• Nenhum resultado encontrado

como principal articuladora da primeira “passeata dos surdos” da região

No documento VESTIR A LIBRAS NO CORPO (páginas 109-111)

SINAIS CORPORIFICADOS ATRAVÉS DOS AGENTES DA REDE DA LIBRAS ENGAJADOS EM INSTITUIÇÕES SOCIAIS LOCAIS

3.2. A “passeata dos surdos” como um ritual político e a “cultura surda” como uma arma política mobilizada pelo “povo surdo”

3.2.1. como principal articuladora da primeira “passeata dos surdos” da região

Tomei a iniciativa diante da dificuldade de um encontro presencial e, aproveitando

que já havia convidado pessoalmente a participar da minha pesquisa, gravei um vídeo através do meu smartphone em que eu sinalizava pedindo-lhe algumas informações para completar minha história escrita nesta dissertação. No vídeo pedi para ela responder “quando, onde e como aprendeu a Libras”, e ainda, “comentar um pouco sobre a

Associação dos Surdos da região”. Enviei o vídeo para ela no whatsapp. Não demorou a responder, uma hora depois ela me enviou quatro pequenos vídeos explicando sobre minhas indagações. A partir deste material, visualizei sua sinalização e transcrevi para o Português uma tradução possível dos enunciados fornecidos por esta interlocutora.

Não me lembro bem a idade ao certo, mas foi entre 7 e 11 anos mais ou menos [que entrou em contato com a Libras]. Quando eu estudava na APAE, um homem surdo de BH veio para a cidade de Rio Casca. Ele distribuiu um santinho com o alfabeto manual. Daí um amigo surdo viu esse homem sinalizando e comentou comigo sobre as expressões faciais e os sinais, na época eu não sabia Libras. Eu vi este surdo sinalizando e fiquei curiosa. Eu peguei o santinho com o alfabeto e fiquei praticando junto com meu amigo surdo. Nós aprendemos juntos o alfabeto e ficávamos praticando, por exemplo: faz o sinal em Libras para “banheiro”. Via as palavras e fazia a datilologia B-A-N-H-E-I-R-O... Fui praticando só a datilologia, não tinha conhecimento dos sinais. Depois, muito tempo depois o fonoaudiólogo da APAE me proibiu de usar a datilologia, pegou, guardou o meu alfabeto e disse que era para treinar só a oralização.

Eu fiquei triste com o ocorrido, porque eu pensei, mas eu gosto da datilologia, é legal e tal... fiquei triste com a proibição, com isso aprendi a fazer leitura labial. Muito tempo depois já com a idade de 13 anos, encontrei meu primo surdo, mais velho, adulto. Eu não entendia direito, eu não sabia que ele era surdo e também usava dos sinais da Libras, eu achei fantástico, ele me ensinou alguns sinais. [...] Ele foi me ensinando os sinais das coisas e eu ficava admirada com aquilo tudo. Era mais fácil interagir e comunicar, coisa que com os “ouvintes” era mais difícil. Eu aprendi muito de Libras com esse meu primo na cidade de Timóteo, porque tenho muitos parentes lá e sempre eu ia para lá. Meu primo um dia, me chamou para ir passear, daí nos encontramos com um grupo de surdos, eu ficava olhando todos se comunicando em Libras, mesmo não entendendo alguns sinais eu achava perfeito, depois eu perguntava e ou procurava o significado de alguns sinais, daí fui aprendendo.

Muito tempo se passou, eu comecei a namorar com um surdo, ele me ensinava Libras também e também me ajudava com a escrita do português. Na associação de surdos lá de Timóteo eu fiz muitas amizades, e comunicava com eles através do messenger. Eu ia direto para lá, me sentia bem lá, porque em Rio Casca não tinha nada, eu ficava sozinha, não conhecia surdos (tinha surdos lá, mas não sabia a Libras e ficavam mais isolados). Como era um pouco longe, ficava difícil ficar indo direto para Timóteo; conversei com minha família que queria fazer um curso de Libras, ai mudei para Ponte Nova. Aprendi muito a Libras a partir de 2011. Nesta época eu conheci meu esposo (“ouvinte-intérprete), ele era fluente na Libras sabia mais do que eu, e eu fui aprendendo. Ele me estimulava a aprender, me incentivava a seguir estudando. Eu comecei a ir em palestras, participar de eventos. Eu ficava curiosa, pesquisava na internet, assistia vídeos no youtube. Em 2012, entrei em contato direto com outros “surdos” de Ponte Nova e passei a ter fluência na Libras.

O depoimento de destaca novamente as controvérsias e disputas em torno do “corpo surdo”, posto na fronteira entre o “mundo ouvinte” e o “mundo surdo”, entre a

língua oral e a língua de sinais. Assim como ilustrado na experiência de , esta “surda” também experimentou em sua biografia opressões advindas dos falantes da língua Portuguesa, tencionando a construção de uma corporalidade próxima da experimentada e significada pelos “ouvintes” através de sua condição audiológica.

Tais realidades, tencionam o contexto político, histórico e social envolvendo as “pessoas surdas”. Assim sendo, é possível considerar que o contexto macro de significação relativa às questões de “identidade linguística-cultural” dos “surdos”, reverbera no microcosmo que habita o contexto de ocorrência da primeira “passeata dos surdos”, ocorrida na cidade de Ponte Nova (MG) no ano de 2016. É possível dizer, que este evento, entendido como um tipo de ritual, mobilizou símbolos e elementos de significações, que de alguma maneira, estavam relacionados com o contexto legal brasileiro e com uma herança histórica narrada pelos “surdos” e pela literatura. Além disso, outros fatores e variáveis estiveram presentes nas motivações individuais mobilizadas durante a performance coletiva dessa “passeata dos surdos”, como por exemplo, a possibilidade do simples encontro com seus pares no espaço público e o uso da Libras.

O núcleo motivacional que dá forma e conteúdo ao evento abordado neste tópico se ancora ao pano de fundo social presente no contexto nacional (de modo geral). Busco, discutir a partir das evidências reverberadas nesse evento extraordinário local. O exercício é pensar sobre: como a “passeata dos surdos” apresenta elementos, ordenamentos, sequencias, formalidade e sazonalidade capaz de caracterizá-la como um tipo de ritual capaz de promover a “cultura e identidade surda” vinculada à Libras?

No documento VESTIR A LIBRAS NO CORPO (páginas 109-111)