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Os sentidos nascem de uma associação que se faz entre um ente e outro. Originalmente, a ideia de criar sentido talvez tenha surgido da observação das relações de causa e efeito entre fenômenos da natureza: a presença de nuvem no céu, por exemplo, passa a significar chuva; a pessoa olha algo que está presente (a nuvem) e vê algo que está au- sente (a chuva). Esse jogo de presença-ausência caracteriza algo que, posteriormente, passou-se a se chamar signo, que é o enlace entre o

ente que origina a relação (o significante) e o ente ao qual ele remete (o significado). Resumindo, no exemplo acima, a nuvem é o significante, a chuva o significado e a relação entre os dois, o signo. O signo, portanto, não é uma realidade física, um som que se emite ou uma sequência de letras impressas no papel; é uma relação mental que se estabelece en- tre essa entidade física presente e outra entidade, geralmente distante. Criar sentido é tornar o ausente presente; é trazer o que está distante no tempo e no espaço para o aqui e o agora; é relacionar o que está lá com o que está aqui, o que foi com o que é.

A questão é que na maioria das situações não basta a observação empírica, como no exemplo anterior (causa e efeito), para estabelecer relação entre significante e significado. No caso da língua, o que do- mina parece ser uma relação convencional ou arbitrária. Para Saussure (2006), por exemplo, os sons que produzimos para pronunciar “mesa” não estão naturalmente associados ao conceito que temos do objeto “mesa”; a relação que fazemos entre a imagem acústica que usamos para pronunciar ou entender a cadeia de sons “mesa” e o conceito a que remete essa imagem acústica, é uma relação arbitrária, tão arbitrária que o mesmo conceito pode ser expresso de várias maneiras na medida em que se passa de uma língua para outra (o que é “mesa” em português será table em inglês, tavola em italiano e assim por diante).

Há duas observações que precisam ser feitas aqui. A primeira é de que o significante não está preso apenas à imagem acústica; vai muito além da mera representação sonora. Pode ser uma imagem gráfica, como as letras “m”, “e”, “s” e “a” impressas no papel; pode ser também um ícone, na forma de um pequeno retângulo na tela do computador, o rabisco de uma criança que está aprendendo a desenhar, uma escultura feita com massa de moldar, um jogo de montar etc. Na medida em que tudo pode ser metaforizado, qualquer ente seja objeto, evento, animal ou pessoa pode ser usado como significante, dependendo apenas da criatividade do autor em descobrir ou propor relações.

A segunda observação é de que a relação de arbitrariedade entre significante (letras, ícone, rabisco, escultura etc.) e o conceito que se tem do objeto pode ser questionada, principalmente no contexto de prática social, em que os signos não são totalmente preestabelecidos, mas também são construídos in loco, com margem ao ineditismo constante. A criança do jardim de infância que mostra um desenho para a professora, encontra uma expressão de dúvida e então escla- rece “É um carro” está criando um signo que antes não existia e que só vai existir a partir daquele momento, pressupondo que o desenho seja exposto num mural, mostrado aos pais etc. Se essa sequência de eventos não acontecer, o signo poderá ter uma vida curta, terminando ao mesmo tempo do encontro com a professora. De qualquer modo, durante esse encontro, a relação entre significante e significado não é arbitrária, mas motivada: o desenho significa aquilo que a criança quer que ele signifique. Lembra o que Humpy Dumpty disse para Alice: “Quando uso uma palavra ela significa aquilo que eu quero que signi- fique... nem mais nem menos”. E lembra também o que dizem alguns alunos quando escrevem um texto que precisa de esclarecimentos ou mesmo adultos quando tentam justificar um mal entendido: “Não foi isso o que eu disse...”. A tentativa de dar um significado pessoal ao significante parece ser uma característica universal. Poetas, escritores e mesmo qualquer falante da língua não só criam palavras novas como dão novo sentido a palavras já existentes. Fica difícil manter a ideia de arbitrariedade do signo na medida em que se descobre que o signo não está preso ao que já foi estabelecido, mas se reconstrói em cada diálogo, de modo motivado, dependendo do contexto e das relações que se estabelecem entre os sujeitos. Produz sentido quem fala e quem ouve, quem escreve e quem lê, quem desenha e quem olha, quem dança e quem observa, envolvendo todas as possibilidades de interação humana. A produção de sentido é um ato conjunto entre dois ou mais sujeitos.

A fusão entre significante e significado, que locutor e alocutário fazem para produzir sentido, está montada num eixo paradigmático, que se caracteriza pela possibilidade de substituição de cada um dos elementos, dispostos em coluna. No enunciado “É um carro”, o espaço ocupado pelo substantivo poderia ser preenchido por outros substan- tivos (“Fusca”, “Fiat”, “Vectra”, “avião” etc.), dependendo das escolhas feitas pela criança dentro de uma lista de possibilidades. A produção de sentido, no entanto, não depende apenas do eixo paradigmático, em coluna, mas também do que está à esquerda e à direita, do antes e do depois, neste caso não em coluna, mas em linha. O sentido se constrói não só fundindo o significante com o significado, mas também conec- tando elementos dispersos no tempo e no espaço. É preciso olhar para frente e para trás, considerar o caminho percorrido e fazer previsões do que se tem a percorrer. Conectamos quando usamos a língua, ob- servamos uma figura ou assistimos a um vídeo. É o que se entende por eixo sintagmático.

Essas conexões podem estar mais próximas ou mais afastadas, no interior do próprio texto ou externas a ele. Na leitura, por exemplo, podemos relacionar uma palavra ou frase com uma frase anterior dentro do próprio texto, com uma frase de outro texto ou um fato que recupe- ramos de nossa memória. O título do livro Beber, jogar, f@#er, escolhido propositadamente pelo autor, remete a outro livro (Comer, rezar, amar) e só poderá fazer sentido se o leitor conseguir fazer essa conexão com o título original. Conectamos quando lemos um texto e conectamos quando lemos uma imagem; para ler a Mona Lisa desenhada por Andy Warhol, por exemplo, é preciso inicialmente saber que existe uma Mona Lisa primeira, pintada por Leonardo da Vinci, e a partir daí fazer as demais associações: incluindo a ideia de um mundo em série em que uma Mona Lisa única se reproduz em infinitas Mona Lisas, facilmente perceptíveis na reduplicação interna da imagem, feita por Warhol. Essa ideia de reduplicação, no interior do quadro, remete também a outra

reduplicação, que existe no mundo exterior ao quadro, e que faz parte da contemporaneidade: são os objetos que se clonam e se copiam cada vez mais com o avanço da tecnologia. Finalmente, conectamos quando produzimos ou lemos vídeos, quer seja com outros vídeos, com aspectos do mundo material ou com elementos do próprio vídeo. Ao contrário da imagem fixa, a imagem em movimento só existe pela multiplicidade de conexões que são feitas, envolvendo o autor, o observador e o próprio artefato. O movimento é uma ilusão de ótica, resultado das conexões feitas pelo observador, a partir de imagens rigorosamente estáticas, que precisam ser conectadas por ele.