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3.3 A coleção etnológica em constante formação

3.3.1 Coleções para grupos escolares

Durante a gestão de Emílio Kemp a coleção etnológica do museu além de ser alimentada por novas aquisições, também foi destituída de algumas peças, que foram encaminhadas a diferentes instituições de ensino. Foram muitas as escolas que receberam doações de objetos indígenas do museu para formarem seus museus escolares, muitas delas solicitavam as peças por correspondências ou ao visitarem a instituição. Nesse sentido, tem-se a hipótese de que o Museu Júlio de Castilhos poderia ser referência no Rio Grande do Sul em estudos relacionados com os povos indígenas, pois detinha uma quantidade significativa de objetos em sua coleção etnológica.

Para compreender como e por que o museu efetuou doações para instituições de ensino produzirem museus escolares é importante refletir sobre o conceito de museu escolar e sua relevância naquele contexto da década de 1940. Felipe Contri Paz (2015) expõe que o conceito de museu escolar não é um consenso entre os pesquisadores, pois designava diferentes materialidades e espaços que de alguma forma estavam relacionados com a educação. Para Zita Possamai (2012, p. 08) os “museus escolares reuniam coleções de artefatos destinados ao auxílio do professor no ensino das diversas matérias previstas no

currículo escolar”, estes locais poderiam ser chamados de laboratórios, gabinetes e museus escolares, mas todos serviam para o mesmo fim, ser uma ferramenta pedagógica, inspirada pelo Método Intuitivo e sua estratégia de ensino denominada por Lições de Coisas. Importante salientar que no Brasil, o surgimento dos museus de história natural bem como a adoção de Lições de Coisas ocorreu num mesmo contexto, havendo, inclusive, diálogo entre instituições de ensino e museus, pois o método de ensino ligado ao empirismo científico era utilizado nos estudos das ciências naturais, presentes tanto nos museus, quanto nas escolas.

No caso do Rio grande do Sul, Zita Possamai (2012) explica que Lições de Coisas foi considerada uma metodologia de ensino a partir da constituição da República. Foi com o Decreto 89/1897, o qual visava a organização da instrução primária que Lições de Coisas apareceu como método pedagógico, chegando a ser decretado que o livro seria apenas um auxiliar no processo de aprendizagem, pois o que deveria ser frequentemente utilizado era o Método Intuitivo. Nesse sentido, desde o final do século XIX e início do XX este método era aplicado nas escolas ou pelo menos era legalmente aceito como instrução pedagógica. Neste processo, o Museu Júlio de Castilhos teve uma significativa participação, pois durante a direção de Francisco Rodolfo Simch, a instituição produziu 1000 coleções de 110 exemplares vinculados aos estudos da história natural, enviadas às escolas do Rio Grande do Sul (POSSAMAI, 2012).

Assim, percebe-se que a doação de peças do museu para escolas não foi uma novidade do diretor Emílio Kemp, pois o museu já fazia isso desde sua primeira direção. No entanto, a novidade residiu na quantidade de doações e na tipologia dos artefatos, pois os indícios encontrados no corpus documental evidenciam que as doações, especificamente, de objetos indígenas para museus escolares, foram frequentes. Por que este boom de solicitações ao Museu Júlio de Castilhos durante as décadas de 1930 e 1940? De acordo com Felipe Contri Paz (2015), as instituições de ensino, principalmente, as escolas básicas aplicavam as teorias raciais ou racialistas da mesma forma que ensinavam sobre qualquer outro assunto relacionado às ciências naturais. Assim, alguns museus escolares, além de terem objetos ligados à fauna e à flora, também possuíam bustos humanos que representavam diferentes raças, as quais deveriam ser estudadas. Ainda, Paz (2015, p. 46) aponta que foi nas décadas de 1920 a 1940 que as escolas “acabariam por aumentar o investimento nos temas raciais [...] período marcado por preocupações étnicas em todo o mundo, por eventos como os congressos de eugenia no Brasil, e pelo Governo Vargas (1930-1945)”.

Além dos bustos humanos (PAZ, 2015), alguns museus escolares também eram compostos por objetos indígenas, os quais como já foi citado pelo diretor Kemp, serviam

como documentos para antropólogos e arqueólogos compreenderem as “raças primitivas”. É nesse contexto que o Museu Júlio de Castilhos acabou se tornando fornecedor de materiais para as escolas, pois possuía uma coleção etnológica formada por mais de 1000 objetos, e era a referência de museu no Rio Grande do Sul nesse assunto. Uma correspondência recebida em 1932 deixa uma pista em relação ao interesse do diretor Emilio Kemp em estudos sobre os povos indígenas, antes mesmo de ser diretor do museu:

O sr. Dr Emilio Kemp, diretor da Escola Normal, solicita a esta diretoria a sua cooperação no sentido de concorrer à exposição de objetos que evocam a vida doméstica dos primitivos povos do Brasil. Esta Repartição, pode, de fato, concorrer de modo eficiente aquela exposição, notadamente quanto à indumentária dos ameríndios, pois possui exemplares magníficos e em excelente estado de conservação. Julgando de grande utilidade o concurso solicitado pelo referido diretor, queira Vossa Excelência dar a indispensável autorização, certo de que os objetos expostos serão guardados com o máximo zelo e carinho. Essa exposição será feita na próxima sexta-feira, sendo, por isso, de urgência a determinação de Vossa Excelência. (RIO GRANDE DO SUL, 1932c, p. 251).

No excerto acima, Emílio Kemp, quando era diretor da Escola Normal, solicitava ao Museu Júlio de Castilhos, na época administrado por Alcides Maya, objetos indígenas para serem expostos a fim de evocar “a vida doméstica dos primitivos povos do Brasil”. Prontamente, o diretor Alcides Maya, solicitou ao secretário para que fosse autorizado o empréstimo de objetos para a exposição, que possivelmente, tenha ocorrido. Assim, tem-se a hipótese que desde a época em que era funcionário de outro estabelecimento, Emílio Kemp, já apresentava interesse em expor peças indígenas, talvez durante sua administração, influenciasse as escolas a pedirem objetos indígenas, ou se mostrasse mais aberto às doações destas peças. Portanto, durante as décadas em que as discussões sobre as teorias raciais eram frequentes no Brasil, o diretor do museu poderia ser uma referência dos diretores de escolas para solicitarem objetos indígenas, formarem seus museus escolares e, a partir disso, normatizarem as teorias racialistas nas escolas. No quadro 11 são apresentados os objetos indígenas doados pelo Museu Júlio de Castilhos para instituições escolares:

Quadro 11 – Materiais indígenas remetidos a instituições de educação (1944-1947):

Instituições Ano Artefatos indígenas

Grupo Escola Inácio Montanha 1944 Uma mão de pilão em duas partes Um machado grande Um machado pequeno

Um machado plano Três boleadeiras

Uma pedra para jogo Dois machados lascados

Três peças utensílios

Um arco de flecha completo com pontas de madeira lisa, dentilhada, caso e taquara Grupo Escolar Dona Leopoldina 1944 Uma metade de pilão

Um machado grande Dois machados médios

Três machados planos Três machados pequenos

Duas boleadeiras Dois machados lascados

Um alisador Um quebrador de caroços

Um machado com entale Escola Normal Nossa Senhora da Medianeira

de Bento Gonçalves

1944 Uma metade de pilão Um machado grande Dois machados médios

Três machados planos Três machados pequenos

Duas boleadeiras Dois machados lascados

Um alisador Um quebrador de caroços

Um machado com entale Faculdade Livre de Ciências e Letras66 1944 Dois machados polidos sem entalhe

Dois machados polidos com entalhe simples Um machado polido facetado

Meio machado circular Um machado lascado Uma ponta de lança em bruto

Um machado polido Quatro boleadeiras polidas

Uma mão de pilão

Três quebradores de caroços duplos Um mó

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A única exceção neste quadro é a doação feita para a Faculdade Livre de Ciências e Letras que não faria um museu escolar, mas sim um museu etnológico dentro do seu espaço institucional (RIO GRANDE DO SUL, 1944b).

Um quebrador de caroços Instituto de Educação 1946 Um machado circular inacabado

Um machado sem entalho Um machado plano Um machado sem entalho pequeno

Um machado plano grande Um machado oval grande

Um machado roliço Um machado oval pequeno

Um boleadeira Três boleadeiras pequenas Colégio São Carlos de Guaporé 1

1947

Boleadeiras Uma mão de pilão Um apontador de flecha Quebradores de caroços Um machado de pedra (pedra lascada)

Um machado de entalho Machados de pedra (pedra polida)

Um arco de flecha Uma flecha com ponta de taquara Uma flecha com ponta de madeira dentilhada Um

marrecão socó branco Fonte: RIO GRANDE DO SUL (1944b, 1946b, 1947b).

O quadro 11 apresenta uma compilação de informações encontradas na documentação consultada sobre os objetos indígenas que o Museu Júlio de Castilhos doou para escolas. No total, foram cinco escolas e uma faculdade que receberam as doações do museu no período de 1944 a 194767. Somando as doações tem-se o valor aproximado68 de 90 objetos, estes que foram doados por serem exemplares duplicados que o museu tinha.

Os registros sobre as doações realizadas pelo museu para escolas eram enviados para a Secretaria de Educação e Cultura do Estado, na época secretaria a qual o Museu Júlio de Castilhos estava vinculado. Não foram encontradas correspondências de solicitações das escolas para o museu, exceto da Faculdade Livre de Ciências e Letras, que, em 1943,

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Este recorte temporal foi realizado devido aos documentos históricos, pois somente neste período encontraram-se informações a respeito das doações de objetos indígenas guardados pelo museu para instituições de ensino dentro do período gerenciado por Alcides Maya e Emílio Kemp.

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Aproximado, pois em algumas informações não há o número exato de objetos, exemplo, a doação de boleadeiras para o Colégio São Carlos de Guaporé.

solicitava materiais indígenas para constituir o futuro museu etnológico da faculdade (RIO GRANDE DO SUL, 1943c). Talvez, as escolas por visitarem frequentemente o museu e terem abertura do diretor Emílio Kemp, possam ter feito seus pedidos pessoalmente através dos próprios professores que acompanhavam os estudantes nas visitas. Já correspondências de agradecimentos foram encontradas como a do Grupo Escolar Dona Leopoldina vista no trecho a seguir:

Recebemos com grande entusiasmo o valioso material enviado para o museu que estamos organizando neste Grupo Escolar. Por tanta bondade, agradecemos (alunos do terceiro ano e professora Nelly Velasques de Souza). (RIO GRANDE DO SUL, 1944c, p. 59).

Este agradecimento é feito em nome dos estudantes e de uma professora, que provavelmente visitaram o Museu Júlio de Castilhos e lá solicitaram peças indígenas para montarem um museu escolar ou o aprimorarem com os materiais recebidos. Esta hipótese se sustenta, pois, a relação entre o diretor Emílio Kemp com as escolas aparece inúmeras vezes na documentação histórica. O gestor não escondia sua preferência em pensar as atividades do museu para as instituições de ensino, de fato o diretor tinha uma visão pedagógica do museu, fazia questão de abrir as portas do estabelecimento para escolas, professores e estudantes.