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5.4 Mudanças nas práticas de vida como resultante do saber construído

5.4.2 Com o grupo, eu aprendi a me cuidar melhor

Após conhecer as mudanças decorrentes da convivência com a HAS, foram questionados aos sujeitos desta pesquisa sobre os fatores que os influenciaram nessas escolhas. Nesse contexto, foram unânimes as respostas dos entrevistados, ao considerarem essas mudanças motivadas pelas orientações proporcionadas pelo Grupo de Hipertensos e Diabéticos da USF. Percebeu-se que a influência do grupo estava relacionada ao posicionamento assumido pelos participantes nesse espaço. Ou seja, aqueles que apresentaram uma postura menos ativa nas atividades de educação em saúde foram os mesmos que aceitaram mais passivamente as “orientações” da equipe. Essa reflexão pode ser ilustrada pela fala a seguir:

Ah, o grupo foi bom, porque a gente aprendeu muita coisa! [...] que elas davam explicação e orientação de como a gente devia se cuidar e se tratar. E a gente vai mudando. Muda alimentação e tudo. Se tu comias forte de sal, tira o sal. Se tu comias gorduroso, tira a gordura. [...] agora [eu] como a minha comidinha como devo comer. Porque muitas coisas eu sou proibida de comer. (S 08, 65

anos)

Pela análise dos relatos e na observação dos encontros, percebeu-se que uma pequena parcela dos sujeitos assumiu uma postura menos crítica em relação às informações originadas nesse espaço. Nesse sentido, atuaram, como receptores das orientações realizadas pela equipe, a ponto de assumi-las em suas vidas, muitas vezes sem uma reflexão mais contextualizada das mesmas. Nesse aspecto, Freire (2000) assegura que na memorização dos conteúdos (ensinados) não se consolida o aprendizado verdadeiro desse conteúdo. Nesse caso, o educando assume um papel de “paciente” da transferência dessas informações. Isso se observou nas falas de alguns sujeitos desta pesquisa, como no exemplo acima, nas quais são reproduzidas as proibições emitidas pelos profissionais da saúde, sem que se observe uma interpretação crítica sobre elas.

A crítica sobre essa situação, apresentada por Freire (1983, p.43), refere-se ao fato de que o homem moderno vem “renunciando”, sem perceber, à sua “capacidade de decidir”. Suas tarefas lhes são oferecidas por uma “elite” – leia-se, neste contexto, os profissionais da saúde – que as interpreta e lhes apresenta sob a forma de orientações, de prescrições, as quais devem seguir corretamente. Nessa relação, o indivíduo “atua como simples espectador, acomodado às prescrições alheias que, dolorosamente, ainda julga serem opções suas” (FREIRE, 1983, p.45). Com isso, interpreta-se que não houve aprendizado, pois não houve reflexão. Apenas memorização das condutas permitidas e proibidas pelos profissionais. Nesse entendimento, a postura assumida por alguns sujeitos desta pesquisa foi a de renunciar às suas condições e oportunidades de refletirem criticamente sobre as orientações mais viáveis para suas vidas. Logo, renunciaram à sua posição de emancipação frente às suas escolhas.

Em contrapartida, percebeu-se que os participantes que apresentaram um comportamento menos passivo, frente às orientações dos profissionais, estabeleceram as mudanças de forma mais crítica e em conformidade com a sua realidade. Nesse aspecto, verifica-se que estes sujeitos participam mais ativamente, no sentido de que refletiram sobre as informações recebidas nesse meio, antes de incorporá-las no seu cotidiano:

Ah, mudou muita coisa, [das orientações] que a gente ouve lá nas conversas [do grupo]. Para melhor! [...] aprendi a me cuidar melhor, a tomar o remédio certinho. Porque eu às vezes tomava, às vezes não tomava, não tinha aquele

horário. [...] Às vezes esquecia. Se o doutor dizia assim: “Tomar três por dia.”, [eu pensava]: Eu vou tomar só um, para que tomar três, se vai fazer o mesmo efeito? Mas não faz! Não adianta! E antes eu teimava. Agora que eu entendi, eu tomo direitinho! [...] É três por dia, agora é três por dia! Então, isso aí já ajudou bastante. (S 7, 48 anos)

De maneira oposta ao exemplo apresentado anteriormente, percebeu-se que, para grande parte dos sujeitos desta pesquisa, os cuidados orientados pelos profissionais só foram incorporados nos seus cotidianos à medida que conseguiram decodificá-las e avaliar a aplicabilidade em suas vidas. Nesse sentido, percebeu-se que estes participantes compreenderam a associação do cuidado orientado pelo profissional com a repercussão nas suas condições de saúde, ilustrados no exemplo pela importância de seguir a indicação no tratamento medicamentoso, para a estabilidade dos níveis pressóricos. Os argumentos de Freire (2000, p.77) dão sustentação a essa reflexão, ao afirmar que o sujeito crítico e curioso é capaz de se lançar na aventura criadora que é a construção do conhecimento. É a disposição de apreender a concretude do objeto ensinado que torna esse indivíduo hábil a aprender ou mesmo a recuperar um “mal aprendizado”, efetivado pela transmissão de conhecimento feita pelo educador. Por essa razão, o aprendizado é muito mais rico do que meramente reproduzir a “lição dada”. Aprender, nessa visão, é refletir, ou seja, “constatar

para mudar”. Nesse entendimento, a práxis é a reflexão que conduz a uma ação

transformadora da realidade concreta, pois é o reconhecimento verdadeiro dessa realidade. Assim, somente a reflexão autêntica conduz à prática (FREIRE, 2005 p. 59). Isso indica a compreensão de que esses sujeitos, ao assumirem uma postura conscientemente crítica de sua realidade, tiveram melhores condições de compreender a lógica de tais orientações e, assim, tornaram-se mais preparados para escolher se iriam ou não assumi-las.

Outros participantes relataram mudanças mais amplas, associadas ao aprendizado oportunizado pelas atividades do grupo. Nesse aspecto, evidenciou-se que essas mudanças ultrapassam as práticas cotidianas, envolvendo questões mais subjetivas como a percepção sobre suas próprias vidas. O relato apresentado a seguir ilustra essa reflexão:

Depois que eu comecei ali, queria que tu visses como mudou! Eu comecei a reviver de novo! Eu fiquei mais alegre, mais risonha. E eu aprendi muita coisa, depois que eu estou indo ali, que eu fui vendo o outro lado... E como eu estou aprendendo! [...] o que adianta tu pensar nos problemas, tu vai te retrair para a doença! Que agora eu saio, eu me divirto. [...] Eu não pretendo nunca faltar. Estou me sentindo muito melhor, muito feliz! (S 3, 50 anos)

A participação no grupo foi percebida por alguns sujeitos desta pesquisa, como um marco em relação à transformação de suas vidas. Na observação dos encontros e na análise

dos relatos, percebeu-se que essa referência atribuída ao grupo ocorreu pelo fato de ser esse um espaço que oportunizava e estimulava a reflexão dos participantes sobre suas vidas. Como afirmam Favoreto e Cabral (2009), a convivência no grupo promove a formação de uma rede de solidariedade e apoio entre os participantes. Para esses autores, essa redefavorece a construção de novas experiências, as quais irão subsidiar e incentivar esses sujeitos, para a superação de suas dificuldades. Essa reflexão se aproxima de suas falas, quando afirmam que o grupo tornou-se um espaço de estímulo para mudanças, por oportunizar o intercâmbio de motivações e de reforço à autoestima, incitando os envolvidos a encontrarem recursos para lidar com as questões de saúde/doença/cuidado.

A reflexão, na perspectiva de Freire (2005), é a maneira mais eficaz para o homem desenvolver sua consciência crítica, capaz de superar a postura de simples acomodação frente às tarefas cotidianas. Para esse autor, é nessa ação que o indivíduo conseguirá sua imersão como ser histórico-social, logo, como sujeito de suas mudanças. Nessa lógica, o indivíduo, sujeito de suas escolhas, tem a consciência de que o “poder” de criar e recriar sua realidade só será alcançado e conservado através de sua postura crítica. Aí se instala o grande desafio que o homem assume ao atuar como sujeito de sua própria história, ou seja, o de lutar permanentemente por sua liberdade e autonomia (FREIRE, 2005).

Evidenciou-se que, ao compartilharem experiências concretas de vida, os participantes do estudo conseguiram refletir sobre o significado (individual e coletivo) de adoecer, criando uma rede de apoio para elaborar formas individuais e coletivas de superar essa situação. Foi possível, ainda, perceber a sua alegria, ao sentirem-se sujeitos de seu mundo, de estarem lutando para transformá-lo e não acomodarem-se no conformismo frente à imutável condição de portador de doença crônica. Assim o “cuidar-se” é essa luta assumida por eles para modificarem sua realidade, o que, nesse caso, refere-se à atitude de priorizar a sua saúde e não mais viver em função da doença. Assim, modificam o seu destino e visualizam um futuro com mais autonomia.