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2. Prazer: mães que gozam

2.3 Experiências compartilhadas: o autor/artista

As obras seguintes carregam minha expressão pessoal como pesquisadora e artista. Depois de parir duas crianças, em 2011 e 2012, e ainda envolta nas questões maternais, iniciei uma pesquisa sobre artistas que tivessem tratado do parto em suas produções artísticas. Em meio a obras de arte bastantes críticas sobre a maternidade, aventurei-me na documentação fotográfica de partos de outras mulheres e, com estes registros, comecei a pensar em uma produção artística44.

Neste caso, o processo de criação se diferenciou muito de meus outros trabalhos artísticos45. Geralmente, minhas séries fotográficas surgem com um planejamento e objetivo, esboçado por rascunhos e desenhos, para depois serem executadas fotograficamente. Porém,

44Todos os partos por mim fotografados foram naturais. Somente em um deles, depois de tentar o parto normal, foi preciso seguir para a cesariana, mas minha presença nesta cirurgia não foi autorizada pelo Hospital.

como eu já havia parido, sabia que este evento não oferece um caminho linear, cada parto tem uma história, e seria impossível planejar que tipo de imagem produzir com antecedência. Além disso, nunca havia fotografado um parto profissionalmente. Portanto, neste momento, eu me jogava em um ambiente com uma máquina para produzir imagens, sem saber o que aconteceria e se estas fotografias me fariam desejar criar uma obra artística. O conhecimento técnico não era um problema, pois desde 1998 exploro as possibilidades da imagem fotográfica na arte e desde 2002 dou aulas sobre esta linguagem no ensino superior. O que estava em questão é se haveriam ou não imagens que produzissem em mim o desejo de usá- las poeticamente em uma produção artística.

A fotografia de parto me coloca também em uma situação distinta de outras artistas reconhecidos nesta linguagem, pois ela transita entre as fotografias íntimas, como as de Nan Goldin, e as fotografias documentais, como as de Rineke Dijkstra. Apesar de partilhar a experiência do nascimento com a mulher que está dando à luz, meu papel como sujeito com uma câmera na mão me distancia da relação de intimidade que Nan Goldin performa com seus amigos e família. Como este tipo de registro é extremamente íntimo, minha presença não pode ser ignorada, até o som do clique da câmera, em certos momentos, causa incômodo, forçando minha percepção a decidir me retirar do ambiente e parar de fotografar. Portanto, muito distante da atuação de Rineke Dijkstra que faz uma “abordagem desprovida de sentimentalismos (…) para representar a maternidade” (COTTON, 2010, p. 112), determinado pelo que Charlotte Cotton (2010) descreve como um estilo fotográfico “sistemático e imparcial”.

Parte das reflexões acima só foi possível depois de passar pela experiência de fotografar um parto. O primeiro deles revelou-me também a dificuldade de deslocamento e posicionamento com a câmera dentro do quarto de um hospital, onde estavam presentes no trabalho de parto: a gestante, o marido, o pai, a mãe e a irmã da gestante, a obstetra, a doula e eu. No expulsivo do bebê entraram ainda, para esperar o nascimento, o pediatra e dois enfermeiros. Posteriormente, descobri que foi uma situação isolada e que este número de pessoas durante o trabalho de parto é incomum nos hospitais em Uberlândia. De qualquer forma, e apesar da multidão de espectadores (ou será por causa dela?), o parto transcorreu rapidamente, e as fotos foram realizadas. Apesar de entender as imagens fotográficas como cenas que direcionam certo olhar sobre o mundo, e que promovem uma abstração da realidade (FLUSSER, 1985), este tipo de imagem de registro de parto me parecia ainda muito próxima

de um documento de evidência de um acontecimento. Ao refletir sobre a experiência de fotografar aquele primeiro parto, ao rever as imagens produzidas naquele dia, coloquei-me como uma espectadora que tenta entender uma narrativa a partir de imagens. Porém, o exercício de olhar as imagens nos arquivos digitais e selecioná-las por seu foco, luz, cor, enquadramento e expressão da gestante, fez-me pensar sobre como aquela história era contada a partir de uma trama, que era moldada por mim a partir do tipo de narrativa que desejava dar para a história. Surge então o trabalho Narrativas de Parto:

Obra 11 – Clarissa Borges (b.1976), “Me beija, meu amor, me beija” (Fernanda), Série: Narrativas de Parto, 2015. Fotografia Digital, 75x50 cm.

A cor é um dado importante na construção destas imagens. A escolha das cores quentes é proposital. Começou na própria configuração técnica da câmera, inserindo um balanço de branco que acrescentava um filtro âmbar e anulava o tom azulado do ambiente hospitalar onde os partos aconteceram. Na edição final das imagens, aquelas fotografias que ainda apresentavam outras cores predominantes foram manipuladas. Além disso, foram feitos recortes, aproximações e manipulações das sombras nas imagens. A cor alaranjada,

predominante no trabalho final, geralmente nos remete a ambientes e corpos quentes, assim, eu faço com que os partos por mim fotografados se aproximem da minha experiência prazerosa ao dar à luz ao meu segundo filho.

O título da série se refere à possibilidade de uma construção da história do parto a partir de uma sequência de imagens, escolhidas e organizadas por mim, no intuito de inserir na obra a possibilidade de pensar os vários acontecimentos dentro de um trabalho de parto. Uma das imagens é ampliada e apresentada acima das outras, como referente e representante do todo da narrativa. Esta figura domina a relação que o espectador tem com as imagens abaixo dela, pois, em função de sua dimensão ampliada, apresenta-se com muito mais importância. O exercício de escolha e recorte destas imagens segue em direção à descrição sobre o ato de fotografar de Jean Baudrillard: “O desejo de fotografar talvez venha dessa constatação: visto na perspectiva de conjunto, do lado do sentido, o mundo é bastante decepcionante. Visto no detalhe, e de surpresa, ele é sempre de uma evidência perfeita” (BAUDRILLARD, 1997, p.34).

Obra 11 – Clarissa Borges (b.1976), "Dê seu amor todinho a ela" (Natália), Série: Narrativas de Parto, 2015. Fotografia Digital, 75x50 cm.

Durante minhas experiências de registro de parto, outro fato se revela como marcante: as frases ditas pelas gestantes durante o processo. Neste sentido, resolvo nomear cada imagem desta série com falas que ouvi delas durante o parto. A primeira, Me beija, meu amor, me

beija, foi exclamada por Fernanda imediatamente após a saída do bebê, quando esta

parturiente acolhe sua criança no colo, vira-se para o parceiro e pede um beijo. O pedido me chamou atenção talvez pela demora do marido em entender o que acontecia, e atordoado olhando a criança não entendia o que sua mulher lhe pedia. A segunda frase retirada do contexto do parto e inserida em meu trabalho é: Dê seu amor todinho a ela. A gestante fotografada, Natália, cantou chamando os filhos Beatriz e Fernando, ainda em sua barriga, durante boa parte de seu trabalho de parto e esta era uma das estrofes da canção.

Estas duas imagens da série Narrativas do Parto, foram expostas em 2015, na mostra coletiva "Refazendo Nós", com curadoria de Alex Miyoshi, no Museu Universitário de Arte – MUNA –, em Uberlândia. A exposição propunha mostrar os trabalhos recentes dos professores do Curso de Artes Visuais da UFU e o educativo do Museu acompanhou muitas turmas de escolas em visitas guiadas. Desta forma, foi possível acompanhar alguns relatos informais sobre as reações dos alunos, crianças e adolescentes, diante das imagens. Apesar das imagens não serem imagens explícitas do parto, causavam certa desconfiança nos mais velhos. Eles percebiam os rostos e corpos das gestantes como corpos sexualizados, a relação feita pelos alunos e espectadores com o prazer foi relatada por vários membros do educativo do Museu. Porém, ao ler o título do trabalho, vinha o estranhamento sobre o assunto das fotografias. Além da relação incomum com o parto e o prazer, outro estranhamento pode ter surgido diante destas imagens. Segundo Brand e Granger:

Apesar de estar claro que imagens de mulheres grávidas (até mesmo de Virgem Maria) são abundantes no mundo da arte e até tenham se transformado em norma – como um modelo de representação do corpo feminino – os espectadores da arte ainda aguardam por abraçar visualmente o final climático da gravidez. (BRAND; GRANGER, 2012, p. 219)

Como tenho abordado nesta tese, observo um aumento considerável, desde a década de 1990, das imagens de parto nas coleções, exposições e museus, mas se comparadas às imagens de mulheres grávidas, elas ainda são poucas. Na primeira série fotográfica que realizei, acentuei a questão da narrativa ao selecionar várias imagens e dispô-las com uma sequência visual, mas algumas fotografias me fizeram pensar sobre a possibilidade da sobreposição destas figuras. Esta solução ressaltaria algo que se perde na sequência, a relação

com o movimento e com as diversas expressões que uma mulher apresenta ao parir. A mudança na face destas mulheres se tornava bastante evidente em minhas fotos, pois esta é uma característica da imagem fotográfica, ela recorta o tempo tornando possível congelar expressões que não vemos sem este dispositivo.

Para ressaltar as expressões da face e durante o parto, criei a série nomeada: Parto e

Êxtase, exposta no Museu de Arqueologia e Etnologia (MarquE) - Universidade Federal de

Santa Catarina, na II Exposição Internacional de Arte e Gênero, com curadoria de Rosa Blanca; e na Exposição Madre Pérola, no Museu da Imagem e do Som, ambos em Florianópolis, em 2017.

Obra 12 - Clarissa Borges (b.1976), Silêncio para Bento, Série: Parto e Êxtase, 2016. Impressão Fotográfica, 60x90cm

A imagem fotográfica é usada aqui, também, como instrumento de poder e convencimento. Sua proximidade com as imagens da realidade, sua verossimilhança, faz com que um fragmento enquadrado e congelado do real ocupe o lugar da própria experiência. Assim, usei esta estratégia para assinalar e ressaltar aquilo que foi cuidadosamente esquecido, ou melindrosamente extirpado, pela cultura da repressão sexual feminina: a possibilidade do prazer no parto.

Estas imagens sugerem pensar a aproximação entre parto e sexualidade a partir do estranhamento entre a imagem e seu título. Dessa forma, o trabalho se completa, tornando possível o afeto iniciado pelo jogo entre imagem e texto.

Obra 12- Clarissa Borges (b.1976), Despindo-se para Ulisses, Série: Parto e Êxtase, 2016.Impressão Fotográfica, 90x60cm

Os trabalhos desta série receberam títulos que se relacionam com a especificidade e subjetividade de cada parto e da relação que estas mulheres estabeleciam com este evento.

Portanto, nomeia-se Silêncio para Bento, a imagem de Natália Sávio que, parindo Bento, insistia em pedir que seu marido permanecesse em silêncio. Já a imagem de Sabrina, chama- se Despindo-se para Ulisses, e remete ao desejo desta mulher de que seu marido tirasse as próprias roupas no momento em que ela se encontrava em parto ativo. O título do trabalho,

Cantando para Beatriz e Fernando, revela um dos acontecimentos experimentados por esta

pesquisadora neste parto, no qual Natália (a mulher em trabalho de parto nesta imagem) cantava durante o parto de seus gêmeos, Beatriz e Fernando.

Obra 11- Clarissa Borges (b.1976), Cantando para Beatriz e Fernando, Série: Parto e Êxtase, 2016.Impressão Fotográfica, 90x60cm

Na série Parto e Êxtase, há sobreposições de uma sequência de fotografias tiradas em frações de segundos, denotando então um acontecimento. A imagem é apresentada de forma estática, fazendo com que tomemos a cena inteira como representante do todo. Para Vilém Flusser, “imagens são códigos que traduzem eventos em situações, processos em cenas” (FLUSSER, 1985, p.07). Desta forma, a imagem não eternizaria os eventos, mas os

transformariam e os substituiriam por cenas. As cenas aqui apresentadas exprimem as expressões no rosto, da dor ao prazer, no parto. Em algumas, é difícil distinguir cada rosto separadamente, pois a escolha por transformar estas fotografias em camadas transparentes de sobreposição cria imagens fantasmagóricas, assim como possibilita a visão simultânea das três imagens usadas em cada obra.

Mesmo não sendo o objetivo principal desta pesquisa, a criação destas séries fotográficas cumpre um papel importante, possibilitando uma reflexão sobre o parto a partir de imagens, além da análise do trabalho de outras artistas. Mesmo ao fotografar o parto de outras mulheres, coloco ali minha interpretação, conduzo o espectador a olhar estas obras e a imaginar outras relações com o nascimento. Segundo Jean Baudrillard: “A sociedade primitiva tinha suas máscaras, a sociedade burguesa, seus espelhos, nós temos nossas imagens. Nós acreditamos forçar o mundo pela técnica.” (BAUDRILLARD, 1997, p. 30). Pela técnica, acreditamos ver o mundo, mas nesse jogo nós é que somos iludidos pelas imagens. Se a imagem comum é a da dor e do sofrimento, ofereço então outra ilusão, ou interpretação, ofereço o prazer e o gozo. Neste exercício de fotografar, repensar as imagens, manipular, justapor, sobrepor e enquadrar, exerço também o desejo da produção artística.

A presença das fotografias e vídeos de parto nas redes sociais nos leva a pensar sobre o discurso que está surgindo sobre o parto e como estas imagens servem também como novos dispositivos. Será que estamos presenciando a obrigação do prazer ou propondo a diferença? Para Brand e Granger:

As comportas foram abertas; imagens do coroamento abundam. E longe de serem realizadas por mulheres que operam dentro do mundo da arte, onde o tabu ainda é forte, elas foram lançadas por mulheres comuns que buscam conhecimento e oferecem um espírito comunitário de poder e empoderamento que lembram práticas antigas. (BRAND; GRANGER, 2012, p. 231)

Todavia, mesmo antes destas imagens invadirem a internet, o evento da gestação tem produzido imagens como nunca. Cao Guimarães, artista brasileiro que trabalha com vídeo, faz uma reflexão sobre esta transformação do homem em imagem técnica:

Sou um homem da imagem, mas sou de um tempo em que o ser humano ainda não nascia imagem. Hoje somos imagem já na barriga da nossa mãe. Uma varredura pelo som nos transforma em imagens uterinas e lá estamos, impassivos e confortáveis, inconscientes de que já somos um espetáculo para a mãe, o médico e as enfermeiras, na tela do computador da sala de um pediatra. Violada nossa primeira casa, invadida nossa intimidade, já somos personagens potenciais do Big Brother que se tornou o mundo. A sociedade do espetáculo nos espera lá fora, então “Sorria, você está sendo filmado!” (GUIMARÃES, Cao. 2015, p.12)

Guimarães (2015), fala aqui sobre seu processo de criação em um universo já tomado pelas imagens e da responsabilidade de um criador de imagens, como ele mesmo. Não obstante, este artista também realizou um vídeo sobre o nascimento de seu filho Otto, no qual destaca as sensações e desafios de uma gestação a partir de sua experiência acompanhando sua companheira grávida46.

O corpo feminino retratado pelos artistas homens modernistas ressaltava submissão, sedução e voluptuosidade, direcionado para um espectador imediato homem e heterossexual. A mesma ação pode ser observada na escultura aqui apresentada de Daniel Edwards, sua adaptação de uma pose de pole dance para uma posição de parto da cantora Britney Spears torna essa continuidade do dispositivo de poder evidente. Porém, as imagens propostas por mim e por Helen Knowles trazem outras relações com o parto. Outros dispositivos se mostram evidentes e apontam para um corpo em prazer, em si mesmo, e não dependente do olhar masculino e desejante. As imagens de parto distribuídas nas redes sociais, criadas por profissionais ou anônimos, podem ser também uma evidência de que, para além da exposição da intimidade, as mulheres têm procurado mostrar diferentes relações com o nascimento através de suas próprias imagens.

46 O filme Otto de Cao Guimarães é de 2012, tem 71 min. Segundo Moacir dos Anjos, “é registro da gestação de um filho pelo lado de fora, pelas beiras e bordas. Registro de intuições e de rastros de um tempo ainda por vir, em inversão afetiva da cronologia. É filme que filma somente aquilo que se advinha, sentimento que não tem medida. E que se encerra com a ansiada chegada. Nenhuma palavra aqui dita será precisa ou clara o bastante (ou mesmo necessária) para descrevê-lo ou situá-lo em sua obra”(ANJOS, Moacir. In: GUIMARÃES, 2015, p.249)