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Como escrever um relato descritivo de qualidade

4 A OFENSIVA JUDICIAL CONTRA O COMPARTILHAMENTO DE ARQUIVOS NA INTERNET

6 UM MÉTODO DESCRITIVO APOIADO EM PREMISSAS DA TEORIA ATOR REDE

6.5 Como escrever um relato descritivo de qualidade

A última fonte de incerteza a ser considerada tem a ver com própria redação de um relato descritivo. Segundo Latour, o processo de feitura de um relato não deve ser omitido no plano de fundo de uma pesquisa, mas deve ser descrito como mais um mediador. Um relato é um texto de tamanho variado que, provavelmente, será lido por um número reduzido de pessoas. Com sorte, este relato será somado a outros relatos elaborados num mesmo domínio de pesquisa. Trata-se de

Um estudo sempre incompleto, já que inicia-se no meio das coisas, pressionado por colegas, empurrado por orgãos de financiamento e limitado por prazos. Ignoramos ou simplesmente não compreendemos a maior parte das coisas que estudamos. [...] Mesmo quando estamos em meio às coisas, com olhos e ouvidos atentos, nós deixamos escapar a maioria dos acontecimentos (LATOUR, 2005, p.123).

O ato de trazer o processo de feitura de um relato para o primeiro plano é uma estratégia contestada na sociologia convencional. A tendência deles de emular os métodos de seus colegas das ciências “duras” os fazem crer que eles devem tentar entender a existência de determinado fenômeno baseando-se apenas no contato direto com seu objeto por meio da via “transparente” de termos técnicos ausentes de

ambiguidades.

Os sociólogos das associações estão cientes, todavia, que até mesmo as ciências “duras” estão envolvidas com a redação de relatos textuais sobre questões controversas e sabem que a fabricação e a artificialidade não se opõe, necessariamente, à verdade e à objetividade. Os textos de sociologia, assim como aqueles das ciências “duras”, são artificiais e precisos ao mesmo tempo.

A diferença não é entre aqueles que sabem com certeza e aqueles que escrevem textos, entre mentes ‘científicas’ e mentes ‘literárias’, mas entre aqueles que escrevem textos ruins e aqueles que escrevem textos bons. [...] Uma sociologia boa deve ser bem escrita; caso contrário o social não aparece através dela (LATOUR, 2005, p.124).

Muitas vezes, o sociólogo é obrigado a decidir entre escrever um texto objetivo ou um texto subjetivo. Os textos que se pretendem objetivos dizem imitar os métodos das ciências naturais, enquanto a proposta da TAR pretende renovar o significado de “ciência” e “social”, transformando completamente o sentido de relato objetivo. Diferentemente do seu sentido tradicional, a objetividade não é algo que se alcança por meios padronizados e desinteressados, mas é o produto de um conjunto de controvérsias calorosas entre partes interessadas.

Uma coisa é dizer que a sociologia produz relatos escritos, outra, completamente diferente, é dizer que os sociólogos só produzem estórias de ficção. O sociólogo não deve abandonar o objetivo de tentar escrever um relato completo e verdadeiro, mas reconhecer que, assim como os experimentos dos seus colegas no laboratório, os relatos textuais também podem fracassar.

Os relatos textuais são os laboratórios dos cientistas sociais e é justamente através da artificialidade desses meios que a objetividade poderá ser alcançada. Logo, tratar uma pesquisa de um cientista social com um relato textual não afeta a sua pretensão de verdade, apenas aumenta o número de precauções que devem ser consideradas e de habilidades exigidas dos investigadores (LATOUR, 2005, p.127).

Um texto, segundo os critérios da TAR, não deve ser julgado com base em seu estilo, já que os cientistas sociais jamais conseguirão imitar as habilidades dos escritores e poetas. Um texto de qualidade, segundo os critérios da TAR, é um relato capaz de rastrear uma rede. Em se tratando de um termo tão polissêmico quanto o

de “rede”, é importante descrever melhor o seu significado. Uma “rede”, como é entendida a partir da expressão “ator-rede”, designa uma sequência de participantes tratados como plenos mediadores. Uma rede não designa algo “lá fora”, composta de pontos interconectados, como uma rede telefônica, ferroviária ou uma rede de esgoto. Uma rede, no vocabulário da TAR, é um indicador da qualidade de um texto.

De forma bem simples: um bom relato com base na TAR é uma narrativa, uma descrição ou uma proposição onde todos os atores são responsáveis por uma ação. Em vez de simplesmente transportar efeitos sem os transformar, cada ponto do texto pode se tornar uma bifurcação, um evento, a origem de uma nova tradução. Assim que os atores passam a ser tratados como mediadores, eles possibilitam que o movimento do social se torne visível [...] Um texto, a partir de nossa definição de ciência social, é um teste de quantos atores um analista é capaz de tratar como mediadores e quão longe ele é capaz de seguí-los” (LATOUR , 2005, p.128).

A tarefa de construir um relato textual confuso sobre um mundo confuso pode não parecer um feito grandioso. No entanto, a sociologia das associações não está em busca de grandeza. O objetivo é produzir uma ciência do social adequada às especificidades do social, da mesma forma que as outras ciências precisaram inventar meios artificiais de captarem os fenômenos específicos que elas buscavam. Se o social é aquilo que circula, visível apenas através dos rastros da concatenação de mediadores, é isto que precisa ser descrito através dos relatos textuais. A tarefa é desdobrar os atores em redes de mediadores. O ato de desdobrar não é uma mera descrição, e muito menos uma espécie de “revelação” daquilo que só pode ser visto através da crítica (LATOUR, 2005, p.136). Um bom texto nunca é apenas um retrato imediato daquilo que descreve. Trata-se sempre de um experimento artificial que busca replicar e enfatizar os rastros gerados pelos atores.

O simples ato de registrar algo no papel já uma grande transformação que requer tanta habilidade quanto o de elaborar um experimento em laboratório. Nenhum pesquisador deve encarar a tarefa de descrever um conjunto de atividades como algo inferior. Em geral, há uma sensação de que algo como uma explicação deveria ser adicionada à descrição. Se as redes que compõem determinado estado de coisas for inteiramente desdobrada, acrescentar uma explicação se torna supérfluo. Quando uma explicação se torna necessária, significa que a descrição deveria ter sido estendida um pouco adiante. É muito comum ouvir dizer que a descrição é algo muito particular, muito idiossincrático e muito localizado. Isso não

deve ser uma preocupação, já que só existe a ciência do particular (LATOUR, 2005, p.137).

Desdobrar os atores significa que, atraves de um relato, a quantidade de atores pode aumentar, a amplitude das agências que fazem os atores agir pode se expandir, o número de objetos responsáveis pela estabilização de grupos poderá se multiplicar e as controvérsias poderão ser mapeadas. Um relato de qualidade poderá produzir o social com a mesma precisão que alguns dos atores em ação, atráves da agência controversa do analista, reunindo-os de tal maneira que eles poderão compor um coletivo.

O problema dos cientistas sociais é que eles, normalmente, alternam entre arrogância - cada um deles sonha em ser o Newton da ciência social assim como o Lênin da mudança social - e o desespero - eles desprezam a si mesmos porque produzem apenas relatos, estórias e estatísticas que ninguém irá ler. Mas a escolha entre o domínio absoluto e a total irrelevância é bastante superficial. [...] A relevância, como todo o resto, é uma conquista (LATOUR, 2005, p.138).