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CAPÍTULO 2 POR UMA EPISTEMOLOGIA FEMINISTA NEGRA

2.1 PERSPECTIVA NEGRA

A perspectiva teórica do ponto de vista (standpoint) trabalha com as diferentes visões, evidencia as várias realidades vividas pelas mulheres e reconhece a própria diferença entre elas, descartando a possibilidade de um ponto de vista feminista único, ou ainda, de um

72 ponto de vista dominante. As mulheres estão sujeitas a situações diversas de opressão, dependendo do grupo social ao qual pertencem. Para as mulheres negras, o racismo é visto como uma estrutura de dominação e exclusão que marca profundamente suas vidas e, desta forma, a experiência com a intersecção das opressões racial e de gênero será a base para a produção de conhecimento, logo, as desigualdades raciais, conjuntamente com as desigualdades de gênero, definem a elaboração de uma epistemologia.

Para as feministas negras, portanto, a incorporação da perspectiva racial é fundamental, na medida em que raça reconfigura a forma como as mulheres negras experienciam gênero em muitas sociedades. As teóricas do ponto de vista feminista negro ou perspectiva feminista negra defendem a inclusão das experiências das mulheres negras visando a produção de conhecimento que possa ser útil para as vidas e as lutas das próprias mulheres, contribuindo para modificar suas realidades de exclusão e marginalização, e que se contraponha aos paradigmas tradicionais de validação do conhecimento (COLLINS, 2000).

Para Patricia Hill Collins, “uma base material e experiencial sustenta uma epistemologia feminista negra” formada pelas experiências coletivas e o acompanhamento de uma visão de mundo baseados na história das mulheres negras norte-americanas. O partilhamento de experiências de sobrevivência na adversidade produz uma sabedoria coletiva, uma série de princípios, formando o ponto de vista das mulheres negras. Segundo a autora, “estes princípios integram uma sabedoria geral das mulheres negras e mais, [...], uma epistemologia feminista negra” (2000, p. 256).

Retomando, Patricia Collins sublinha que, mais do que realçar como o ponto de vista das mulheres negras e suas epistemologias diferem do de outras mulheres e grupos sociais, as experiências das mulheres negras servem como posição social específica para examinar pontos de conexão entre múltiplas epistemologias. Vista desta forma, a epistemologia feminista negra “desafia análises aditivas da opressão, que reivindicam que as mulheres negras têm uma visão mais precisa da opressão do que outros grupos” (COLLINS, 2000, p. 270). Estas visões estão relacionadas à forma como os indivíduos são interpelados pela intersecção das opressões, pois, cada grupo

fala a partir de sua própria perspectiva e partilha seu conhecimento situado parcial. Mas porque cada grupo percebe sua própria verdade como parcial, seu conhecimento é inacabado. Cada grupo torna-se mais apto a considerar pontos de vista de outros grupos sem abandonar a unicidade de sua própria perspectiva ou suprimindo a perspectiva parcial de outros grupos. [...]. Parcialidade, e não universidade, é a condição de ser ouvido (2000, p. 270).

73 Patricia Collins refuta o entendimento de que existe um único ponto de vista válido, seja das mulheres, de modo geral, ou das mulheres negras, de modo particular, recusando também a representatividade de uma mulher universal. Pode-se inferir, então, que a concepção aponta para a impossibilidade da representação unitária de uma política feminista e sublinha a viabilidade de emersão de uma gama diversa de referenciais epistemológicos construídos a partir de outros marcadores sociais, como raça, idade e diversidade sexual. A epistemologia feminista negra traz o ponto de vista das mulheres negras como central para as próprias mulheres negras e para o confronto com as práticas dominantes de conhecimento, porém, não o coloca acima de outros pontos de vistas, pois o mesmo se pretende parcial.

Diante da profusão de sujeitos e pontos de vistas, surge uma questão erigida por feministas: se todos os grupos produzem pensamento especializado e o mesmo é igualmente válido não corremos o risco de construir um relativismo apolítico? Concebo a resposta como sendo o grande desafio dos movimentos feministas na atualidade, ou seja, abrir-se a possibilidade da coexistência com a diversidade de visões decorrentes da multiplicidade identitária da pós-modernidade, excedendo a estrutura binária centrada apenas no masculino/feminino.

Insisto na defesa da perspectiva de que a tensão interna entre as epistemologias feministas é profícua, na medida em que garante a atualidade do debate e, principalmente, evita a afirmação do sujeito hegemônico e que este se imponha como referente. O referente, em última instância, é a reprodução e perpetuação das epistemologias tradicionais, pois as relações de poder são mantidas na produção de conhecimento, engendrando hierarquias entre os feminismos e as agendas políticas e, principalmente, determinando sobre quem recai a autoridade da fala e a própria legitimidade da fala.

Coaduno-me com a abordagem da epistemologia feminista negra e pretendo aqui trabalhar nesta direção. É fundamental salientar, diante disto, que as ideias arroladas acima defendem a perspectiva das mulheres negras estadunidenses, uma concepção que foi pensada e elaborada a partir da experiência de mulheres negras pertencentes a um contexto matizado por referências históricas e culturais diferentes das do Brasil. Porém, não se pode esquecer de um outro contexto mais global, o da diáspora, este produtor de experiências comuns/semelhantes devido à escravidão, ao racismo e à discriminação racial, ainda que, tais experiências sejam reconfiguradas pelos contextos locais.

Ao trazer essa ressalva, deixo claro estar ciente dos riscos que corro ao deslocar a teoria para explicar outra realidade social diferente daquela que a originou. Espero, contudo,

74 evitar o enfraquecimento político da teoria para a pesquisa feminista, pois, como afirma Claudia de Lima Costa:

Devido à intensa transmigração dos conceitos e valores nas viagens dos textos e das teorias, frequentemente um conceito com um potencial de ruptura política e epistemológica em um determinado contexto, quando transladado a outro, despolitiza-se. Isso porque qualquer conceito [...], carrega consigo uma longa genealogia e uma silenciosa história que, ao serem transportados a outras topografias, podem produzir outros tipos de leitura. (COSTA, 2000, p. 46).26

Seguindo, ainda, a perspectiva de Sonia Alvarez, partilho da política de tradução

de teorias27 ou, dito de outra forma, empreendo uma ação de tráfico de teorias e práticas

feministas, visando

[...] construir ‘epistemologias conectantes’ para confrontar as traduções errôneas ou malfeitas que estimularam a falta de compreensão e obstruíram alianças feministas, mesmo entre as mulheres que compartilham as mesmas línguas e culturas. (2009, p. 748).

A tarefa a que me proponho, pelo exposto, é complexa, desafiadora e, ao mesmo tempo, sedutora: percorrer os caminhos trilhados pelo movimento de mulheres negras no Brasil para investigar as percepções e interpretações das mulheres negras sobre feminismos, resgatando seus momentos emblemáticos de constituição, embates e definições teóricas, contudo, atenta, para evitar cair na armadilha de realizar uma história linear e descritiva, aos moldes dos nossos antigos manuais históricos positivistas ou, ainda, de uma história geral das mulheres negras, desvinculada da ação política.