• Nenhum resultado encontrado

A possibilidade da actividade crítica das práticas artísticas separadas de projectos de

7. O Interesse do Panorama Intelectual de Benjamin para as Práticas Artísticas

7.1. A possibilidade da actividade crítica das práticas artísticas separadas de projectos de

Voltando ao pensamento de Duve, consideramos que o panorama intelectual de Benjamin pode ser relevante para as práticas artísticas contemporâneas, porque não consiste simplesmente na convergência da actividade e crítica artística com um projecto de emancipação (neste caso, o Marxismo), mas antes porque configura a possibilidade de comprometimento crítico dessas práticas, para com uma máxima de emancipação.

Passando a explicar, em primeiro lugar, Duve defende que a actividade artística contemporânea deverá ser autónoma de um projecto de emancipação, uma vez que o

370 Cf. Ibid., 161-62.

legado que resultou da intersecção da ética (política) e o estético (práticas artísticas), rumo à prosseguição de utopias (projecto de emancipação), só poderá ser pautado por um sentimento duplo de desencantamento. Duve demonstra que os resultados da insistência na intersecção transitiva entre o ético e o estético no passado, por um lado, levaram ao totalitarismo – pela política que traiu os ideais éticos que propunha (a revolução russa de 1917 que confluiu no regime Estalinista, por exemplo) – e a desilusão (os artistas das vanguardas históricas que mediante uma função crítica se comprometeram com projectos de emancipação políticos, sociais e em solidariedade com a revolução, que hoje, dados os seus efeitos, não fazem mais sentido)372.

Para além disto, por um lado, um projecto de emancipação, ao declarar-se pronto para emancipar a humanidade, aposta esperançosamente no tempo e na história para que esse progresso seja cumprido, de modo a alinhar o ideal com a realidade. Mas quando esse projecto de emancipação constata que a realidade desejada e em que se acredita não se consuma – que um dia os homens serão efectivamente livres, iguais e irmãos, por exemplo – estará condenado a um sucessivo adiamento e retenção dessa projectada emancipação, porque considera que humanidade não estará ainda pronta para ela.373 Por outro lado, e como consequência, um projecto de emancipação reclama sempre a posse de uma dimensão universal (de uma Ideia geral de humanidade, como razoável , esclarecida e racional) de um grupo, ou classe, face a outra. Deste modo, o estabelecimento do comportamento ético em que se acredita e deseja nas instituições políticas acaba por revelar-se como a introdução de diversos aparatos de poder que estão ao serviço apenas daqueles que reclamam para si a razoabilidade e a racionalidade (o universal). Ou seja, esses grupos ou classes afirmam-se como se já se encontrassem num estágio avançado de amadurecimento ou idade adulta, determinando critérios (não raramente opressores) que justificam determinados meios para atingir os seus objectivos. 374

Assim, Duve oferece duas respostas com consequências problemáticas à pergunta se ainda subsistirá a possibilidade das práticas artísticas manterem uma

372 Cf. Duve, Kant after Duchamp, 432-435.

373 O adiamento sucessivo da emancipação da humanidade por um projecto que parte da máxima de emancipação e

reclama para si o governo da história em nome do fim último da história tem como consequência o terror, na opinião de Duve. A título de exemplo podemos referir a subordinação ao Comité Central pelos diversos partidos comunistas, na esperança de preparar ou educar a “ainda não preparada” classe proletária, ou até a apropriação por V. Lenin (1870-1924) do pensamento de Marx e a importância deste para a revolução bolchevique. Segundo o próprio Duve: “A revolução começa a falhar quando máxima e projecto são confundidos.” Ibid., 442.

função crítica375, separadas de um projecto de emancipação. A primeira, que podemos encontrar nos últimos partidários das vanguardas, que aceita essa possibilidade, mas que após o colapso das utopias modernas só poderá desdobrar a sua função crítica, criticando a própria ideia de utopia, por isto, limitando-se a uma exposição da vacuidade, desencantamento e desespero dessa proposta.376 A segunda, que nega essa possibilidade, será a atitude patente por exemplo em movimentos revisionistas, que renunciam a uma ambição ética de todo o campo artístico, afirmando que a modernidade estará terminada e que, portanto, tenta restabelecer os valores artísticos pré-modernistas. Assim, “onde a função crítica e a qualidade da arte não se desenvolvem em paralelo, abre-se a possibilidade novamente para a formação de um gosto apaziguador, do ornamento dos interiores burgueses ou a exaltação para com empresas multinacionais (em substituição da Igreja)”377.

Então, em segundo lugar, de modo a repensar as consequências das duas respostas à pergunta anterior, Duve insiste que será benéfico preservar uma actividade crítica das práticas artísticas, mas para com uma máxima de emancipação.

Por um lado, é a partir da constatação da “natureza” da humanidade, através das teorias mais recentes da evolução de Charles Darwin (1809-1882), da genética, da embriologia ou até da sociobiologia, que Duve centra o debate acerca do problema da ética, depois do colapso das diversas ideologias, como o Marxismo, que se afirmaram como projectos de emancipação.378 Neste sentido, Duve argumenta que a humanidade nunca chegará à idade adulta, estando permanentemente num estado de imaturidade constitutiva. Noutras palavras, à época do seu nascimento o sistema nervoso central dos seres humanos não está completamente desenvolvido e, portanto, cada nova geração estará permanentemente dependente de múltiplos estímulos externos do mundo e da cultura (língua, cuidado e afecto parental ou relações sociais), que forçam os seres humanos a cumprir a sua “natureza” através de um comportamento ético, por oposição a um tipo instintivo – impelindo-os para uma progressiva aproximação à civilidade, à liberdade democrática, ao estado de direito e a uma ordem política

375 Isto é, através da compreensão de uma noção das vanguardas artísticas pautadas principalmente pela sugestão

ideológica da insistência de uma relação transitiva entre a ética (política) e a estética (actividade artística). Cf. Ibid., 431.

376 Neste caso a implicação transitiva entre o ético e o estético ainda se mantém, uma vez que a reificação do

campo estético implicará uma alienação moral, tal como a ausência de liberdade política implicará uma falsa autonomia da liberdade artística. Cf. Ibid., 435.

377 Ibid., 434. 378 Cf. Ibid., 440.

internacional.379 Neste caso a constituição de uma humanidade puramente racional, autónoma e esclarecida é um objectivo inatingível, como demonstrado pelo desenvolvimento de variados mecanismos psicológicos intrincados, ou neuróticos (repressão, sonho, negação, sublimação, etc.), que apontam para uma tentativa de regulação das discrepâncias entre as capacidades racionais do cérebro e os resquícios instintivos dos estágios mais primordiais da evolução natural que a sua fisiologia também contém.380

Sintetizando, segundo Duve, toda a humanidade será por definição perpetuamente emancipada (nascendo prematuramente e estando dependente da cultura e da civilização para ordenar o seu progresso ético e político), será “ [. . .] aquela a quem é permitido antecipar a idade adulta, embora ainda não a tenha atingido, mas como se já a tivesse atingido”381, mesmo que se constate que essa idade adulta (sujeito inteiramente racional, autónomo e esclarecido) nunca chegará. Nesta acepção, conclui-se que a humanidade apenas poderá ser emancipada, e nunca libertada, estando vinculada (como determinação natural e obrigação moral) a antecipar um estado adulto que a sua própria natureza exclui.382

Por outro lado, Duve insiste que um projecto de emancipação não deve ser confundido com uma máxima de emancipação pois, esta última, corresponde à aceitação de um princípio regulador que modela a acção, que prossegue “como se” a humanidade já fosse emancipada, ou “como se” a humanidade estivesse preparada para espontaneamente ordenar a sua conduta de acordo com máximas, por exemplo, como as da Revolução Francesa, de Liberté, Egalité ou Fraternité – “como se” a humanidade já fosse racional, esclarecida e adulta. A orientação do comportamento ético rumo a uma máxima de emancipação significa que se deverá agir “como se” a humanidade fosse já adulta, racional, esclarecida e razoável, ainda que os acontecimentos de opressão, guerra e miséria nos demonstrem que essa realidade não é, nem será provavelmente, uma evidência. Nas palavras de Duve: “Deve-se regular a própria conduta a partir da Ideia de humanidade.”383 Neste caso, o universal deverá ser entendido, como Kant o descreveu, como um simples sentimento de pertença à

379 Cf. Ibid., 441.

380 Cf. Ibid., 438. Encontramos também em Agamben, ainda que noutros termos, uma defesa desta proposta, uma

vez que o autor atribui à introdução, estudo e reconhecimento do inconsciente no século XIX, como uma prova de um “mal-estar” provocado pelo equívoco do entendimento da experiência que se funda no sujeito racional cartesiano, proveniente da concepção moderna do sujeito. Cf. Agamben, Infância e História, 51.

381 Duve, Kant after Duchamp, 437. 382 Cf. Ibid., 441.

espécie humana – ou sensus communis. Deste modo, é eliminada a implicação presente no projecto de emancipação de que no campo ético a ideologia tem efeito nas condições objectivas de existência por uma mera implicação lógica, isto é, “ [. . .] de uma teoria correcta, não é implícito que a prática seja justa.”384

Portanto, qualquer actividade crítica, orientada para com uma máxima de emancipação traduz-se num sinal subjectivo, ou sentimento – nunca numa realidade comum demonstrável – que incita os sujeitos a comportarem-se como se todos os humanos fossem maduros, ainda que, pela força da sua “natureza” saibamos que eles são constitutivamente prematuros e estarão para sempre num estágio de infância.385

O objectivo benjaminiano de criação de uma Physis como uma nova e colectiva humanidade física que se organiza dentro da Technik, através de um processo descrito em imagética corpórea de desmembramento e reconstituição386, encerra o seu ímpeto universalista sem que isso signifique atribuir uma característica idealista ao seu pensamento. Noutras palavras, Benjamin, tal como de Duve, não descura a importância das lutas particulares, mas inscreve a legitimidade da sua proposta pela compatibilidade com o “bem comum” no sentido kantiano do termo, entendida como uma máxima que deve regular a crítica e o comportamento ético e estético. Noutras palavras, Benjamin, ao contrário de Marx ou das interpretações mais disseminadas do seu pensamento, não consente na implicação de que a ideologia conseguiria redireccionar o curso da história, uma vez que não concebe que a revolução é o resultado “natural” ou “inevitável” das mudanças económicas e progresso tecnológico. A sua preocupação parte da convicção que o progresso tecnológico e económico a que assiste no seu tempo impõe ameaças graves para a humanidade no seu todo387.

Concretizando, por último, a função crítica da arte orientada segundo uma máxima de emancipação significa que esta apenas poderá sinalizar por analogia e reflexividade, não por transitoriedade e ideologia, uma relação entre o campo estético e o político. Esta relação entre o campo ético e estético apenas pode indicar a necessidade de um princípio regulador universal que existe, formulado em termos próprios e distintos, no campo artístico e político. Neste sentido, a actividade crítica da arte não fornece nenhum critério de qualidade aos objectos de arte, mas pode ser

384 Ibid., 445. 385 Cf. Ibid., 446.

386 Cf. Leslie, Walter Benjamin: Overpowering Conformism, 23. 387 Cf. Löwy, Fire Alarm, 9.

benéfica na medida em que o observador que reconheça uma crítica implicada numa obra pode, por analogia, estimular uma actividade crítica própria similar. Ou seja, a actividade crítica da arte pode oferecer uma ponte analógica e reflexiva que alia o conhecimento à vontade, a actividade teórica ou ideológica à acção prática ou ética, sem as confundir e sem as fazer derivar umas das outras. 388

7.2. O pensamento de Benjamin no quadro de uma actividade crítica das