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SOBRE AS DIFICULDADES A SEREM DISSIPADAS NAS ESCRITURAS

A. COMO RESOLVER AS AMBIGÜIDADES EM TEXTOS TOMADOS EM SENTIDO PRÓPRIO

CAPÍTULO 1

Breve recapitulação e objetivo do presente livro

1. O homem temente a Deus procura diligentemente a vontade divina nas santas Escrituras. Pacificado

pela piedade, que não ame as controvérsias. Munido do conhecimento das línguas, que não se veja embaraçado por palavras e expressões desconhecidas. Provido de certos conhecimentos necessários, que saiba identificar a natureza e as propriedades das coisas quando empregadas a título de comparação. Finalmente, apoiado na exatidão do texto obtido por trabalho consciencioso de correção, que ele, assim preparado, possa dissipar e resolver as ambigüidades das Escrituras.

Para que possa evitar os enganos com os signos ambíguos, procurarei ajudá-lo quanto puder, através destes métodos, que presentemente pretendo indicar. Talvez pareçam pueris a alguns, devido à capacidade superior de sua inteligência ou ao brilho de seu gênio. Contudo, como dizia, se ele estiver em boa disposição, que saiba — quanto puder ser instruído por mim — que toda ambigüidade da Escritura provém seja dos termos tomados em seu sentido próprio, seja de termos tomados em sentido figurado. Sobre essa distinção já falamos no Livro II.

CAPÍTULO 2

O recurso às Regras de fé e à Igreja

2. Quando for o sentido próprio que torna ambígua a Escritura, a primeira coisa a fazer é verificar se

não estamos pontuando ou pronunciando mal. Uma vez prestada a devida atenção, se ainda aparece incerto ao estudioso como deve pontuar ou pronunciar, que ele consulte as Regras de fé (Regula fidei) adquiridas em outras passagens mais claras da Escritura. Ou então, que recorra à autoridade da Igreja. Sobre essas Regras já tratamos o suficiente ao falarmos sobre “as coisas” (De rebus), no Livro I.42

Mas no caso de dois sentidos, ou todos eles, caso forem muitos, resultarem ambíguos, sem nos afastarmos da fé, resta-nos consultar o contexto anterior, e o seguinte à passagem onde está a ambigüidade. Veremos por aí, entre os diversos sentidos que se oferecem, qual o melhor ou com qual o texto mais se harmoniza.

Ambigüidades devidas à falsa pontuação

3. Consideremos alguns exemplos. Seja o primeiro o de uma pontuação que leva à heresia: In princpio

erat Verbum et Verbum erat apud Deum et Deus erat. O ponto final aí colocado muda o sentido da frase. Porque a continuação: Verbum hoc erat in principio apud Deum não leva a reconhecer que o Verbo era Deus. Tal pontuação deve ser rejeitada em virtude da Regra de fé que nos prescreve confessar a igualdade da Trindade. Pontuaremos, portanto, deste modo: Et Deus erat Verbum, acrescentando logo a continuação: hoc erat in principio apud Deum (Jo 1,1).

Ambigüidades por pontuação duvidosa

4. Eis por outro lado, uma ambigüidade devida à pontuação, em que nenhum dos dois fragmentos da

frase cortada seja contrário à fé. Assim, para dissipar alguma dúvida, é preciso recorrer ao próprio contexto da sentença. Diz o Apóstolo: “Ignoro o que escolher; porque de ambos os lados vejo-me solicitado: tenho veemente desejo de partir e estar com Cristo, porque isto é em muito o melhor, mas permanecer na carne é necessário para vos” (Et quid eligam ignoro: compellor autem ex duobus, concupiscentiam habens dissolvi, et esse cum Christo; multo enin magis optimum: manere in carne necessarium propter vos) (Fl 1,23-24).

A dúvida é se havemos de entender: “de ambos os lados tenho veemente desejo”, ou: “sou solicitado de ambos os lados”. De maneira que seja acrescentado: “tenho veemente desejo de partir e estar com Cristo”. Mas como são Paulo prossegue dizendo: “porque isso é em muito o melhor”, vê-se claramente que ele diz que tinha veemente desejo desse melhor. De sorte que ao ser atraído por ambos os lados, sentia por um o desejo, e por outro a necessidade: o desejo de estar com Cristo e a necessidade de permanecer na carne. Essa ambigüidade resolve-se com a simples palavra que segue: o “porque” (enim) que se encontra no texto. Os tradutores que suprimiram essa palavra o fizeram levados antes pela idéia de que a sentença mostrasse que o Apóstolo não somente se sentia solicitado por ambos os lados, mas também sentia grande desejo de ambos. A pontuação há de ser a seguinte: “Ignoro o que escolher; vejo-me solicitado de ambos os lados”. E a esse ponto seguir-se: “Tenho desejo de partir e estar com Cristo”. E como se lhe fosse perguntado por que tinha maior desejo disso, diz: “Porque é em muito o melhor”. Mas então por que se vê solicitado pelas duas coisas? Porque a necessidade impõe-se de permanecer na terra, o que ele exprime acrescentando: “Permanecer na carne é necessário para vós”.

Casos de pontuação facultativa

5. Nas passagens onde nem a Regra de fé nem o contexto do discurso podem esclarecer a

ambigüidade, não há inconveniente algum pontuar a frase conforme qualquer dos sentidos que se apresentem.

É o caso para esta exortação aos coríntios: “Tendo estas promessas, meus caríssimos, purifiquemo- nos de toda mancha da carne e do espírito, levando ao termo a santificação no temor de Deus. Acolhei- nos. Nós a ninguém temos ofendido” (2Cor 7,1-2). Por certo, não se sabe como ler: “Purifiquemo-nos de toda mancha da carne e do espírito”, concordando com aquela sentença do Apóstolo que disse em outro lugar: “...para ser santo de corpo e de espírito” (1Cor 7,34). Ou então: “Purifiquemo-nos de toda mancha da carne”, e logo iniciando uma nova sentença com outro sentido: “Levando ao termo a santificação do espírito no temor de Deus, acolhei-nos”.

Quanto a tais ambigüidades de pontuação, o leitor tem toda a liberdade de adotar a que julgar melhor.

CAPÍTULO 3

Ambigüidades provenientes da entoação na pronúncia

6. Tudo o que acabo de dizer a respeito das ambigüidades devidas à pontuação pode exatamente ser

negligência do leitor, pode ser corrigida pela Regra de fé ou pelo contexto. No caso, porém, de nenhum desses meios aplicados à correção esclarecerem a ambigüidade, a tal ponto que o leitor ainda fique na dúvida, não haverá culpa pelo modo com que for pronunciada a frase. Vejamos um exemplo:

Realmente, se a fé que nos faz crer não nos lembrar que Deus não se levantará como acusador de seus eleitos e nem Cristo os condenará, alguém correria o risco de pronunciar assim a seguinte pergunta: “Quem acusará os eleitos de Deus?” Conforme a tonalidade da voz, a questão parecerá exigir a resposta que segue afirmativa: “Deus que justifica”. Assim também com a segunda pergunta: “Quem os condenará?”, há risco de ser respondido: “Jesus Cristo que morreu”. Ora, crer nisso seria o cúmulo da demência. Será, pois, preciso pronunciar a frase de tal forma que a questão proposta seja seguida de outra interrogação. De fato, ao dizer dos antigos, existe entre uma questão e uma interrogação esta diferença: à questão, percontatio, podem-se dar múltiplas respostas; ao passo que à interrogação, interrogatio, só se pode dar uma resposta: sim ou não. Que seja pronunciada pois do seguinte modo aquela questão: “Quem acusará os escolhidos de Deus?” A resposta deve ser dada em tom interrogativo: “Deus que os justifica?”, com a intenção tácita desta resposta: “Não!” Do mesmo modo, após a questão: “Quem os condenará?”, perguntar-se-á: “Cristo Jesus que morreu?”, ou melhor: “Que ressuscitou? que está à destra do Pai e que intercede por nós?” (Rm 8,33.34), tendo a intenção tácita de ser respondido: “Não!”

Pelo contrário, na passagem onde o Apóstolo diz: “Que diremos, pois? Que os gentios, sem procurar a justiça, alcançaram a justiça!”, se a resposta não for afirmativa, a seqüência do texto faltará de coesão (Rm 9,30-31).

No entanto, com qualquer tonalidade de voz com que se pronunciem as palavras de Natanael: “De Nazaré pode porventura sair coisa que seja boa?” (Jo 1,46), seja em tom afirmativo, pondo a interrogação unicamente nas palavras: “De Nazaré?”, seja que se pronuncie toda a frase com dúvida, em tom interrogativo, eu não vejo como distinguir, porque nem um nem outro sentido contraria a fé. Casos de pronúncia duvidosa

7. Podem-se dar também ambigüidades vindas da emissão ambígua das sílabas e, portanto, igualmente

referentes à pronúncia.

Por exemplo, acontece nesta frase da Escritura: “Conheces até o fundo do meu ser: não te está escondido o meu osso que fizeste, em segredo” (Sl 139,15). Não está claro se o leitor deve pronunciar a palavra os como sílaba breve ou como sílaba longa. Se ele a pronunciar como breve, é para se entender a palavra como o singular de ossa (de os, ossis, n., o osso). Se a pronunciar como sílaba longa, será o singular de ora (de os, oris, n., a boca). Esse gênero de dificuldade é resolvido pela investigação da língua original. No texto grego não vem stoma, boca, mas está posto: osteon, osso. É assim que, na maioria das vezes, a linguagem corrente vulgar é mais útil para designar os objetos do que um vocabulário literário. Eu preferiria que esse versículo do salmo 138 viesse assim: Non est absconditum a te ossum meum. Cometer-se-ia um barbarismo, mas preferível ao emprego de um termo mais latino mas menos claro.43

Por vezes, é certo, a entonação duvidosa de uma sílaba se discerne graças a uma palavra vizinha pertencente ao mesmo período. É o caso destas palavras do Apóstolo: “… eu vos previno, como já vos disse, que os que praticam essas coisas não possuirão o reino de Deus” (Gl 5,21). Se são Paulo se tivesse contentado em dizer: quae praedico vobis, sem acrescentar: sicut praedixi, não poderíamos saber, sem recorrer ao texto original, se no verbo praedico, a sílaba do meio seria breve ou longa (Praedico = eu previno; praedico = eu proclamo). Ora, é claro que é preciso considerá-la breve (eu

previno), porque ele não diz a seguir: sicut praedicavi, mas sicut praedixi.

CAPÍTULO 4

Ambigüidades devidas à maneira de expressão

8. Deverão ser examinadas por este método não somente as ambigüidades já assinaladas, mas também

todas as outras que não provêm da pontuação ou da pronúncia.

Vejamos a passagem do Apóstolo aos Tessalonicenses: Propterea consolati sumus, fratres, in vobis (“Por isso, nós somos consolados, irmãos, em vós”) (1Ts 3,7). É duvidoso se é preciso entender a palavra fratres, no vocativo, ou hos fratres, no acusativo. Por certo, nenhum desses sentidos é contrário à fé. Mas sabemos que o grego não possui a mesma ortografia para o vocativo e o acusativo. Por isso, consultado o texto grego, vê-se que fratres é vocativo. E se o tradutor houvesse tido a idéia de colocar: Propterea consolationem habuimus, fratres, in vobis (“Por isso, tivemos o consolo em vos, irmãos”), ele teria sido menos escravo da tradução, mas haveria menos dúvida sobre o sentido. Seria melhor ainda, se ele tivesse acrescentado nostri e fratres. Assim, ninguém duvidaria de que estivesse empregando o vocativo ao ouvir: Propterea consolati sumus fratres nostri, in vobis.

Contudo, não se podem permitir tais mudanças sem perigo. E o que ocorre nesta sentença da carta aos Coríntios: Quotidie morior, per vestram gloriam, fratres, quam habeo in Christo Jesu (“Todos os dias morro, irmãos, por vossa glória, a qual tenho em Jesus Cristo”) (1Cor 15,31). Certo tradutor interpretou deste modo: Quotidie morior, per vestram, juro, gloriam, porque a palavra grega (ne = per) exprime, claramente e sem equívoco, a idéia de juramento.

As palavras tomadas em sentido próprio, difícil e rarissimamente podem encerrar ambigüidades — pelo menos no que se refere aos livros das divinas Escrituras — que não possam ser dissipadas: pelo contexto em que aparecem, pela busca do pensamento, do autor, por confrontação de tradutores ou pelo recurso à língua original (= precedente).

B. COMO RESOLVER AMBIGÜIDADES EM TEXTOS TOMADOS