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COLONIALIDADE DO PODER DEFININDO O MUNDO

CAPÍTULO 3 DELINEANDO OS CONTORNOS

3.1 COLONIALIDADE DO PODER DEFININDO O MUNDO

O colonialismo traduz um período histórico caracterizado pelo domínio direto, a partir de um modelo administrativo, político e econômico, de algumas nações sobre outras, iniciado no século XV e consolidado no século XIX. O modelo de dominação e exploração imposto implicou no desenho de uma cartografia global do poder, na concentração mundial de recursos, no racismo e na hierarquização étnico-racial dos povos, na hierarquização das relações de gênero, a partir de uma lógica patriarcal, e na afirmação, no campo da sexualidade, da heteronormatividade.

O enfrentamento da estrutura colonial produziu lutas concretas de mulheres e homens colonizados contra as metrópoles nas Américas, na África e na Ásia, e é esta tradição de resistência que faz com que se aposte43 em mudanças produzidas por outras perspectivas políticas e epistêmicas provenientes da radicalidade do lado subalterno da diferença colonial

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Segundo Ramón Grosfoguel (2010, p. 455-491), o debate geralmente é delimitado em termos de tendências: estudos subalternos; estudos culturais e estudos pós-coloniais. Contudo, delimitar o campo teórico preciso no qual se inserem as tendências não é tarefa fácil, pois muitas vezes um(a) autora(a) é percebido(a) como pertencente aos estudos subalternos, mas também integra os estudos pós-coloniais. Ou, ainda, determinado(a) autor(a) é “encaixado(a)” nos estudos pós-coloniais e, no entanto, nunca se posicionou desta forma. É o caso, por exemplo, de Edward Said, considerado um dos inauguradores dos estudos pós-coloniais, apesar de ele não ter se colocado assim. A crítica pós-colonial caracteriza o sistema capitalista enquanto sistema cultural, isto é, a cultura é o fator constitutivo que determina as relações econômicas e políticas no capitalismo global. Já a crítica do sistema-mundo salienta a importância das relações econômicas à escala mundial como fator constitutivo do sistema-mundo capitalista. Ambas as abordagens “partilham entre si uma crítica ao desenvolvimentismo, às formas eurocêntricas de conhecimento, às desigualdades entre os sexos, às hierarquias raciais, e aos processos culturais/ideológicos que fomentam a subordinação da periferia no sistema-mundo capitalista”. Mas a crítica pós-colonial tem dificuldade em operar com os processos político-econômicos e a crítica do sistema-mundo tem dificuldade em teorizar a cultura (p. 470-471). Propõe, então, o autor um diálogo entre as perspectivas pós-colonial e a abordagem do sistema-mundo para explicar o “complexo enredamento, das hierarquias de gênero, raciais, sexuais e de classe” no interior das formações econômicas em que a acumulação de capital é afetada e integrada por essas hierarquias (p. 473).

92 para a elaboração de novas utopias não capitalistas, capazes de infligir redefinição/derrota ao colonialismo persistente e a sua lógica implantada pelo “homem heterossexual/branco/patriarcal/ cristão/militar/capitalista/europeu, com as suas várias hierarquias globais enredadas e coexistentes no espaço e no tempo” (GROSFOGUEL, 2010, p. 463).

Entre as várias abordagens sobre a resiliência do colonialismo na organização das estruturas sociais atuais, destaco a colonialidade do poder, do sociólogo peruano Aníbal Quijano (1992)44, segundo quem a colonialidade é uma estrutura de dominação e exploração que se inicia com o colonialismo, mas se atualiza e se mantém até o presente, mesmo após o fim das administrações coloniais. Colonialidade se refere às situações coloniais da atualidade e, conjuntamente com a modernidade, vem a constituir os dois eixos ao redor dos quais está organizado o poder capitalista, eurocentrado e global.

Definindo colonialidade como uma matriz mundial de dominação (patrón

mundial de dominación) dentro do modelo capitalista, fundada pela classificação racial45 e étnica da humanidade, Aníbal Quijano (1992) diz que a matriz de poder colonial é um princípio organizador e afeta as múltiplas dimensões da vida social, desde a sexualidade, a autoridade, as relações de gênero, instituições, o trabalho, as organizações políticas, estendendo-se à subjetividade e às estruturas de conhecimento. Isto ocorre porque o poder está estruturado em relações de dominação, exploração e no conflito dos sujeitos sociais que disputam o controle dos elementos constitutivos da existência humana: sexo; autoridade coletiva; subjetividade e intersubjetividade; seus recursos e produtos. A colonialidade do poder, adverte o autor, não pode ser interpretada simplesmente como resultado ou como a forma residual de qualquer tipo de relação colonial. Ela emerge no contexto sócio-histórico específico do descobrimento e conquista das Américas e se estrutura, inicialmente, a partir de dois eixos: a codificação das diferenças entre conquistadores e conquistados; e a constituição de uma estrutura de controle do trabalho e de recursos (QUIJANO, 1992; 2005a).

Historiciza o autor o processo de classificação social e universal da população mundial a partir da ideia de raça e demonstra a centralidade desta classificação para o capitalismo global e para a colonialidade, salientando que, no começo da América, a racialização de alguns grupos, especialmente africanos e indígenas, foi reforçada e consolidada durante a expansão mundial do colonialismo europeu e, posteriormente, pelo

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As obras de Quijano aqui consultadas foram (1992; 2000; 2005a; 2005b; 2010). 45

O autor entende raça como um construto ideológico, sem qualquer relação com a estrutura biológica do ser humano, está totalmente relacionada com as relações de poder do capitalismo mundial, colonial/moderno, eurocentrado. Ver Quijano (2000).

93 pseudocientificismo que defendia a existência de diferenças de natureza biológica entre estes grupos e o restante da população branca. Este entendimento, que dará lugar às classificações superior/dominante, desenvolvido/europeu x inferior/dominado/primitivo/não europeu, também gerou a divisão mundial do trabalho, originando classes sociais diferenciadas, racializadas e geograficamente distribuídas. Assim, o trabalho assalariado tem sido reservado, desde então, quase exclusivamente para a população branca (QUIJANO, 1992; 2005a). Sobre raça diz o autor,

[...] é a primeira categoria social da modernidade. [...] Foi um produto mental e social específico daquele processo de destruição de um mundo histórico e de estabelecimento de uma nova ordem, de um novo padrão de poder, e emergiu como um modo de naturalização das novas relações de poder impostas aos sobreviventes desse mundo em destruição: a idéia de que os dominados são o que são, não como vítimas de um conflito de poder, mas sim enquanto inferiores em sua natureza material e, por isso, em sua capacidade de produção histórico-cultural (2005b, p. 17).

Por isso, Quijano (2000) é enfático em sua avaliação sobre o modo como raça engendrou e se tornou o resultado da dominação colonial moderna, constituindo todos os âmbitos do poder mundial capitalista. O racismo, diz ele, não é a única manifestação da colonialidade do poder, mas, com certeza, nas relações sociais cotidianas, é a mais perceptível e onipresente, justificando-se ser o principal campo de conflito.

A modernidade, o outro eixo do capitalismo eurocentrado e global, explica Quijano, é a fusão das experiências do colonialismo e da colonialidade e, como tal, define as relações intersubjetivas, culturais e, em especial, a perspectiva de conhecimento: “os europeus geraram uma nova perspectiva temporal da história e re-situaram os povos colonizados, bem como as suas respectivas histórias e culturas”. Deste modo, a produção de conhecimento foi colonizada e segue uma perspectiva dos centros hegemônicos e eurocentrados, tendo os europeus como os criadores e protagonistas exclusivos da “tal modernidade” a partir da noção universalizada do conhecimento racional (2005a, p. 231; 232).

Segundo Ramón Grosfoguel, o grande mérito de Quijano está no fato de ele mostrar a dominação e a exploração econômica do Norte sobre o Sul como fundadas em uma estrutura étnico-racial de longa duração, ignorada pelas abordagens marxistas ortodoxas e suas reinterpretações posteriores. Em outras palavras, “o racismo é constitutivo e indissociável da divisão internacional do trabalho e da acumulação capitalista à escala mundial” (GROSFOGUEL, 2010, p. 477).

94 A noção de colonialidade do poder destaca que as ações de descolonização do mundo, iniciadas no século XIX e repetidas no século XX, foram incompletas. As ideias de Quijano, que evidenciam o posicionamento dos colonizados, contempla a presença comprovadamente indígena e negra da América e se contrapõem às abordagens eurocêntricas sobre a formação do capitalismo.

Assim como em outros estudos pós-coloniais, Grosfoguel (2010) também traz a crítica à “política de identidade” e lembra que todas as identidades modernas são construções coloniais e que, nem sempre, a defesa das mesmas indica radicalidade. Ser negro, ser indígena, ser mulher, ser negra, sem dúvida, são identidades marcadas e pode ser até que acabem por fortalecer as regras impositivas/dominantes da colonialidade, como afirma o autor. Contudo, ser branco, ser homem, ser homem branco, ser mulher branca são também construções, porém, beneficiadas materialmente pelos privilégios historicamente auferidos pela colonialidade. A crítica aos movimentos identitários acaba, geralmente, por isentar essas identidades hegemônicas, pois o perigo está com o outro, os negros, as mulheres, os gays, as lésbicas e as suas reivindicações. Isto me parece constituir o dilema.

Como romper este círculo? Como descolonizar o pensamento, transformar a realidade de exclusão “do chamado resto do mundo” sem cair na armadilha da cristalização identitária dos sujeitos e na construção de novos nacionalismos? O relativismo, por sua vez, não será também mais uma elaboração da colonialidade?

A possibilidade de refletir historicamente sobre as lógicas de dominação do mundo moderno se constitui, aqui, no destaque que imprimo à categoria “colonialidade do poder”, de Quijano, pois, com ela, percebo quão profunda e extensa é a organização do poder do capitalismo global a partir de raça. É fato: a categoria me auxilia a entender este jogo complexo da “política de identidade”, a perceber as identidades modernas como construções racializadas da colonialidade: europeu, asiático, africano, latino. Porém, vale lembrar que tais construções sociais determinam as condições de vida de parte da humanidade, que o construto discursivo materializa uma realidade perversa e, portanto, apesar do que dizem os críticos da “política de identidade”, entendo a luta dos movimentos oprimidos, excluídos, racializados, reunidos em torno de identidades políticas contra o racismo, sexismo, classismo, homo- lesbofobia como estratégia política ainda necessária e fundamental. Como afirma Grosfoguel, “nenhum projeto radical poderá ter êxito sem antes desmantelar estas hierarquias coloniais/raciais” (2010, p. 484).

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