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O dicionário na articulação da Análise de Discurso com a História das Ideias

Propomos uma articulação entre a Análise de Discurso de linha francesa e a História das Ideias Linguísticas, pois tomamos os dicionários como objetos discursivos e como instrumentos linguísticos. A articulação entre essas teorias, segundo Nunes (2006, p. 13), traz “condições metodológicas para se ler com outros olhos esses objetos”, possibilitando considerá-los como “lugares de descrição das línguas, tendo um papel fundamental na reprodução, transformação e circulação dos discursos em uma sociedade”. Desse modo, essa articulação permite observarmos e compreendermos “o modo como ele [dicionário] produz sentidos em certas conjunturas” (NUNES, 2006, p. 15).

Conceber o dicionário como instrumento linguístico, remete-nos a Sylvain Auroux e à sua obra A Revolução Tecnológica da Gramatização (1992). Para esse filósofo, a linguagem se vale de instrumentos (dicionários e gramáticas) e, por causa disso, ela tem uma tecnologia que é entendida, na sua perspectiva, como materialização do conhecimento sobre a linguagem e construção do saber sobre a língua. Para uma língua ser organizada em dicionários e gramáticas, ela precisa ser gramatizada. Assim, Auroux (1992, p. 65) define a gramatização como “o processo que conduz a descrever e a instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares de nosso saber metalinguístico: a gramática e o dicionário”73

. A partir desses dois instrumentos temos o saber a língua e o saber sobre a língua e construímos nosso saber metalinguístico. É neles que “guardamos” a língua, a ensinamos e a aprendemos. Valemo-nos desses instrumentos para aprender e ensinar a língua até os dias de hoje. Os instrumentos linguísticos – dicionários e gramáticas – são, realmente, os “pilares” do nosso saber sobre a língua, pois os utilizamos para prolongar nossa competência linguística, ou seja, eles nos ajudam em nosso conhecimento sobre a língua:

A gramática não é simples descrição da linguagem natural, é preciso concebê-la também como instrumento linguístico: do mesmo modo que um martelo prolonga o gesto da mão, transformando-o, uma gramática prolonga a fala natural e dá acesso a um corpo de regras e de formas que não figuram junto na competência do mesmo locutor. Isso é ainda mais verdadeiro acerca dos dicionários: qualquer que seja minha competência linguística, não domino certamente a grande quantidade de palavras que figuram nos grandes dicionários monolíngues [...]. Isso significa que o aparecimento dos instrumentos linguísticos não deixa intactas as práticas linguísticas humanas (AUROUX, 1992, p. 69, grifo do autor).

Os instrumentos linguísticos estabelecem relações entre o sujeito falante e a língua, pois não são objetos naturais, mas dotados de tecnologia. Com isso, eles são discursos metalinguísticos, ou seja, são saberes representados, construídos pela metalinguagem. É pela metalinguagem que há a passagem do saber epilinguístico para o saber metalinguístico. De acordo com Auroux (1992), o saber metalinguístico pode ser de natureza especulativa, situado na representação abstrata, ou de natureza prática, com a necessidade de adquirir um domínio para a constituição de técnicas – que pode ser o domínio da enunciação (saber dizer em determinada situação); o domínio das línguas (compreender ou falar uma língua); e/ou o domínio da escrita.

Os dicionários tratados como instrumentos linguísticos são “alteridade para o sujeito falante” (NUNES, 2006, p. 43), eles interferem na relação do sujeito com a língua, pois há sempre a presença do outro – o sujeito lexicógrafo, o sujeito leitor, o sujeito das definições, etc. Os dicionários são de natureza prática e pertencentes ao domínio das línguas, de acordo com Nunes (2007), mas o referido autor também ressalta que esses instrumentos linguísticos podem ser ligados ao domínio da enunciação, pelo fato de eles descreverem um modo de dizer, bem como por serem ligados ao domínio da escrita, já que são produzidos a partir de um corpus escrito. Dessa forma, os dicionários convivem com saberes práticos e especulativos.

Para conceber o dicionário como discurso, apoiamo-nos em Nunes (2006). Segundo o autor, olhar o dicionário como discurso significa questionar o espaço de certeza que essa obra ocupa e deixar lugar para os gestos de interpretação. Em vista disso, o dicionário é um espaço para “observar os modos de dizer de uma sociedade e os discursos em circulação em certas conjunturas históricas” (NUNES, 2006, p. 11), ou seja, nos dicionários estão os discursos que circulam em determinado momento histórico e que são produzidos por sujeitos que viveram aquele determinado momento histórico. Desse modo, o dicionário possui historicidade, renova-se, atualiza-se e transforma-se. O dicionário é um espaço no qual “é possível observar diferentes formas de nomear e de definir as coisas do nosso mundo, prevendo múltiplas possibilidades de funcionamento deste ou daquele sentido” (PETRI, 2010, p. 19). Ele é um espaço de circulação de saberes, mantendo e atualizando sentidos, que permite construir a relação entre língua e saber linguístico. Analisar o dicionário, de acordo com a Análise de Discurso, não nos permite apenas verificar quais sentidos se estabelecem aí, até porque os sentidos estão em movimento. A análise do dicionário nos permite compreender as relações do sujeito com a língua e as relações do dicionário com a história. Em vista disso, concordamos com Orlandi (2002) que, mais do que observar a função do dicionário, é

necessário observar o seu funcionamento. É tomando o dicionário como discurso que podemos ver nele como se projeta a representação da língua e o modo como os sujeitos produzem linguagem. Os dicionários se inscrevem como discursos na lexicografia discursiva: “Desse modo, na escuta própria à análise de discurso, podemos ler os dicionários como textos produzidos em certas condições tendo seu processo de produção vinculado a uma determinada rede de memória diante da língua” (ORLANDI, 2002, p. 103). Os dicionários, portanto, não são produzidos alheios à conjuntura histórica e à relação com a língua.

De acordo com Collinot e Mazière (1997), o encanto e a complexidade dos dicionários estão no modo como eles nos dizem o mundo e as coisas por meio da língua. E, desse modo, os dicionários nos proporcionam várias leituras: temáticas, literárias, especializadas, semânticas; porém a perspectiva que permite observar a historicidade e a sistematicidade do discurso lexicográfico é lê-los como discurso. Com a leitura dos dicionários como discurso, os autores abordam esses instrumentos linguísticos a partir de dois pontos: historicidade e sistematicidade. A partir do primeiro, observamos os dicionários como instituição (social), como acontecimento linguístico e discursivo e como objeto histórico. Com o segundo, observamos a sistematicidade da língua por meio da sua forma sintático-enunciativa. Assim, por meio dos referidos autores, entendemos que o dicionário é um objeto histórico, tomado em uma sucessão, de herança em herança, e também de rupturas e de inovações na relação com a prática linguageira. Em vista disso, os autores tratam o dicionário como um “prêt-à- parler”, pois ele trata do uso e da normatização de uma língua. Como um instrumento linguístico, ele une a língua e trabalha com as diferenças, contribuindo para a unidade de uma comunidade linguística em torno de uma mesma língua. Com isso, os autores tratam o dicionário a partir de sua historicidade,

c’est pourquoi c’est l’historicité du dictionnaire qui nous intéresse, sa façon d’être un objet de discours et de tenir un discours sur la langue, d’être un extérieur de la langue, son observatoire, en même temps qu’il en est un produit74 (COLLINOT;

MAZIÈRE, 1997, p. 6, grifo dos autores).

Os dicionários não são simples “ferramentas” linguísticas, eles são construções complexas e representam uma ideia de língua e um compromisso com o social. Nessa mesma reflexão sobre o caráter social do dicionário, Pruvost (2006) propõe que os dicionários são produtos da civilização, sendo, com isso, arquivos de uma memória – de informações

74

Tradução nossa: “porque é a historicidade do dicionário que nos interessa, sua maneira de ser um objeto do discurso e de ter um discurso sobre a língua, de ser um exterior da língua, seu observatório, ao mesmo tempo em que é um produto”.

estruturadas de forma sistemática – da língua de uma civilização, pois guardam a história da civilização que é também a história da língua.

Com essas reflexões, queremos dar aos dicionários sua devida importância e é por isso que os consideramos como objeto do nosso trabalho de pesquisa. Os dicionários trazem informações sobre a língua e sobre a sociedade e, como está sendo discutido neste trabalho, podem mobilizar a historicidade de dois países. O dicionário é mais que um simples instrumento de consulta, é objeto da Linguística, da Lexicografia, da sociedade e da história, porque “es un fenómeno lingüístico y cultural de primer orden”75

(LARA, 1996, p. 263) que não depende somente dos princípios metodológicos da lexicografia, mas também da sua relação com a sociedade, com a exterioridade.

Tomamos os dicionários como um ponto central de nosso trabalho porque concordamos com Orlandi (2002, p. 109) que eles “fizeram e fazem parte da constituição de nossa identidade” dando “realidade à nossa inscrição na língua nacional. São parte de nossa representação como povo, como nação, tendo uma unidade marcada pela unidade da língua que, por sua vez, representa a unidade do Estado”. Ainda segundo a autora, na dicionarização, “a trama da linguagem se impõe aos sujeitos de uma língua nacional” (ORLANDI, 2002, p. 118). É por meio desses instrumentos linguísticos que se estabelecem relações entre a língua, o sujeito e o saber linguístico.

LÍNGUA E NAÇÃO – a heterogeneidade linguística