• Nenhum resultado encontrado

Fonte: PMB

Pesquisadores já se debruçaram sobre o fenômeno da germanidade em Blumenau, nas áreas da História, Literatura e

22

Uma outra campanha que pode ser citada aqui é Eu me orgulho, inspiração da Free Multiagência a serviço da prefeitura de Blumenau. A iniciativa foi lançada em 2011 e sustentava Blumenau como a melhor cidade de SC, segundo o Índice FIRJAN, Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro. O resultado gerou reações negativas por despertar a xenofobia além de só contemplar dados de saúde, educação e geração de emprego. Mais informações em: http://controversas.com/cotidiano/por-que-eu-nao-me-orgulho/ (acesso em 9 de outubro de 2016).

Arquitetura23, citando apenas três delas. Faltam, no entanto, estudos que aprofundem a questão no Jornalismo. Constatação fortalecida, considerada a capacidade de a atividade produzir sentidos e não simplesmente ―refletir a realidade‖, como sugeria a primeira teoria do Jornalismo. Sem ignorar Peter Berger e Thomas Luckmann em A construção social da realidade (1966), mas como ponto de apoio específico em Eduardo Meditsch em Jornalismo e construção social do acontecimento (2010), parte-se do pressuposto de que o jornalismo constitui um campo necessário, a fim de se entender como é construída a realidade. Estabelece enquadramentos do mundo a nossa volta e sugere o que e como o público vai pensar, portanto, influencia a sociedade, mas também é influenciado por ela, numa relação indissociável.

O objeto de estudo desta pesquisa é compreender as contribuições da imprensa na construção da identidade germânica em Blumenau. Este olhar está amparado em textos dos teóricos Boaventura de Sousa Santos e Stuart Hall, a partir dos conceitos de identidade. A análise é voltada, principalmente, à cobertura jornalística da Oktoberfest, principal evento de celebração das tradições germânicas no município, mas não se reduz a ela. O ponto de partida da pesquisa é o Jornal de Santa Catarina, único diário de Blumenau, lançado por um grupo de empresários em 1971. A pesquisa contempla, ainda, materiais relevantes publicados/veiculados em meios de alcance regional e até nacional que dialogam com o tema, com a finalidade de coletar uma amostragem expressiva ao estudo. O objetivo é perceber como se dá a disputa pela narrativa oficial em torno da cidade e buscar reflexões na tentativa de desvendar os porquês do comportamento adotado pela imprensa. Como objetivos específicos, busco relativizar a naturalização da narrativa hegemônica, refletir sobre crenças e verdades absolutas, confrontar jornalismo e identidades, além de identificar as vozes que reforçam e contrapõem a narrativa hegemônica.

Há de se registrar, também, meu interesse pessoal em trazer à tona esta temática. Como natural da vizinha cidade Gaspar (SC),

23

Na História, o livro Oktoberfest: turismo, festa e cultura na estação do chopp, de Maria Bernadete Ramos Flores (UFSC) é uma referência. Na Literatura, o professor, mestre e doutor em Literatura Inglesa, José Endoença Martins (FURB) também se debruçou sobre o tema. Ele utiliza as metáforas Blumenalva, que remete a um conceito de germanidade fechada, teutoblumenauense, Nauemblu, mostra-se plural, aberta, descentrada, estranha e nada paradisíaca, e Negricite. Na Arquitetura, os estudos preliminares do professor Vilmar Vidor (FURB) abriram eco para esta discussão.

transferi-me para Blumenau em 2010, mas trabalho na cidade desde 2001 quando era estudante de Jornalismo, época de meu ingresso como estagiária da Rádio CBN Blumenau. Desde então, atuei como jornalista em outros veículos de comunicação da cidade (no próprio Jornal de Santa Catarina, escolhido como objeto empírico da pesquisa). Durante um café na cantina da Universidade Regional de Blumenau, em outubro de 2014, o escritor Maicon Tenfen, meu professor na especialização em Literatura, deixou-me inquieta com uma sugestão que mudaria o enfoque da pesquisa. Conhecido por assinar colunas polêmicas e questionadoras sobre o comportamento do blumenauense no Santa24, ele propôs novo rumo ao estudo, até então voltado à prática da reportagem na imprensa de Blumenau.

Tenfen lançou-me o desafio de tratar da relação entre a imprensa e a construção da identidade germânica na cidade. Citou trabalhos que eu havia feito no período de repórter do Santa (2006 – 2010), que já refletiam parte de minha inquietação com a identidade assumida como predominante. Entre eles, as séries de reportagens – Negra Blumenau, cuja proposta foi a de apresentar as origens negras na ―loira Blu‖ e Cidade Invisível, sobre as áreas de concentração de pobreza no município, ambas publicadas em 2007. Em 2010, o Censo do IBGE apontou Blumenau como responsável pelo maior número de moradores em favelas do Estado. Conhecedor das pesquisas anteriores, meu interlocutor dizia que eu tinha nas mãos um grande tema para a dissertação. Saí daquela conversa com a cabeça fervilhando ideias e convencida da mudança de tema. Com a aprovação do orientador, restou-me dedicação à alteração da proposta.

Quando, em 2013, estive na Alemanha para um estágio na redação brasileira da Deutsche Welle, morei por sete meses com uma alemã até então desconhecida por mim. Bettina custou a acreditar na influência alemã de Blumenau, cidade a qual ela só conheceu pelos meus relatos, surpreendendo-se quando lhe mostrei imagens e vídeos da festa blumenauense pela internet. Ficou impressionada com as semelhanças entre as roupas, a culinária e a música de Munique e de Blumenau. Dizia-se incrédula diante dos sons e cores. O estranhamento se estendeu aos nossos vizinhos e amigos alemães. Todos imaginavam que eu fosse negra ou mulata, por ter vindo do Brasil. A pele e os olhos claros não correspondiam às expectativas criadas. Num mútuo pensamento reducionista, os colegas de redação na DW – a maior parte

24

Adotamos aqui o termo para se referir ao jornal, seguindo a maneira como costuma ser chamado.

deles brasileiros – acreditavam que só o fato de ter morado em Blumenau já me fazia uma exímia falante do idioma alemão.

A ideia alastrada pela propaganda e absorvida pelo senso comum de que, basta ir a Blumenau para se tornar alemão, encontra eco também no jornalismo. O discurso jornalístico reforça esse estereótipo quando alimenta essa associação. Um exemplo é a reportagem veiculada no Jornal Nacional em outubro de 2013, em que o repórter faz a seguinte afirmação na passagem25: ―e no meio de toda essa folia, parece que todo mundo quer ser um pouquinho alemão‖26. No mesmo material, o off27 revela: ―tem alemão de mentirinha usando o idioma dos donos da casa na hora da paquera...‖. Dá a impressão de que em Blumenau o idioma oficial é o alemão quando, na verdade, sabe-se que a afirmação está longe da realidade. Os dialetos resistem em regiões distantes da área central, como na Vila Itoupava. Além disso, pode produzir a falsa ideia de que há o alemão ―de verdade‖, morador de Blumenau e o ―de mentira‖, visitante da festa.

A apropriação pelo jornalismo de mecanismos e jargões utilizados pelo marketing turístico e pela propaganda em torno da festa também me foi algo estimulador à investigação. Alguns discursos têm sido recorrentes, impondo um modelo de abordar a cidade, legitimado pela agenda midiática dominante. Em geral, apelos publicitários, tais como ―festa mais alemã do Brasil‖, ―Pedaço da Europa no Brasil‖ ou ―Alemanha Brasileira‖, tornaram-se clichês reforçados pela imprensa. A tendência da implantação de um pensamento limitado com estas versões desafia o papel da imprensa e diminui as possibilidades de novas interpretações sobre este espaço geográfico. Reduzido a ser reprodutor da voz oficial ou pautado por interesses meramente comerciais, o jornalismo se arrisca a perder a sua capacidade concreta de informação e transformação.

25

Passagem é o nome que se dá no Jornalismo para o momento que o repórter aparece na reportagem televisiva. É ela que dá credibilidade ao que está sendo veiculado, funciona como uma espécie de ―assinatura‖ do jornalista. A passagem pode ser usada para descrever algo que não se tem imagem, destacar uma informação dentre outras, unir duas situações, destacar um entrevistado ou criar uma passagem participativa.

26

A reportagem pode ser vista pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=uIGjVFA6GUU

27

Off é o nome que se dá ao texto jornalístico feito e narrado pelo repórter com base nas imagens produzidas pela equipe de reportagem.

Como metodologia desta pesquisa, busco amparo na análise crítica da narrativa, proposta pelo professor Luiz Gonzaga Motta. O método foi escolhido por julgar ser útil na identificação da representação histórica feita por um grupo específico (comunidade, povo, nação) de si mesmo. O estudo está baseado num corpus composto por 29 reportagens e uma entrevista28 publicadas no Jornal de Santa Catarina entre 1984 e 2015. Há, ainda, materiais de outros veículos como suporte, coletados em diferentes acervos do Estado que dialogam com o corpus principal e, por este motivo, não foram ignorados.

A partir da amostragem, procuro identificar as etapas sugeridas por Motta na construção deste processo. Além do material empírico, a investigação se apoia em 23 entrevistas de pessoas com discursos em favor da germanidade ou da contracultura hegemônica em Blumenau, além de jornalistas. A realização de entrevistas, além de ampliar a massa documental para análise, foi vista como necessária para apontar alguns atores sociais relevantes no debate e apreender os argumentos utilizados por eles. Trata-se, especialmente, da entrevista individual em profundidade, abordada por Duarte (2006). Os entrevistados foram selecionados com base em abordagem temática do corpus.

No noticiário jornalístico, a recomposição reúne fragmentos dispersos de reportagens em uma narrativa recorrente. A metodologia é eficaz neste caso, pois sugere a análise da construção de significados através da configuração do acontecimento jornalístico. Na cobertura da imprensa, a pesquisa se fundamenta na perspectiva de como este conflito étnico cultural se manifesta. A análise se sustenta em discursos parciais de uma contraditória narrativa hegemônica em Blumenau. Considera que a identidade da cidade está em disputa e é contestada por diversos agentes sociais, num questionamento e confronto permanentes. Afinal, nem todos são alemães em Blumenau, nem mesmo quem se vê como tal. Mas as narrativas hegemônicas tentam tornar o mais natural possível, o discurso de que a cidade é terra de alemães exclusivamente. A disputa é por uma narrativa mais autêntica ou que predomine.

Esta luta por hegemonia indica: há um conflito em andamento, exposto, inclusive, na voz dos próprios especialistas, como na discordância da classificação do enxaimel nas falas do carpinteiro Paulo Volles e da arquiteta Angelina Wittmann29. As controvérsias suscitam o

28

A entrevista foi selecionada diante da relevância da temática frente à pesquisa proposta.

29

Enquanto o primeiro considera enxaimel as construções que são totalmente encaixadas, sem o uso de quaisquer pregos na sua montagem, a segunda não

questionamento: O que é ser germânico? Por isso, parte-se do conflito étnico cultural e, em razão desta escolha, procura-se a identificação das vozes dissonantes na cobertura jornalística em busca dos atores sociais que falam, a fim de identificar os narradores de um lado e de outro. Quais as vozes discordantes? A voz institucionalizada é a mais utilizada no texto jornalístico, mas o jornalismo também legitima discursos, ajuda a institucionalizar vozes. Há narrativas em confronto na imprensa. Qual o interesse de cada uma delas? A amostra intencional nos momentos de acirramento do conflito indicou esses interesses, conforme apontaram os resultados obtidos com esta pesquisa.

A dissertação se divide em quatro capítulos. No primeiro, discorro sobre o processo de construção da identidade predominante em Blumenau. A intenção é mostrar, historicamente, os elementos atuantes na formação da imagem da cidade como uma extensão da Alemanha. Apresento, ainda, narrativas contrapostas a esse discurso e as relações de forças envolvidas nesta disputa simbólica, mobilizada por lideranças políticas, intelectuais e movimentos sociais. No segundo capítulo, contextualizo o objeto empírico da pesquisa e a imprensa em Blumenau. Como único diário do município e sendo lançado com abrangência estadual, antes mesmo do Diário Catarinense (1986), o Jornal de Santa Catarina testemunha a festa desde a primeira edição. Problematiza-se, aqui, o percurso do periódico, seus processos jornalísticos e as finalidades do jornalismo, a fim de identificar como se dá a construção de uma identidade predominantemente germânica na cidade.

A análise do corpus se concentra no terceiro capítulo, onde a ênfase está direcionada às relações entre identidade e imprensa em Blumenau, com a análise das constatações de práticas de legitimação da narrativa germânica nas páginas do jornal. Esta etapa da pesquisa se debruça sobre as estratégias discursivas que revelam intencionalidade, utilizadas no texto jornalístico para sustentar uma identidade cultural predominante. No quarto e último capítulo, esmiúçam-se fragmentos de depoimentos concedidos por entrevistados à autora, aprofundando-se nas inferências produzidas com base nas metanarrativas. Entre discursos de exaltação e oposição à supremacia germânica, consolida-se o tensionamento na instituição de uma identidade, marcada por um jogo de interesses e disputa de forças. Esses significados implícitos, presentes nas entrelinhas do enunciado, desvelam-se articulados na ideia central etnocentrista.

descarta a possibilidade de uso do prego.

Esta pesquisa se justifica diante do contexto internacional, com os conflitos étnicos na Europa decorrentes da maior crise migratória desde a Segunda Guerra Mundial, como classificou a Organização das Nações Unidas (ONU). Também é consequência de uma inquietação diante da maneira como Blumenau aparece representada em conteúdos de cunho jornalístico, seja na imprensa local, nacional ou internacional. O jornalismo é capaz de refletir a cidade e o mundo plural e diverso? Se um dos objetivos da imprensa é dar voz aos oprimidos e se comprometer com os interesses da coletividade (KOVACH; ROSENSTIEL, 2003), onde está esta imprensa em Blumenau? As preocupações com o grau de envolvimento e a entrega visceral ao tema me acompanharam pelo percurso. Mas cessaram com a descoberta do texto O Compromisso Social do Profissional com a Sociedade, do educador Paulo Freire (1983):

Sobre o ato de assumir um compromisso, próprio da existência humana, só existe no engajamento com a realidade, de cujas ‗águas‘, os homens realmente comprometidos ficam ‗molhados‘, ensopados. Somente assim o compromisso é verdadeiro. Ao experenciá-lo num ato que necessariamente é corajoso, decidido e consciente, os homens já não se dizem neutros. A neutralidade frente ao mundo, frente ao histórico, frente aos valores, reflete apenas o medo que se tem de revelar o compromisso. Este medo quase sempre resulta de um compromisso contra os homens, contra sua humanização, da parte dos que se dizem neutros. Estão comprometidos consigo mesmo, com seus interesses ou com os interesses dos grupos aos quais pertencem. E como este não é um compromisso verdadeiro, assumem a neutralidade impossível (FREIRE, 1983, p. 19). Este trabalho almeja ser um convite à reflexão sobre práticas pouco questionadas pela imprensa e, por consequência, da população em geral. O processo de produção de notícias transforma determinados fatos em informação jornalística e legitima algumas versões em detrimento de outras. Assim, o jornalismo produz acontecimentos, institui a visibilidade e a invisibilidade de assuntos, a existência ou não existência de temáticas e reflexões. Se só se compromete aquele que consegue ficar ‗molhado, ensopado‘ pela realidade em que vive, foi este o caminho

escolhido aqui. Num mundo onde o pensamento único é estimulado como prática, assim como a repetição, questionar um símbolo como a identidade pode ser visto como ―afronta ao orgulho de uma cidade‖, como ouvi de alguém durante o trabalho. Nesta pesquisa, entretanto, quer-se provocar o debate sobre algo que parece naturalizado. E, para que o exercício da crítica seja alcançado, o primeiro passo é permitir-se perguntar.

Foto 8 – O Castelinho da Rua XV de Novembro como pano de fundo e a