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No primeiro parágrafo do capítulo 3 do livro As pa-

lavras e as coisas, que tem como título “Representar” e

como subtítulo “I. Don Quixote”, Michel Foucault, pensador francês que revolucionou os estudos literários e históricos no final do século XX, re- conhece a obra de Cervantes como instituidora de um “limite”. Foucault assim se refere às aventuras de Don Quixote:

Com suas voltas e reviravoltas, as aventuras de Dom Quixote traçam o limite: nelas terminam os jogos antigos da semelhança e dos signos; nelas já se travam novas relações. Dom Quixote não é o homem da ex- travagância, mas antes o peregrino meticuloso que se detém diante de todas as marcas da similitude. Ele é o herói do mesmo. Assim como de sua estreita província, não chega a afastar-se da planície familiar que se estende em torno ao análogo. Percorre-a indefinidamente, sem trans- por jamais as fronteiras nítidas da diferença, nem alcançar o coração da identidade. Ora ele próprio é semelhante a signos. Longo grafismo ma- gro como uma letra, acaba de escapar diretamente da fresta dos livros. Seu ser inteiro é só linguagem, texto, folhas impressas, história já trans- crita. É feito de palavras entrecruzadas; é escrita errante no mundo em meio à semelhança das coisas. (1995, p.61)

Depois de ser lida com paciência, percebe-se que esta citação de Foucault resume a questão do limite e da originalidade do romance da

Figura 18 - Günter Grass

Fonte: http://www.cella.com.br/ blog/wp-content/uploads/2010/05/ grass_guenter_.jpg

mais famosa narrativa da literatura espanhola. Entretanto, será obriga- tório que retornemos à ideia geral exposta no prefácio desse livro para- digmático intitulado As palavras e as coisas.

Nesse prefácio, Foucault começa citando um trecho de um texto de Jorge Luis Borges que descreveria “uma certa enciclopédia chinesa” que perceberia os animais, segundo uma estranha classificação:

a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na pre- sente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) dese- nhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas”. (BORGES apud FOUCAULT, 1995, p. 5)

Em seguida, ao acabar de citar essa “exótica classificação”, o filósofo nos informa o problema de um certo “limite” que dela surgiria. “No deslumbramento dessa taxionomia, o que de súbito atingimos, o que graças ao apólogo nos é indicado como o encanto exótico de um outro pensamento, é o limite do nosso: a impossibilidade patente de pensar isso”. (FOUCAULT, 1995, p.5)

A classificação que aparece no texto de Borges apresenta mais que um “exotismo” ou uma exposição “fantástica” de uma classificação de um mun- do desconhecido. A impossibilidade de se “pensar isso” advêm de que já não possuímos, ou nunca teríamos possuído, talvez, a capacidade de pensar “des- sa forma”, pois já derivamos de um outro modo de “representar as coisas”. É do problema da linguagem e das formas ou modos como a linguagem se transforma em termos de sua “operacionalidade epistemológica” que se trata nessa exposição classificatória que constrói a literatura.

Mais que isso, a marca e o sentido exposto nessa classificação, ex- plicada em toda sua densidade na continuação do prefácio, orientam Foucault a desenvolver toda a complexidade e ousadia de sua tese. Po- deríamos introduzir o tema de As palavras e as Coisas, comentando e lançando pistas sobre a indicação de seu próprio título: quando e de que forma as palavras passam a significar o que as coisas são? O que significa uma história e de que forma poderíamos pensar nessa historicidade da significação entre coisas e palavras? A classificação borgeana remete a

Miguel de Cervantes

Capítulo

04

esses problemas, uma vez que enuncia uma série classificatória de no- mes de animais que reagrupa os animais segundo uma “lógica impos- sível” para o leitor. O “heteróclito” é o termo usado por Foucault para ilustrar a forma organizatória que esta classificação produz. O filósofo pressente que “(...) seria a desordem que faria cintilar os fragmentos de um grande número de ordens possíveis na dimensão sem lei nem geo- metria, do heteróclito” (FOUCAULT, 1995, p.7).

O pressentimento dessa força heteróclita no seio da própria histó- ria das ideias e das ciências faz o filósofo desenvolver uma crítica arque-

ológica da própria epistemologia ou do estudo do desenvolvimento do

conhecimento. A classificação das coisas e de suas significações pelas palavras estaria vinculada a um processo mais heteróclito que pretensa- mente racional e organizado, segundo leis claras e inabaláveis. Os dis- cursos de saber e, consequentemente, suas relações de poder e subjeti- vação que daí advém, obedecem a uma ordenação histórica passível de ser arqueologizada.

Nesse sentido, é a própria linguagem que dá a possibilidade da enunciação do heteróclito. A linguagem deve, portanto, ser pensada en- quanto a possibilidade de um não-lugar ativo, o mesmo não-lugar que caracteriza a classificação literária borgeana, pois é nesse espaço atópico e heterotópico onde se encontra a possibilidade de um questionamento mais vasto em relação às formações tópicas (Foucault utiliza o termo utópico) e discursivas que a história das ciências nos mostra como es- sencialmente e cronologicamente válidas.

Finalmente, poderíamos dizer que a imagem literária da classifica- ção heteróclita, atópica ou heterotópica da enciclopédia chinesa, serve de “gatilho” para a tese originalíssima de Foucault que se propõe a uma arqueologia das ciências do homem. Foucault eleva a linguagem à posi- ção de um não-lugar ativo do próprio pensamento. Existe uma histori- cidade e uma positividade nas formações discursivas que deveriam ser pensadas a partir dessa nova posição “em dobra” da linguagem na sua relação “atópica” com o mundo.

Para se ter uma noção clara desse movimento “em curva” da lin- guagem e do mundo, das formações discursivas e dos regimes de ver-

dade que paulatinamente se forjam na história das ideias, é necessário, portanto, pensar a linguagem como algo não-natural, como série e pro- duto de formações discursivas.

No documento Livro de Literatura Hispânica I, 2013 (páginas 63-66)