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Sobre a biografia de

No documento VESTIR A LIBRAS NO CORPO (páginas 89-93)

SINAIS CORPORIFICADOS ATRAVÉS DOS AGENTES DA REDE DA LIBRAS ENGAJADOS EM INSTITUIÇÕES SOCIAIS LOCAIS

3.1. O CELIB como uma “força agregadora” de eventos sociais extraordinários [ ] em seguida, com a configuração de mão (CM) dedos

3.1.2. Evento: aula sobre “cultura surda” com

3.1.2.1. Sobre a biografia de

nasceu em uma família de “ouvintes”, seus pais de naturalidade também mineira, cresceram em uma família de “ouvintes” das classes populares na microrregião de Viçosa. Ele nasceu em Ponte Nova (MG) em 1997 (filho único). Segundo me contou, nasceu sem audição devido à sua mãe ter contraído rubéola durante sua gestação. Desde o seu nascimento a família passou a conviver e a buscar formas de socializá-lo através da

Língua Portuguesa. Seus pais buscaram por orientações médicas; sua mãe não mediu esforços para que ele pudesse ser uma criança “normal” (que pudesse ouvir e falar como ela), e que fosse capaz de comunicar com mais eficiência com ele, ensinar as coisas do mundo, conhecer seus anseios e construir experiências significativas para sua educação com base nos valores familiares.

Este interlocutor passou a frequentar sessões com uma médica fonoaudióloga. Foi estimulado a sentir a vibração dos sons nas cordas vocais tocando o pescoço para ajudar na percepção dos sons das palavras; aprendeu a fazer leitura labial e a ajustar uma compreensão linguística através da percepção, ainda que longe, de alguns sons (vocábulos

linguísticos) amplificados por aparelhos auditivos. sinalizou que quando começou a frequentar a escola “foi muito difícil porque não entendia as atividades e o que a professora escrevia no quadro, quando ela ficava falando enquanto mexia muito a cabeça” e ele não conseguia entender o que ela falava; ele conseguia interagir com as outras crianças, mas pouco entendia o que elas diziam, captava certas impressões do que estava acontecendo pelo contexto visual em que os corpos e as ações atravessavam as interações naquele ambiente cheio de objetos e de pessoas.

Até os oito anos de idade este agente “surdo” frequentou sessões com fonoaudiólogos, período em que foi proibido pelos pais de aprender a língua de sinais

devido à crença de que a Libras pudesse atrapalhar seu aprendizado do Português. já estava com nove anos de idade quando uma vizinha, que havia conhecido a Libras no contexto de uma igreja Batista, explicou a importância da Libras e convenceu sua mãe a deixá-lo aprender esta língua de sinais. Esta mesma vizinha, indicou um “surdo” adulto da cidade que sabia Libras e podia ensiná-lo. Ainda, nesta mesma época (2007) nosso interlocutor também entrou em contato com a Libras na escola, através de um “intérprete”. Daí em diante seguiu aprendendo a Libras, continuou usando o Português (através da leitura labial e da oralização) e ainda aprendeu a ler e a escrever.

Então, com nove para dez anos de idade ele se viu entre dois “mundos”: o dos “ouvintes” e o dos “surdos”, ambos mediados pela língua (gem). Ele aprendeu, a grande custo econômico e disciplinar/corporal, a compreender o Português fazendo leitura labial e a ajustar certos sons através de aparelhos auditivos54. Além disto, na escola aprendeu a

54 Ele usou desde de pequeno os Aparelhos Auditivos Bilaterais (dois ouvidos), estes lhe garantiam 30% de audição, equivalente ao barulho em decibéis de uma buzina de carro, latido de cachorro, etc.

ler e a escrever com a ajuda de um “intérprete” de Libras. Este interlocutor “surdo” tornou-se bilíngue, desenvolveu habilidades linguísticas e corporais para usar o Português falado, ainda que com sotaques na pronúncia dos vocábulos. Hoje ele consegue articular relativamente bem o Português escrito e o falado, além de ser muito fluente na Libras.

É possível verificar nesta história biográfica um choque de corporalidades. As re(l)ações sociais instituídas diante do fenômeno da surdez, estabelecidas de modo

variado conforme os contextos de socialização; são muitos os casos, como o de , onde os pais “ouvintes” se vêem impotentes diante do desafio de interagir e o educar seu filho/a “surdo/a”. Os pais “ouvintes” de filhos “surdos” passam de início a sentir uma angústia mais relacionada com as dificuldades comunicativas do que com a surdez em si. Ainda, as primeiras orientações que recebem partem de contextos clínico-hospitalar (biomédico) e, quase naturalmente, a surdez passa a ser interpretada como “desvio” do padrão “normal” atribuído ao corpo pelos próprios “ouvintes”. Este fato acaba por acarretar, em muitos casos, um contato tardio com a língua de sinais; no limite, a criança atravessa a infância sem aquisição de língua, correndo o risco de chegar na idade adulta sem habilidades linguísticas necessárias à uma comunicação mais eficiente (QUADROS, 2006; BISOL, C.; SEPERB, T. M, 2010).

Um retrato do exposto acima pode ser observado na história biográfica do meu amigo “surdo”, em uma conversa de whatsapp, escreveu que aprendeu a Libras tardiamente “porque a fonoaudióloga disse para minha mãe que se eu aprender Libras eu não vou aprender a falar kkkkk e por isso não deixava”55. Este excerto, mostra uma

controvérsia discursiva existente em torno das construções (composições) de

corporalidades ligadas tanto a língua oral-auditiva quanto a língua viso-espacial. No

trecho “[..] se eu aprender Libras eu não vou aprender a falar kkkkk [...]”, crítica sutilmente a crença cultivada no passado pelos pais, de que a Libras poderia atrapalhar no seu desenvolvimento da fala. Logo, não parecia fazer sentido para este agente a crença familiar (compartilhada por muitos “ouvintes”); na verdade, como me relatou, a Libras lhe ajudou a aprender a escrita do Português e a esclarecer alguns “fatos da vida e do mundo”.

A aquisição da língua de sinais não atrofiou suas habilidades corporais e linguísticas para com o Português. Este agente passou a expressar uma corporalidade que

transita entre o “mundo ouvinte” e o “mundo surdo”, entretanto ele de fato se identifica com o modo de “ser surdo” e com a Libras. Devido ao fato de ter sido submetido por anos ao treinamento e ao aprendizado da língua falada pelos seus pais, se adaptou com maior conforto linguístico e perceptível à comunicação via língua de sinais. É possível que tal fato tenha ocorrido devido a Libras exigir menor esforço cognitivo-motor- sensorial do corpo surdo (CAPOVILLA, 2004).

A interdição imposta inicialmente pela família deste interlocutor “surdo” em relação ao aprendizado/aquisição da Libras nos anos iniciais de sua vida, demonstra certo englobamento de processos envolvendo a composição de corporalidades centrada nos modos de “ser”, “estar”, “perceber e “significar” dos “ouvintes” – instituindo uma relação de oposição hierárquica englobante (DUARTE, L. 1995). Em outras palavras, o fato deste interlocutor ter nascido sem o sentido da audição, não o incapacitou de se desenvolver e adquirir uma língua de sinais, ainda a partir de uma rigorosa disciplina para o aprendizado do Português falado e escrito.

A história de evidência parte do processo de composição da língua oral em seu corpo: seu treinamento, o esforço necessário para ler os lábios e, mesmo sem poder ouvir a palavra, entender seu significado isolado e dentro de uma frase, e ainda, ser capaz de mobilizar seus sons através de técnicas vocais reproduzidas na/pela língua falada e transposta para sua escrita. Para ele, o uso do Português exige mais esforço corporal do que a Libras (diferente da opinião de muitos interlocutores “ouvintes” que diz o contrário). Embora seu encontro com esta língua de sinais ter se dado quando ele já estava com nove anos de idade, tal fato não prejudicou seu aprendizado da Libras que, automaticamente, o levou a se identificar com a “cultura e identidade surda” – criando nele um sentimento de pertença devido a aproximação de seus pares. A partir daí ele despertou uma curiosidade visual e uma forma também visual de se comunicar por meio de técnicas corporais, codificadas pelos sinais conformados socialmente por meio da gramática corporal da Libras – encarnada através da “remodelagem” e da “gestão rigorosa do corpo” (WACQUANT, L. 2002, p. 147).

Este interlocutor, tornou-se um estrangeiro naturalizado no “mundo ouvinte”, ao passo que eu me tornava um estrangeiro naturalizado no “mundo surdo” devido meu aprendizado da Libras e das questões relativas à “cultura surda”. Desse modo, o “vestir a Libras no corpo” possibilitou transformações modulares sensoriais, ou seja, uma

“remodelagem” do corpo para agenciar a língua de sinais e com ela o modo de “ser”, “estar”, “perceber” e “significar” o “mundo”.

No documento VESTIR A LIBRAS NO CORPO (páginas 89-93)