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SOBRE A MANEIRA DE ENSINAR A DOUTRINA

A. PRINCÍPIOS FUNDAMENIAIS DA ARTE ORATÓRLA CAPÍTULO

Apresentação do Livro IV

1. Este trabalho intitulado De doutrina christiana eu o dividi, a princípio, em duas partes. Após um

prólogo, onde respondi a eventuais contestadores, afirmei: “Há duas coisas igualmente importantes na exposição das Escrituras: a maneira de descobrir o que é para ser entendido e a maneira de expor com propriedade o que foi entendido. Primeiramente, dissertaremos sobre como se realiza a descoberta da verdade, depois sobre o modo de expô-la” (I,1,1).

Como já discorremos longamente sobre a descoberta, em três livros consagrados a essa única parte, desenvolveremos agora, brevemente, com a ajuda de Deus, a respeito de como expor. Assim, se for possível, englobaremos tudo em um só volume, e terminaremos toda a obra neste quarto livro.47

CAPÍTULO 2

Esta obra não é tratado de retórica

2. Advirto, de início, refreando a impaciência dos leitores, que talvez suponham que vou lhes dar

preceitos de retórica que aprendi a comunicar nas escolas profanas, Previno que não esperem isso de mim — não que esses preceitos sejam sem utilidade. Mas no caso de serem úteis, será preciso aprendê-los à parte, sob a condição todavia dessa pessoa encontrar tempo necessário para se dedicar a tal. Não o peçam, contudo, a mim, quer nesta obra, quer em qualquer outra.

Necessidade da prática da arte oratória

3. É um fato, que pela arte da retórica é possível persuadir o que é verdadeiro como o que é falso.

Quem ousará, pois, afirmar que a verdade deve enfrentar a mentira com defensores desarmados? Seria assim? Então, esses oradores, que se esforçam para persuadir o erro, saberiam desde o proêmio conquistar o auditório e torná-lo benévolo e dócil, ao passo que os defensores da verdade não o conseguiriam? Aqueles apresentariam seus erros com concisão, clareza, verossimilhança e estes apresentariam a verdade de maneira a torná-la insípida, difícil de compreensão e finalmente desagradável de ser crida? Aqueles, por argumentos falaciosos, atacariam a verdade e sustentariam o erro, e estes seriam incapazes de defender a verdade e refutar a mentira? Aqueles, estimulando e convencendo por suas palavras os ouvintes ao erro, os aterrorizariam, os contristariam, os divertiriam, exortando-os com ardor, e estes estariam adormecidos, insensíveis e frios ao serviço da verdade? Quem seria tão insensato para assim pensar?

Visto que a arte da palavra possui duplo efeito (o forte poder de persuadir seja para o mal, seja para o bem), por qual razão as pessoas honestas não poriam seu zelo a adquiri-la em vista de se engajar ao serviço da verdade? Os maus põem-na ao serviço da injustiça e do erro, em vista de fazer triunfar causas perversas e mentirosas.

Como e em que idade realizar o aprendizado

4. Eis o que constitui o talento da palavra ou da eloqüência: os princípios e preceitos dessa arte unidos

ao emprego engenhoso da linguagem, especialmente exercitada a realçar a riqueza do vocabulário e do estilo.

Os que podem desde logo aprender tal arte devem fazê-lo fora desta nossa obra. E ponham nesse estudo o tempo que dispõem ou que seja conforme à sua idade. Os próprios príncipes da eloqüência romana não recearam afirmar que, se esta arte não for aprendida desde cedo, nunca poderá ser conhecida completamente (Cícero, De oratore). Mas por que nos perguntaremos se isso é verdade? Pois ainda supondo que os mais idosos possam um dia adquirir tal arte, não me inclino muito a impor esse estudo a eles. Basta que os jovens (adulescentuli) dediquem-se a ela. E ainda assim, nem todos os que desejamos instruir para o serviço da Igreja. Que o seja apenas pelos que ainda não estão ocupados por outros trabalhos mais urgentes. Pois, quem possui um espírito vivo e ardente pode assimilar facilmente a eloqüência, lendo ou escutando os bons oradores, mais do que estudando os seus preceitos.

Não faltam obras eclesiásticas — sem contar as Escrituras canônicas, salutarmente colocadas no ápice da autoridade — por cuja leitura um homem bem dotado pode penetrar, além de seu conteúdo, no estilo das mesmas. Isso, sobretudo se, não contente de ler somente, também se exercitar a escrever, a ditar, a compor, a expor suas idéias conforme a regra de fé e piedade. Se as disposições para esse exercício fizerem falta, tampouco será possível perceber os preceitos da retórica. E se essa pessoa perceber alguma coisa, após as ter adquirido com grande esforço, de nada lhe terá adiantado. Pois os que aprenderam tais preceitos, e que falam com fluência e eloqüência, nem todos eles são capazes de pensar, ao estar falando, na aplicação de tais preceitos em seus discursos. A não ser que estejam dissertando expressamente sobre esses mesmos preceitos. Ao meu parecer, não há quem possa falar bem e, para melhor efeito, pensar ao mesmo tempo que falam, nas regras da eloqüência. Seria para temer, que escapem da mente aquelas idéias que eram explicitadas, devido à preocupação de exprimi- las conforme as regras da arte. E, no entanto, nos discursos e dissertações dos homens eloqüentes, os preceitos da eloqüência encontram-se aplicados. Esses oradores não pensaram neles, nem para compor seus discursos nem para pronunciá-los, quer os tenham aprendido quer não. Na realidade, eles aplicam as regras porque são eloqüentes e não para o serem.

O método espontâneo da imitação de bons modelos

5. Se é certo que as crianças só se põem a falar escutando as palavras das pessoas que falam, por que

alguém se poderia tornar eloqüente sem receber noção alguma da arte oratória, contentando-se em ler, em escutar e, à medida do possível, em imitar os bons oradores? E, além do mais, não temos exemplos que provem tal? De fato, conhecemos muitos que, sem os preceitos da retórica, são mais eloqüentes do que bom número de outros que os aprenderam nas escolas. E por outro lado, não conhecemos ninguém que se tenha tornado eloqüente, sem ter lido ou escutado os discursos e as pregações dos oradores. As próprias crianças não teriam necessidade da gramática que ensina a língua correta, se lhes fosse dado crescer e viver entre pessoas que falam corretamente. Com efeito, ignorando expressões errôneas, elas as evitariam e corrigiriam ao ouvi-las de outros. É o que fazem os moradores das cidades, inclusive os incultos, ao corrigir o modo de falar dos que vêm do meio rural.

Procedimento do orador cristão

6. O pregador é o que interpreta e ensina as divinas Escrituras. Como defensor da fé verdadeira e

adversário do erro, deve mediante o discurso ensinar o bem e refutar o mal. Nesta tarefa, o mestre deve tratar de conquistar o hostil, motivar o indiferente e informar o ignorante sobre o que deve ser feito ou esperado. Mas ao encontrar ouvintes benévolos, atentos, dispostos a aprender ou que os tenha assim conquistado, deverá prosseguir seu discurso como pedem as circunstâncias.

Caso a questão a ser tratada seja desconhecida e for preciso esclarecer os ouvintes, que faça a exposição. Onde houver dúvidas, que ele convença, por raciocínios apoiados em provas.

É oportuno dar à sua exposição maior força, caso tenha sido preciso convencer os ouvintes, além de ensiná-los, e também para que não se aborreçam no cumprimento do que já conhecem ou para levá-los a pôr sua vida em coerência com as idéias reconhecidas como verdadeiras. Aí, com efeito, são necessárias exortações, invectivas, movimentos vivos, reprimendas e todo outro procedimento capaz de comover os corações.

Na verdade, a quase totalidade dos homens, em sua atividade oratória, não deixa de agir dessa maneira.

CAPÍTULO 5

Vale mais falar com sabedoria do que com eloqüência

7. Acontece que uns oradores agem sem vigor, sem forma, sem calor. Outros, com fineza, elegância e

veemência. É preciso que o orador, capaz de discutir ou de falar — se não com eloqüência, ao menos com sabedoria —, assuma esse trabalho de que tratamos aqui, em vista de ser útil a seus ouvintes. Ainda que seja menos útil do que o seria se fosse capaz de falar com eloqüência. Ao contrário, o orador que exorbita numa eloqüência sem sabedoria deve ser tanto mais evitado quanto mais os ouvintes sentem prazer ao ouvi-lo expor inutilidades. Pois podem pensar, ao ouvi-lo falar eloqüentemente, que escutam a verdade.

Tal observação não escapou aos que julgavam outrora a eloqüência dever ser ensinada. Reconheceram, com efeito, que a sabedoria sem eloqüência foi pouco útil às cidades, mas, em troca, a eloqüência sem sabedoria lhes foi freqüentemente bastante nociva e nunca útil (Cícero, De inventione, liber I,1).

Se, pois, os professores de eloqüência nos livros onde expuseram seus preceitos viram-se forçados a reconhecer isso, sob a pressão da verdade, ainda que ignorando a verdadeira Sabedoria que desce do Deus das luzes, com quanto maior razão devemos nós não pensar de outro modo, nós, os filhos e dispensadores dessa Sabedoria?

Um homem fala com tanto maior sabedoria, quanto maior ou menor progresso faz na ciência das santas Escrituras. E eu não me refiro ao progresso que consiste em ler bastante as Escrituras, ou aprendê-las de cor, mas do progresso que consiste em compreendê-las bem e procurar diligentemente o seu sentido.

Há pessoas que as lêem e não as aprofundam. Lêem para reter de cor, mas não cuidam de as entender. Sem dúvida, de longe é preferível que retenham menos de memória as palavras, mas que, com os olhos do coração, aprofundem o coração delas.

Contudo, ainda superior a ambas são as outras pessoas que, ao citar as Escrituras de cor, o quanto querem, as compreendem também o quanto convém.

Proveito de falar com sabedoria e eloqüência

8. É, pois, de toda necessidade para o orador — que tem o dever de falar com sabedoria, ainda que não

consiga fazê-lo com eloqüência — ser fiel às palavras das Escrituras. Pois quanto mais ele se reconhece pobre quanto às suas próprias palavras, mais convém sentir-se rico quanto àquelas outras palavras. Justificará, desse modo, o que disser com as suas próprias palavras. Assim, quem era menor por seu próprio vocabulário crescerá pelo testemunho das magníficas palavras da Escritura. Ele agradará, certamente, ao provar com citações escriturísticas, já que pode desagradar com suas palavras pessoais.

Entretanto, o orador que desejar falar, não somente com sabedoria, mas também com eloqüência, será mais útil se puder empregar essas duas coisas. Aconselho-o — pois — a ler, a escutar, a imitar com exercícios os homens eloqüentes, com empenho maior do que lhe prescrevo seguir lições dos professores de retórica. Mas isso, sob a condição de que os oradores, que ele lê ou escuta, sejam louvados com razão, não apenas por terem discursado com eloqüência, mas principalmente com sabedoria. Com efeito, os que falam eloqüentemente são escutados com prazer e os que falam sabiamente, com proveito. É porque a Escritura diz: não é a multidão dos eloqüentes “mas a multidão dos sábios que constitui a sabedoria do universo” (Sb 6,26).

Ora, assim como é preciso, muitas vezes, tomar remédios amargos para a saúde, também é preciso evitar doçuras perniciosas. O que haverá de melhor? Uma suavidade saudável ou uma salubridade suave? (Isto é, nada de melhor do que o útil unido ao agradável). Quanto mais se procurar num discurso a suavidade mais abundantemente se tirará proveito da sua salubridade. Assim, há homens da Igreja que interpretaram os divinos oráculos não somente com sabedoria, mas também com eloqüência. O tempo não seria suficiente para os ler. Não que eles não sejam suficientes para o estudo dos que têm tempo de os ler.

CAPÍTULO 6

Os autores das Escrituras associam a sabedoria com a eloqüência

9. Aqui, alguém talvez pergunte se nossos autores sacros, cujos escritos, inspirados por Deus,

constituem para nós um cânon da mais salutar autoridade, se eles devem ser chamados somente sábios ou ainda eloqüentes.

Na verdade, essa questão para mim como para os que sentem como eu, é fácil de resolver. Porque em toda passagem que deles compreendo bem, nada me parece mais sábio nem mais eloqüente. E ouso afirmar: todo homem que compreenda suas palavras, compreende ao mesmo tempo que não lhe convinha exprimir-se de outro modo. Assim como há uma eloqüência própria à juventude e outra mais apropriada à velhice, e que a eloqüência não devia mais trazer esse nome se não estivesse de acordo com a personalidade do orador, desse modo há uma eloqüência própria a esses homens revestidos de autoridade soberana e bem divina. É com tal eloquência que eles falaram e não lhes convinha nenhuma outra e nem seria conveniente a ninguém mais. E tanto mais ela eleva-se acima da dos oradores profanos, não pela jactância, mas pela humildade e seriedade.

Por outro lado, onde eu não compreendo esses autores sagrados, sua eloqüência, por certo, me impressiona menos. Entretanto, não duvido de que ela é a mesma que nas passagens que compreendo. A própria obscuridade de nossos divinos e salutares oráculos devia estar misturada a tal eloqüência, para que nossa inteligência — pela descoberta da verdade, e por exercícios úteis — fizesse progressos

benfazejos.

Encanto da eloqüência dos hagiógrafos

10. Poderia eu, por certo, se tivesse tempo, mostrar nos livros sagrados postos à nossa disposição pela

divina Providência, para nos instruir e nos fazer passar deste século depravado ao século da bem- aventurança eterna, todas as qualidades e todos os ornamentes de eloqüência de que se orgulham os que preferem — menos pela grandeza do que pelo orgulho — a sua linguagem à de nossos autores.

O que me encanta na eloqüência de nossos hagiógrafos, mais do que poderia dizer, não são as qualidades que eles têm em comum com os oradores ou poetas pagãos. Fico tomado de admiração e espanto diante da arte com que nossos escritores, com a eloqüência que lhes é própria, usaram da eloqüência profana, de modo a lhe dar um lugar sem deixar, contudo, que ela dominasse. Não lhes convinha, com efeito, rejeitá-la, nem servir-se dela com ostentação. Se a tivessem rejeitado, por certo, ela lhes teria feito falta; mas poderiam pensar que tinham abusado dela, se fosse muito visível. Nas passagens onde a eloqüência é facilmente reconhecível pelos entendidos, os pensamentos expressos são tais que as palavras usadas não parecem ser procuradas pelo escritor, mas surgiram espontaneamente unidas às idéias. Dir-se-ia a sabedoria saindo de sua morada, isto é, do coração do sábio, e a eloqüência a segui-la como serva inseparável, ainda que sem ter sido requisitada.

B. ESTUDO DA ARTE ORATÓRIA EM TEXTOS ESCRITURÍSTICOS