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Colonização e descolonização linguística

Para a constituição do Estado, conforme já discutimos neste trabalho, deve haver uma língua nacional – construção imaginária que deve ser una e homogênea – que, como coloca Orlandi (2002), é essencial para a identidade do país. Nesse sentido, para haver essa língua é necessário que ela seja escrita e gramatizada, sendo assim, também “os instrumentos

102 Tradução nossa: “o repertorio lexical constitui a única marca da identidade linguística nacional. Este nível é o

mais dinâmico, aberto e permeável a mudanças. Nele confluem contribuições de diversas origens: o antigo e o novo, o nacional e o estrangeiro, o indígena e o hispânico. Nele predomina o critério de uso sobre a imposição da norma”.

103 Tradução nossa: “a história do espanhol na América é também a história do espanhol”. 104

Tradução nossa: “a difusão do espanhol no continente produziu inovações e mudanças em diferentes níveis, desde o sistemático e funcional até o das tradições discursivas, sem chegar a produzir, por isso, uma fratura entre América e Espanha”.

linguísticos constroem uma unidade para a língua” (NUNES, 2008, p. 120), o que é necessário para a escolarização, pois a escola tem um papel de difusora da língua adotada como nacional.

Segundo Sturza (2006, p. 27), “a formação dos estados nacionais uruguaio, argentino e brasileiro ocorreu em um mesmo período histórico, na segunda década do século XIX” e, com a formação de Estados independentes, “passaram a reivindicar o direito de soberania sobre seus territórios e a buscar meios de estabelecer uma unidade nacional”. E uma forma de estabelecer a unidade nacional é por meio da unidade linguística proporcionada pelos instrumentos linguísticos.

Para tratar do funcionamento da língua em países colonizados, Orlandi (2002) traz a noção de heterogeneidade linguística, ou seja, que “no campo dos países colonizados, temos línguas como o português, ou o espanhol, na América Latina, que funcionam em uma identidade que chamaria de dupla” (ORLANDI, 2002, p. 23) – fala-se, portanto, a mesma língua, mas fala-se diferente. A mesma língua seria o espanhol e/ou o português, a fala diferente poderia ser percebida no espanhol do Uruguai e/ou no português do Brasil, por exemplo.

Orlandi (2008) traz para discussão duas possíveis concepções à noção de heterogeneidade: uma heterogeneidade constitutiva proposta por Authier-Revuz (1990) e uma heterogeneidade linguística sugerida por Orlandi (2008). A primeira concepção considera que há o Outro no sujeito e no discurso, ou seja, o sujeito é determinado pela relação com a exterioridade. Pois, “sempre sob as palavras, ‘outras palavras’ são ditas” (AUTHIER- REVUZ, 1990, p. 28), referindo-se, dessa forma, ao enunciável; sendo “a estrutura material da língua que permite que, na linearidade de uma cadeia, se faça escutar a polifonia não intencional de todo discurso [...]” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 28). O sujeito e o discurso não são homogêneos, há palavras outras e há o Outro que constituem todo discurso. A heterogeneidade linguística, proposta por Orlandi (2008) a partir da heterogeneidade cunhada por Authier-Revuz, refere-se à diferença que se insere na relação do intradiscurso com o interdiscurso, pois estabelece que “falamos com palavras que já têm sentidos”, ou seja, “o ‘mesmo’ abriga no entanto um ‘outro’, um ‘diferente’ histórico que o constitui ainda que na aparência do ‘mesmo’” (ORLANDI, 2008, p. 47); por isso que falamos uma mesma língua que também é diferente.

Para tratar a diferença como heterogeneidade, temos que pensar as relações entre as diferentes formações discursivas que se constituem nas relações de paráfrase, pois todo o discurso tem sua relação com outros, de acordo com Orlandi (2008). “Os sentidos circulam”

(ORLANDI, 2008, p. 49) e por circularem eles não são origem, mas efeitos. Desse modo, a colonização é uma formação discursiva que produz diferentes sentidos entre a posição sujeito colonizador e a posição sujeito colonizado. Entretanto, “o europeu nos constrói como o seu ‘outro’ mas, ao mesmo tempo, nos apaga. Somos o ‘outro’, mas o outro ‘excluído’, sem semelhança interna. Por sua vez, eles nunca se colocam na posição de serem o nosso ‘outro’” (ORLANDI, 2008, p. 54).

Ao trazer a noção da língua nacional, Orlandi (2008, p. 86) coloca a seguinte questão: “que língua apagamos para ter uma língua nacional?” Como dissemos anteriormente, para termos uma nação é necessária uma unidade entre a língua que Mariani (2004) afirma ser imposta pelo colonizador e a que Orlandi (2008) afirma ser apagada pelo colonizador (ou até apagadas, pois havia várias línguas [indígenas] nas terras “descobertas”). Assim, a “escolha” por uma língua nacional apaga as outras línguas faladas. Em vista disso, reforçamos que se fala a mesma língua, mas se fala diferente e concordamos que a heterogeneidade se relaciona com a diferença. Então, para pensarmos o funcionamento da noção de língua nos dicionários, faz-se necessário considerar a constituição da língua em países colonizados.

Para isso, remetemo-nos à colonização linguística e, por conseguinte, a Mariani (2004). Segundo a autora, colonização é “a coexistência de povos com histórias e línguas em dado momento histórico” (MARIANI, 2004, p. 23), é um contato com tensões e conflitos que se dá por causa das diferenças. Com isso, temos a colonização linguística como “imposição de ideias linguísticas vigentes na metrópole e um imaginário colonizador enlaçando língua e nação em um projeto único” (MARIANI, 2004, p. 25). Essa imposição de ideias linguísticas é um “processo histórico de confronto” (MARIANI, 2004, p. 19) entre a língua colonizadora e a língua colonizada. Desse modo, a língua do colonizador é imposta por meio de condições políticas e jurídicas e “o lugar de onde o colonizado fala se constitui no entremeio da heterogeneidade linguística inerente à colonização” (MARIANI, 2003, p. 74).

O colonizador nomeia as coisas transportando elementos a partir de sua memória discursiva, conforme Orlandi (2002). Esse deslocamento é uma diferença entre línguas (relação palavra/palavra), por isso o esforço de elaborar listas de palavras e organizar definições; deslocamento esse que a autora designa como situação de enunciação I. Quando há a produção de sentidos diferenciados, passando a uma relação palavra/coisa, dá-se a situação enunciativa II que é uma relação unidade/variedade, não mais relacionada ao país colonizador. De acordo com Orlandi (2009a), o processo de colonização linguística inicia-se com os relatos de viajantes, missionários e naturalistas.

Orlandi (2009a) trata a colonização linguística como um acontecimento linguístico da colonização, ou seja, é “uma clivagem – disjunção obrigada – que afeta a materialidade da língua brasileira” (ORLANDI, 2009a, p. 27). O acontecimento linguístico nomeia a relação do lugar enunciativo com a língua nacional – pensar a língua em um outro espaço enunciativo: o outro lado do Atlântico. A colonização linguística como acontecimento produz, de acordo com Mariani (2003), modificações e reorganizações nos sistemas linguísticos, além de rupturas nos sistemas semânticos das línguas. Em vista disso, temos que a colonização linguística pode ser entendida como um “(des)encontro linguístico no qual os sentidos construídos são determinados em situações enunciativas singulares, situações históricas e paulatinamente engendradas que vão dando lugar ao surgimento de uma língua e de um sujeito nacionais” (MARIANI, 2003, p. 75). A colonização linguística é um encontro de línguas diferentes, em circunstâncias diversas, fato que promove um desencontro para dar lugar a uma outra língua.

Se, por um lado, temos a colonização linguística, por outro, há o acontecimento da descolonização linguística, em que se cria um imaginário que separa o português do Brasil e o de Portugal, por exemplo, ou seja, o país colonizado não se submete ao país colonizador. Orlandi (2009a, p. 172) define a descolonização linguística como o:

[...] imaginário no qual se dá também um acontecimento linguístico desta vez sustentado no fato de que a língua faz sentido em relação a sujeitos não mais submetidos a um poder que impõe uma língua sobre sujeitos de uma outra sociedade, de um outro Estado, de uma outra Nação.

Os processos de colonização e descolonização linguística funcionam, segundo Orlandi (2009a), por causa das condições sócio-históricas e do processo de memória dos países colonizados e colonizadores. Ambos os processos se relacionam com a unidade necessária e a diversidade concreta na constituição de uma nação, de um Estado. A língua tem um “papel primordial” no processo de descolonização (ORLANDI, 2009a, p. 179).

Observamos o processo de descolonização linguística, por exemplo, na produção de instrumentos linguísticos próprios, na gramatização iniciada por esses instrumentos, na constituição de instituições de ensino, na produção de conhecimento. Conforme Nunes (2008, p. 111), percebemos a descolonização “em uma série de fatos relacionados que conferem uma nova configuração das relações internacionais”, possibilitando “novos questionamentos e direcionamentos, como os que se referem à questão das políticas de língua, do multilinguismo externo e interno, da ‘lusofonia’, das relações entre as diversas tradições linguísticas”. No processo de descolonização, há a “legitimação da língua” (ORLANDI, 2009a, p. 175), seja ela

portuguesa, como trabalha a autora, seja ela espanhola. Com isso, os instrumentos linguísticos, conforme Orlandi (2012), auxiliam a constituição da língua nacional, pois configuram um imaginário de língua dentro de seu espaço e assim institucionalizam a relação dos sujeitos com a língua.

“O Brasil já é um país linguisticamente descolonizado. Embora restem, sempre, os efeitos ideológicos da colonização quando as condições os favorecem” (ORLANDI, 2009a, p. 177). Se, por um lado, temos forte o processo de descolonização no Brasil, por outro, a memória da colonização sempre volta. O Brasil, em relação ao Uruguai, possui uma história na produção de instrumentos linguísticos e no processo de gramatização, bem como tem mais evidente e por mais tempo o processo de descolonização. Neste país ainda ressoam fortes as marcas da colonização linguística, ainda há espaços para discussão do nome da língua. Se, no lado brasileiro, é tratada a questão de língua brasileira, portuguesa, no lado espanhol, também se tem Língua Espanhola da Espanha, da Argentina, do Uruguai, etc. 105 Por isso que neste trabalho temos como corpus um dicionário uruguaio, para mostrar que, embora de forma tardia, o Uruguai também busca constituir um processo de gramatização particular de sua língua nacional.

Em seu estudo, Medeiros (2011) trabalha o heterogêneo na constituição do imaginário de um povo – no caso, o imaginário do povo brasileiro. Temos, na constituição identitária do brasileiro, três formações discursivas (que englobam, por sua vez, posições discursivas dominantes): a da descoberta, a do descobrimento e a do estranhamento. De modo geral, a primeira formação discursiva se refere à acolhida do estrangeiro. A segunda, ao conflito, ao confronto, pois há a formação do país. A terceira, à desconstrução da posição do outro, ou seja, o estrangeiro não é mais acolhido e sim o nacional, o local. Nos estudos brasileiros encontramos essas formações discursivas, mas ainda não podemos afirmar que existam ou correspondam de alguma forma com a história do Uruguai.

A necessidade da unidade advém da colonização e a diversidade, a diferença, advém da descolonização, conforme Orlandi (2009a). Assim,

[...] seja na tensão contínua entre unidade e diversidade que esteja a possibilidade de construirmos algo em comum. Um processo de descolonização. Aí a referência não é mais o passado, a busca da unidade, mas o presente e as nossas diferenças no modo como elas se organizam (ORLANDI, 2009a, p. 178-179).

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Cabe dizer que o processo de descolonização no Brasil se deu por uma independência negociada, e este país é uma “ilha” da Língua Portuguesa no continente. Os países hispano-americanos tiveram seus processos de descolonização por meio de lutas pela independência.

Em relação à descolonização, Orlandi (2012a) traz a questão dos espaços linguísticos da lusofonia, da hispanofonia, da francofonia, da anglofonia, etc.106, evidenciando que o que une os sujeitos é a língua. Com esses espaços vem o discurso da globalização/mundialização e, por conseguinte, o plurilinguismo/multilinguismo. Nos tempos atuais, temos fortemente presente o discurso global que abre espaço para as diferentes culturas e línguas, reforçando a ideia de plurilinguismo. Temos, na globalização, uma ideologia, uma moeda, um sistema político e uma língua, prevalecendo, então, o monolinguismo. Ao encontro disso, a autora traz a mundialização como espaço aberto, heterogêneo, onde “nossas diferenças e semelhanças podem ser tratadas de maneira politicamente produtiva” (ORLANDI, 2012a, p. 12). O que faz a autora afirmar que “todo país é multilíngue” (ORLANDI, 2012a, p. 13) e o multilinguismo é a multiplicidade de sentidos, é a aceitação da diversidade, pois cada espaço linguístico é diferente devido à sua história e práticas sociais diferenciarem-se uns dos outros. Com isso, o multilinguismo remete à descolonização e o plurilinguismo remete à separação.

Nessa reflexão a respeito de uma língua homogênea na constituição da língua nacional, silenciando a língua em uso, Orlandi (2008) apresenta dois tipos de funcionamento da língua. Para a autora, a unidade da língua é imaginária porque é construção, sistematização. Línguas imaginárias são “línguas-sistemas, normas, coerções, línguas- instituições, a-históricas” (ORLANDI, 2008, p. 87). Porém, o funcionamento da linguagem se dá com a língua fluida que é aquela “que não se deixa imobilizar nas redes dos sistemas e fórmulas” (ORLANDI, 2008, p. 86), ela se movimenta. O português e, diríamos, também o espanhol, enquanto línguas nacionais, são línguas imaginárias. Como exemplos de língua imaginária, Orlandi (2009a, p. 18) considera a língua-mãe, a língua-ideal (lógica), a língua universal (esperanto), a língua standard (a língua normatizada) e a língua gramatical. A língua fluida é aquela que “não tem limites”, é “a língua movimento” que vai além das normas. Concordamos com Orlandi (2002) que essas duas noções de língua colocam em jogo o contato cultural e histórico entre as línguas. Cultural porque a língua é tomada enquanto produto e histórico porque também é entendida enquanto processo.