste evento, participaram como palestrantes: Dr Lisa Baraitser (Professora e pesquisadora da Universidade de Londres na área de estudos Psicossociais, com ênfase na maternidade e subjetividade feminina), Jemima Brown (Artista, escultora e membro do coletivo “Enemies of Good Art”), Matt Collier (Artista, trabalha com desenho), Martina Mullaney (Artista, fotógrafa, fundadora do coletivo “Enemies of Good Art”), Dr. Imogem Tyler (Professora doutora em Sociologia na Universidade de Lancaster, pesquisadora sobre maternidade e parto), Liv Pennington (Artista, trabalha com fotografia e apropriação de imagem), Eti Wade (Artista, fotógrafa e professora Na Universidade de West London), Jonathan Waller (Artista, trabalha com desenho e pintura, professor na Universidade de Coventry) e Hermine Wiltshire.

coleção.

Segundo Helen Knowles (2017), curadora e fundadora, a coleção teve o apoio de críticos de arte, artistas, mães, educadores, médicos e enfermeiras obstétricas e, apesar de enfrentar dificuldades do público geral com o tema, apresentava-se abertamente nos corredores da escola de enfermagem da Universidade de Salford durante aproximadamente 10 anos (2006 a 2017). A história da coleção passa por vários incidentes e pressões, para Knowles (2017), a permanência deste espaço é também uma história de resistência. De alguma forma, pela intenção da curadora, seria possível prever que tais barreiras surgiriam, pois sua intenção era “falar da potência da arte contemporânea de transformar e mudar padrões, expondo e representando o impopular, não comercial, e precário assunto do parto e do cuidado, utilizando o marketing de uma coleção de arte” (KNOWLES, 2017, 1'55''). A curadora propõe a exposição de obras sobre o parto que fogiu aos padrões comerciais, fazendo uso da própria estrutura artística, de modo a propor tanto uma desconstrução de uma visão de parto para o público, quanto a inserção do assunto parto na arte.

Obviamente, resistências acontecerão neste processo. Segundo Knowles (2017), algumas destas imagens incomodam, pois mostram muitas vezes mulheres que parecem estar em outros estados mentais durante o trabalho de parto. Tais obras mostram como a imagem do parto pode estar sendo vista e representada na contemporaneidade e na arte e, em muitos momentos, como se distanciam também da representação romantizada da “boa mãe”. Para Knowles (2017), duas questões se acentuaram depois das primeiras exibições da coleção: a primeira é “como a visualização das imagens de um parto pode começar a modificar a maneira como pensamos sobre um assunto, como isso pode influenciar de fato nesta prática” (KNOWLES, 2017, 6'53''). E a outra, para a curadora, é pensar sobre como existe uma cultura visual do parto, que aparece, por exemplo, quando as imagens confrontam o que se espera visualmente de um parto. As reflexões feitas pela curadora podem levar a pensar sobre como esta coleção e sua abrangência não só modificam o pensamento sobre parto, mas como as obras expostas também criam uma representação social do mesmo. Desta forma, verifico um movimento de mão dupla, no qual as imagens modificam representações, mas é também pelas representações que se criam imagens.

Inúmeras leituras e interpretações sobre o parto são possíveis, a diversidade de representações é grande. Além disso, segundo Imogem Tyler (2013), a disseminação das imagens de parto acessíveis hoje por dispositivos de compartilhamento de vídeo, que podem

ser assistidos em qualquer smartphone ou computador, pode estar também afetando a forma como vimos e representamos o parto. Mesmo dentro de uma instituição de educação obstétrica (como é a University of Salford Midwifery School em Manchester, que hospedou a coleção até 2017), questionamentos e censuras são frequentemente direcionadas às imagens de parto. Knowles (2017) descreve como o trabalho de Hermione Wiltshire18, uma imagem fotográfica apropriada de um manual de parto, foi questionada, de modo que a equipe pediu para que não fosse exibida na entrada do prédio, que fosse substituída por um desenho. Segundo a curadora, o motivo para tal censura era justificado pelos gestores do prédio como o dever de proteger sua audiência (KNOWLES, 2017, 7'30''). A imagem oferecia perigo?

De alguma forma, este evento leva a refletir sobre o medo causado pelas imagens, ademais, dá também uma noção do poder que elas detêm. A mesma obra de arte em outra exposição, dentro da faculdade de enfermagem obstétrica da universidade de Salford, também foi censurada e transferida para uma sala de professores, escondida, portanto, do público que caminharia pelos corredores. Knowles (2017) levanta a questão de que a imagem pode ser vista como obscena por mostrar os genitais, mas que também pode ser uma questão de nojo relacionado às relações conflituosas que se estabelecem com o corpo feminino e seus excrementos. Além disso, entende a ambiguidade da imagem que, segundo ela: “mostra uma mulher que confunde a noção geral aceita de que o parto deve ser controlado por outras pessoas, mas também demonstra a necessidade de cuidado e suporte.” (KNOWLES, 2017, 9'08''). É, pois, em uma cultura submersa em imagens consideradas pornográficas que esta imagem confronta também a concepção do parto doloroso, apresentando o parto não só como agradável, mas também muito sexualizado em outros termos.

Outro evento que gerou restrições e censuras à coleção aconteceu em março de 2016, quando o trabalho de Ana Casas Broda, Kinderwunsch (2006-2012), foi exposto junto à outros trabalhos em um relançamento do acervo nos corredores onde era mantida a coleção na escola de enfermagem da Universidade de Stalford. Segundo Knowles (2017), em menos de 24 horas, o setor de proteção à criança da universidade pediu que as imagens fossem retiradas. A curadora se posicionou na época para defender a continuidade dos trabalhos daquela exposição e evitar a censura, sendo que nesta ocasião ouviu que:

[...] um dos motivos das imagens serem inapropriadas era que eles tinha medo que 18Este trabalho será analisado em capítulo posterior desta tese. A obra chama-se Therese in Ecstatic Childbirth, data de 2008, e é uma fotografia apropriada de um manual sobre nascimento da autora Ina May Gaskin, na qual uma mulher parece experimentar com muito prazer o coroamento do bebê em seu parto.

pedófilos poderiam ir à exposição para tirar fotos e distribuir aquelas imagens, e que à universidade poderia ser processada. Eu apontei que os pedófilos não precisariam ir a universidade, pois que este trabalho já estava em sites da BBC” (KNOWLES, 2017, 12'16'').

Os argumentos não foram suficientes e, no dia seguinte, um encarregado da universidade foi até a coleção para retirar algumas imagens da exposição. Ao se deparar com a instalação fotográfica com inúmeras imagens, ele pergunta à curadora qual imagem ela acha que deve ser retirada, a curadora responde que “nenhuma, obviamente” (KNOWLES, 2017, 12'53''). No desenrolar da discussão, ele decide retirar todas as imagens que tem a presença dos genitais das crianças. Ao incluir esta passagem aqui, pretendo destacar que, apesar da inabilidade do censor, ou de seu executor, existe uma suposta ordem, ou regra a ser seguida, mas que não é clara. Pela obscuridade, é possível afirmar que os dispositivos de poder se estabelecem e se mantém, de modo que, neste caso, parece praticamente impossível dialogar ou questionar. O sistema opressor age sobre as imagens para forjar sua potência transgressora e questionadora.

Não seria este um procedimento de interdição que constrói, delimita, controla e materializa os discursos, conforme descreve Foucault (2002, p.09)? No processo de interdição, estão as ações que restringem que algo seja dito, as ações que declaram que algo não é bem-visto e até as ações de silenciamento diante de um acontecimento. A restrição está clara no caso descrito: seria o processo de retirada das imagens da exposição. A justificativa de retirada da obra para proteger a Universidade no caso de um pedófilo visitar a exposição coloca as imagens no lugar de presa, que atrai aquilo que não se quer por perto, daquilo que não é bem-visto. Já a dúvida colocada pelo executor do mandato de censura impõe um silenciamento, decide-se pela exclusão de todas as imagens com crianças, não se discute ou fomenta-se debate, apenas cala as imagens. Cumprem-se todas as etapas descritas por Foucault (2002) nos processos de interdição, que agem pela exclusão na camada mais externa da materialidade do discurso.