• Nenhum resultado encontrado

1. INTRODUÇÃO

Hallo, Blumenau. A voz feminina ao microfone anuncia: a 32ª Oktoberfest está começando. O público se aperta no recém-inaugurado pavilhão10 do Parque Vila Germânica. Do palco, autoridades se revezam para dar boas-vindas aos festeiros, muitos deles estrangeiros. A cerimônia segue com o ritual simbólico importado da Alemanha, antes da sangria do primeiro barril. Em cortejo, homens vestidos de monges imitam produtores de cerveja. Eles trazem um caneco de cristal guardado da edição anterior. Carregam tochas e bandeiras oficiais e remetem à cultura alemã da época medieval. Músicos entoam os hinos nacionais da Alemanha e do Brasil diante das bandeiras pátrias. Sim, é mesmo nesta ordem, primeiro o da Alemanha. Apesar da chuva permanente e das previsões de mais uma enchente, um público superior a 20 mil pessoas se aglomera na primeira noite da festa, cujo balanço final do ano somará mais de 470 mil foliões.

É dada a largada para mais uma edição do evento, anunciado como uma das festas mais populares do Brasil. Nos próximos 18 dias, o ritmo será o zique-zaque e o cardápio oficial, o eisbein e o kassler11, degustados com cerveja. Entre flashes e holofotes, a imprensa disputa o registro de cada momento. Da plateia, o público fotografa e filma tudo com seus celulares. A celebração observada na noite de 7 de outubro de 2015 se repete todos os anos desde 1984, com alterações. Aparentemente, apenas festiva, esta comemoração alegórica ajuda a construir uma Blumenau no imaginário coletivo e a consolidar símbolos travestidos de tradições. Moradores, foliões e aqueles que sequer conhecem a cidade incorporam visões sobre ela, baseadas na encenação e reproduzidas pelos conteúdos jornalísticos. A transformação da identidade alemã em produto turístico leva uma multidão a se fantasiar de bávaros a cada mês de outubro no município.

A forte repercussão e a consolidação em torno do produto Oktoberfest parecem aprisionar a cidade a um passado que não pertence a todos. Os primeiros imigrantes alemães a chegarem em Blumenau não partiram do Sul da Alemanha, como sugere a Baviera, onde ocorre o festival da cerveja de Munique. Até pelo fato de a constituição do Estado moderno alemão (o País, Alemanha) acontecer em 1871, duas

10

Inaugurado em 2015 com o nome de Eisenbahn Biergarten, o pavilhão é o Setor 4 do Parque. Tem quase 4,5 mil metros quadrados de área construída e capacidade para aproximadamente 4 mil pessoas.

11

décadas após a fundação da colônia Blumenau (1850). Além do mais, vieram sim do Norte12, onde as tradições e inclusive as roupas eram outras. No entanto, as narrativas produzidas sobre a cidade apagam essas diferenças em torno da unificação de um discurso e negação de vários outros. Apesar da discrepância histórica, a Oktoberfest aparece na imprensa como retrato ―genuíno‖ da expressão local e da maneira como se busca a representação de Blumenau. As relações entre memória e história acompanham esta construção.

A presença dos monges na abertura simboliza, conforme a organização, ‗significados históricos‘ baseados na Idade Média. Neste período, monges europeus produziam diferentes tipos de cerveja e, ao fim das festas anuais, teriam o hábito de enterrar os canecos para, no ano seguinte, desenterrá-los. A Oktoberfest seria uma espécie de elo com o passado, pois buscaria recuperar a tradição. Toda a solenidade, transmitida ao vivo através de telões, demonstra a representação criada com elementos de um ritual do folclore, ocupando destaque na mídia. A imprensa regional também assegura ampla visibilidade ao tema. Muitas vezes, concedendo-lhe espaço privilegiado, conforme é mostrado na imagem de capa da edição do Jornal de Santa Catarina em 4 de outubro de 2013. Seria um erro estudar o meio de comunicação de forma isolada, por isso a busca aqui, também é pela compreensão do contexto histórico, social e político no qual o periódico está inserido.

12

Conforme mostra a pesquisa apresentada como dissertação de mestrado por André Voigt em História na UFSC (1999), cujo título é: Imigrantes entre a cruz e a espada – Imigração alemã, confissão religiosa e cidadania no Vale do Itajaí (1847 – 1863). A constatação também aparece no livro Oktoberfest: turismo,

festa e cultura na estação do chopp, da historiadora Maria Bernadete Ramos

Flores (1997): ―Os primeiros imigrantes ‗alemães‘ que chegaram ao Sul do Brasil não eram, propriamente, ‗alemães‘. O processo de unificação da Alemanha como um estado nacional foi muito tardio e só foi concluído em 1871 [...] Assim, quando aqui chegaram, estes imigrantes eram prussianos, bávaros, renanos, mas ainda não podiam ser considerados alemães, mesmo com seus dialetos, falassem a língua germânica‖. (FLORES, 1997, p. 48).

Capa do Santa – edição do dia 4 de outubro de 2013. Na legenda da imagem de capa: Com as luzes apagadas, 12 monges entraram no Setor 2, com tochas e um

caneco de cristal, entregue à rainha Shirlene Reichert, no palco, dando início à festa

Enchentes, indústria têxtil, mercado de software, cristais, povo trabalhador, sotaque alemão, cerveja e, claro, Oktoberfest auxiliam na construção do imaginário coletivo de Blumenau. Localizada numa das regiões consideradas mais desenvolvidas do Estado - o Vale do Itajaí, a cidade se tornou símbolo de ―um Brasil que deu certo‖13

, apesar das desigualdades sociais14, tal como no enfrentamento das frequentes cheias que marcam sua trajetória desde a fundação. Mas a imagem da cidade, tomada pelas águas e o transbordamento do Rio Itajaí Açu, acompanham-na como os discursos sobre a associação às tradições e traços germânicos. Os desastres aparecem inclusive como reforço à capacidade de superação do povo blumenauense15. É como se fosse um fragmento da Alemanha no Brasil, a exemplo da maneira como aparece citada em diferentes narrativas por diversos agentes, seja na literatura, publicidade, discurso oficial ou na imprensa.

Pretendo, por meio desta pesquisa, relativizar a naturalização de uma narrativa homogeneizadora sobre as representações de Blumenau no jornalismo, pautadas na germanidade, as quais reduzem as diferenças e heterogeneidades culturais, no sentido de tornar igual o que é diverso, contribuindo com a construção de uma visão única. Nas narrativas sobre o município, é comum a tentativa de afirmar a diferença com atribuição de sentido e apelo para qualificar imigrantes de origem alemã. A produção desse discurso envolve vários agentes e, conforme será mostrado neste estudo, é consequência de um esforço de elites econômicas e políticas. A princípio, tem estímulo em ações de entidades como Clubes de Caça e Tiro, mas encontra eco, muitas vezes, na própria

13

O Brasil que dá certo é o nome dado a um suplemento especial anexado à Folha de São Paulo, cuja circulação ocorreu em junho do ano passado e destacou as regiões do país sobre o aspecto econômico. A região Sul foi apresentada com base nos indicadores sobre a pujança da economia no Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

14

Ao todo, 40% da renda em Blumenau estão com os 10% mais ricos da cidade, de acordo com dados do Censo do IBGE em 2000.

15

Como mostrou a dissertação da historiadora Méri Frotscher: Etnicidade e trabalho alemão: outros usos e outros produtos do labor humano (1998/UFSC). E a exemplo de uma das versões principais para própria criação da Oktoberfest, em 1984, após as grandes enchentes do início dos anos 1980 e ainda da edição da festa posterior à catástrofe de 2008, quando se registrou um público solidário ao episódio, conforme relato do ex-presidente do Parque Vila Germânica, Norberto Mette, em entrevista à autora em outubro de 2015.

imprensa. O jornalismo perpetua estereótipos de forma automática e acrítica quando não questiona uma realidade pré-estabelecida.

A finalidade, aqui, é refletir sobre crenças que se quer consolidar, suspender juízos e desconfiar de certas verdades instituídas como absolutas. Afinal, o ofício do jornalista se fundamenta na arte de perguntar. Como advertido pelo premiado repórter Marcelo Canellas, ―ao deixar de ser um perguntador criterioso, o jornalista pode estar, simplesmente, reproduzindo uma percepção historicamente determinada, e coletivamente irrefletida, o que resulta num retrato homogêneo da realidade aparente‖16

. A proposta neste estudo é a de provocar uma discussão confrontadora aos conceitos de jornalismo e identidade, promovendo o pensar sobre o papel das narrativas nesta dinâmica. Neste contexto, a germanidade tem sido recriada a partir de concepções reducionistas, como o caso dos monges na cerimônia oficial de abertura da Oktober. Outro exemplo é o do folheto turístico ―Blumenau‖, durante o governo de Renato Vianna. (1977 a 1982, 1993 a 1996).

As características europeias, as compras, a ecologia, a proximidade das belas praias catarinenses e a alegria contagiante das melhores festas do país, como a ‗Oktoberfest‘, são motivos para você visitar BLUMENAU e conhecer este lado tropical da Alemanha, desfrutando da hospitalidade brasileira de cabelos loiros e olhos azuis.

Não se pode negar: a colonização teve forte influência germânica em Blumenau, onde os primeiros jornais nasciam em língua alemã. A germanidade também é conhecida e traduzida pela expressão alemã Deutschtum, usada para definir o modo de vida germânico (na manutenção da língua materna e dos costumes alemães)17. Esta

16

Em texto intitulado Sobre A Notícia, publicado na edição de 3 e 4 de maio de 2014 no Diário de Santa Maria. Pode ser encontrado aqui: http://wp.clicrbs.com.br/cronistasdodiario/2014/05/03/sobre-a-noticia/ Acesso em 15 de agosto de 2015.

17

De acordo com a historiadora Maria Bernadete Ramos Flores, no livro Oktoberfest: Turismo, festa e cultura na estação do chopp (1997), o conceito

Deutschtum ―inclui tudo o que pode ser entendido como étnico por referência à

ideia de origem comum, ancestralidade e herança cultural. Mas a referência à herança comum não deve ser vista como solidariedade prescrita, e sim como

expressão está baseada no sentimento de pertencimento nacional a uma ―comunidade alemã‖. As narrativas em torno desta ideia encontram respaldo na literatura. Publicações contemporâneas reforçam a prosperidade da colônia alemã, como observado por Seyferth (2012). Três exemplos num intervalo inferior a 30 anos são: Verde Vale (1979), primeiro livro da escritora blumenauense Urda Alice Klueger, com sucessivas edições; A geografia da esperança: um romance dos pioneiros de Blumenau (2002), de Christina Baumgarten e O guarda- roupa alemão (2006), assinado por Lausimar Laus.

Com interesses definidos, a região cuja cidade destaque é Blumenau foi batizada de ―Vale Europeu‖ pela Santur, órgão de turismo do governo do Estado. Facilmente incorporado por outras narrativas, além da publicitária, o jargão ajudou a construir a falsa impressão ao visitante: o Vale é um pedaço da Alemanha no Brasil. Aqui se pode encontrar a preservação intacta dos costumes trazidos pelos descendentes. A região de Blumenau, composta por outras 14 cidades, é frequentemente concebida como sendo a detentora da maior concentração de descendentes de origem alemã no Brasil. Há referências em torno de 85% da população18. Não há, contudo, estatística oficial que dê conta do número em Blumenau. Apesar da diversidade étnica e cultural, produzida por distintos ciclos de imigração, as narrativas focadas no município costumam silenciar esses outros ângulos e abordagens. Prevalece o espectro romantizado alemão.

Dados do último censo do IBGE, em 2010, apontam que 89% da população blumenauense se autodeclaram branca19. É uma característica não exclusiva da cidade. Santa Catarina é o estado com a menor proporção de negros na população20. Desmistificar a ideia de que há uma Europa no Sul do País passa, indiscutivelmente, pelo reconhecimento das contribuições pluriétnicas na formação do país. O assunto permeia várias áreas. Teóricos das questões urbanas alertam ainda para o fenômeno da cidade-mercadoria. A disseminação de ―um discurso ideológico que, em sua vertente urbana, configura políticas de promoção e legitimação de certos projetos de cidade tornados algo construído ao promover um conjunto de ideias e símbolos que reivindicam uma identidade oposta à outra‖ (FLORES, 1997, p. 43).

18

Informação encontrada no livro Gente Catarina – Origens & Raízes, editora Terras Brasileiras.

19

Dados podem ser encontrados em: http://www.furb.br/web/4842/observatorio- do-desenvolvimento-regional/sigad/apresentacao

20

emblemáticos da época presente, as chamadas ‗cidades modelo‖ (SÁNCHEZ, 2009, p. 172). Acredito no potencial do jornalismo como contraponto a esses discursos homogêneos, criados com intenções definidas e reproduzidos, não raramente, sem qualquer problematização. Em Blumenau, a exaltação de uma cultura, no caso a germânica, em detrimento de todas as outras gera ausências, negação às demais, e revela insensibilidade no trato da diversidade cultural. Isso por que torna invisível e impede o reconhecimento de outros traços. Esta supremacia cultural dos descendentes alemães se manifesta na distinção de um povo voltado ao trabalho, que ganha força em outubro. Mas extrapola a festa e assume contornos de perversidade, como se constata no curioso anúncio nos classificados de emprego do Jornal de Santa Catarina, em dezembro de 2015 (fac-símile a seguir). A vaga de empregada doméstica para trabalhar em Blumenau e Balneário Camboriú exigia, entre os pré- requisitos, que a candidata fosse de origem alemã. A requisição gera desconforto e expõe um ideário permeado por inspirações racistas e xenófobas com flerte na eugenia. Afinal, qual critério justificaria a necessidade da exigência na prestação do serviço?

Foto 5 – Anúncio publicado nos Classificados de Emprego do Jornal de Santa