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COMPETÊNCIA PARA LEGISLAR O TRANSPORTE INDIVIDUAL PRIVADO DE

As grandes cidades no Brasil, de modo geral, possuem uma legislação relativa aos serviços de táxi de interpretação corporativista e distanciada dos princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência que ocasionaram as diversas medidas judiciais e administrativas contra a Uber e seus motoristas. Há, ainda, uma intensa pressão das corporações e dos donos de frotas de táxi ligadas ao Poder Legislativo e diversos projetos de lei tramitando atualmente, assim, faz-se necessária a presente análise sobre a competência para legislar sobre o transporte individual de passageiros143.

A definição de competência proposta pela Constituição Federal delimita, em seu art. 22, inciso XI, que as diretrizes da política nacional de transporte urbano é competência privativa da União, assim como, a temática sobre trânsito e transporte. Além disso, compete à União legislar sobre informática e diretrizes da política nacional de transportes, conforme incisos IV e IX do referido dispositivo, e, ainda, o art. 21, inciso XX, disciplina ser competência da União, embora não privativamente, instituir diretrizes para o desenvolvimento e transportes urbanos144.

A atividade da Uber relaciona-se à informática, devido a plataforma digital que viabiliza uma eficiente conexão entre os consumidores, e, a dos seus motoristas, ao transporte, em razão da prestação de um serviço privado de transporte individual de passageiros145.

Assim, as competências legislativas privativas da União, excluem a de todos os demais entes federativos para tratamento das mesmas matérias, ressalvada apenas a possibilidade de delegação aos Estados, por lei complementar, da faculdade de disciplinarem questões

143 SARMENTO, Daniel. op. cit., p. 35. 144 SARMENTO, Daniel. op. cit., p. 35. 145 Ibidem, p. 35.

específicas dentre as arroladas no art. 22 da Constituição, nos termos do parágrafo único do referido preceito constitucional.

O Supremo Tribunal Federal tem-se posicionado seguindo essa linha discorrida, expondo em seus julgados que a competência constitucional dos Municípios para legislar sobre interesse local não os autoriza a estabelecer normas que veiculem matérias que a própria Constituição atribui à União ou aos Estados146. Há de se atentar para o real significado da matéria atinente à competência privativa da União quanto ao trânsito e transporte urbanos. Em entendimento contrário, Eros Grau defende que a regulação da prestação de transporte individual remunerado de passageiros no âmbito local compete ao Município, e, que, além disso, essa prestação será admissível somente quando desempenhada por um profissional taxista, conforme a lei art. 3º da lei 12.468/11147.

No entanto, da leitura dos arts. 22, IX e XI, e 21, XX, da Constituição Federal, percebe-se que este último dispositivo estabelece que é competência da União instituir “diretrizes” para os transportes urbanos; enquanto, o primeiro aponta como competência privativa legislar sobre “diretrizes da política nacional” de transportes e “trânsito e transporte”. O fato é que os transportes urbanos tratam de matéria de interesse das três esferas federativas, e, inclusive, há dispositivo expresso no texto constitucional assegurando a competência municipal para disciplinar os transportes urbanos coletivos (art. 30, V, CF/88).

Não se questiona a incidência do art. 30, V, da Constituição Federal à Uber, vez que indiscutivelmente este ostenta a prestação de serviço de transporte individual de caráter privado, mas o que não se pode negar é o interesse municipal na regulamentação dos transportes urbanos, inclusive, aqueles desempenhados de forma particular. Tanto que o Código de Trânsito Brasileiro, em seu art. 24, disciplinou inúmeras competências municipais quanto à ordenação e fiscalização do trânsito, sem contar que a própria Constituição Federal estabeleceu no art. 30, I e II, ser competente o Município para legislar sobre assuntos de interesse local e para suplementar a legislação federal e a estadual no que couber.

Neste sentido, bem explicita Hely Lopes Meirelles:

O trânsito e o tráfego são daquelas matérias que admitem a tríplice regulamentação – federal, estadual e municipal -, conforme a natureza e âmbito do assunto a prover. A dificuldade está em se fixar, com precisão, os limites da competência das três entidades estatais que concorrem na sua ordenação. Os meios de circulação e transporte interessam a todo o país, e por isso mesmo a Constituição da República reservou para a União a atribuição privativa de legislar sobre trânsito e transporte (art. 22, XI), permitindo que os Estados-membros legislem supletivamente a respeito

146 BRASIL. Ag. Reg. no RE nº 668.285. Rel. Min. Rosa Weber. Diário Oficial da União. Brasília, DF. 147 GRAU, Eros Roberto. Parecer Jurídico. Conjur. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/parecer-

da matéria, nos termos da lei complementar pertinente. (...) de um modo geral, pode- se dizer que cabe à União legislar sobre os assuntos nacionais de trânsito e transporte, ao Estado-membro compete regular e prover os aspectos regionais e a circulação intermunicipal em seu território, e ao Município cabe a ordenação do

trânsito urbano, que é de seu interesse local (CF, art. 30, I e V).148 (Grifos

acrescidos).

Também o Tribunal de Justiça de São Paulo, através de seu órgão especial, julgando a ADI 2216901-06.2015.8.26.0000, que tinha como objeto a declaração de inconstitucionalidade de lei municipal que proibia o serviço de transporte individual prestado por intermédio do aplicativo Uber, entendeu que a inconstitucionalidade da referida lei não decorria de invasão à competência legislativa privativa da União, mas sim, por violar os princípios constitucionais da livre iniciativa e da liberdade de concorrência, além do direito de escolha do consumidor149. No mencionado julgado, cita-se, por oportuno, o entendimento de Fernanda Dias Menezes de Almeida e de Geraldo Spagno Guimarães neste mesmo sentido, transcrevendo o Relator do acórdão a opinião deste último autor, nos seguintes termos, in verbis:

É fato que o artigo 22, XI, atribui à União a competência para legislar sobre trânsito e transporte, e isso se deu com a edição das Leis Federais nºs 9.503/97 e 10.233/01, respectivamente, mas a mesma Constituição cuida separadamente dos transportes urbanos como assunto de competência material do Município (art. 30, V) e, no que concerne à competência legislativa da matéria no contexto urbano, estabelece competência concorrente, atribuindo à União a tarefa de instituir diretrizes e aos Municípios a de complementar essas diretrizes especificamente para o âmbito e interesse local, este gizado pelo artigo 30, I, da CRFB. (...) por isso, é necessário um registro importante para discernir entre o que a Constituição dispõe no artigo 21, XX e no artigo 22, XI. No primeiro caso o alvo da norma é transporte como elemento do desenvolvimento urbano e, no segundo, o foco é o transporte nacional, em seus aspectos gerais sistêmico, estrutural e operacional. Assim, o Município não pode legislar sobre assuntos de transporte em geral, mas o transporte urbano há que ser organizado e regulamentado por normas municipais, porque o tema é de interesse local, sabendo-se que esse regramento deve se submeter às diretrizes instituídas pela União CRFB, 21, XX). Outro raciocínio ou leitura poderia conduzir ao entendimento equivocado de que a Lei nº 12.587/12 é inconstitucional por vício de origem e flagrante violação ao artigo 30, I da Lei Maior, ou ainda, poder-se-ia considerar improprias as regulamentações municipais que o Capítulo V da LPNMU impõe para o planejamento e a gestão do sistema de mobilidade150.

Desta feita, resulta que a competência privativa da União evidenciada no art. 22, incisos IX e XI, deve ser entendida como aquela que, efetivamente, se refira ao trânsito e transporte em seu aspecto nacional. Assim, quando constatado o interesse do município na

148 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 16ªed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 454. 149 SÃO PAULO. Tribunal de Justiça de São Paulo. Adi nº 2216901-06.2015.8.26.0000. Relator: Des. Francisco

Casconi.

150 GUIMARÃES, Geraldo Spagno. Comentários à Constituição do Brasil. Coord. científica por J. J. Gomes

Canotilho, Gilmar Ferreira Mendes, Ingo Wolfgang Sarlet e Lênio Luiz Streck. p. 93., 2013, Saraiva, apud ADI 2216901-06.2015.8.26.0000 – TJSP.

regulamentação do transporte urbano, especialmente quanto aos aspectos de organização e fiscalização no âmbito local, estaria tal ente municipal autorizado a disciplinar a matéria com fulcro no art. 30, I e II, da Constituição Federal; desde que, entretanto, não ultrapasse a competência legislativa privativa da União atinente aos aspectos gerais e nacionais do transporte urbano, não contrarie legislação federal em vigor e não se imiscua em matéria de direito civil (art. 22, I, da CF).

No caso da Uber a competência municipal estaria restrita a aspectos peculiares da prestação do serviço em face de circunstâncias e de interesses locais e de forma suplementar, sempre em consonância com a legislação federal, a exemplo das Leis nº 12.587/2012 e 12.965/2014, que tratam, respectivamente, da Política Nacional de Mobilidade Urbana e do uso da internet no Brasil; bem como em total respeito aos princípios constitucionais da livre concorrência, da livre iniciativa e ao consumidor. Nesse sentido, destaque-se o art. 12 da Lei n° 12.587/2012, que determina que o serviço de transporte individual de passageiros deverá ser organizado, disciplinado e fiscalizado pelo poder público municipal:

Art. 12. Os serviços de utilidade pública de transporte individual de passageiros deverão ser organizados, disciplinados e fiscalizados pelo poder público municipal, com base nos requisitos mínimos de segurança, de conforto, de higiene, de qualidade dos serviços e de fixação prévia dos valores máximos das tarifas a serem cobradas. (Redação dada pela Lei nº 12.865, de 2013)

Por fim, a ligação da Uber com a informática criou e mantém uma plataforma digital que viabiliza uma eficiente conexão entre consumidores e motoristas profissionais. Entretanto, a atividade fim é a prestação de um serviço privado de transporte individual de passageiros. Desse modo, indiscutíveis são as matérias que se inserem no âmbito da competência legislativa privativa da União, tendo a legislação municipal competência apenas para complementar a lei federal naquilo que for de seu interesse local, e não de a proibir151. Assim, ensina Alexandre de Moraes:

O art. 30, II, da Constituição Federal preceitua caber ao município suplementar a legislação federal e estadual, no que couber, o que não ocorria na constituição anterior, podendo o município suprir as omissões e as lacunas da legislação federal e estadual, embora não podendo contradita-las, inclusive nas matérias previstas do art. 24 da Constituição de 1988. Assim, a Constituição Federal prevê a chamada competência suplementar dos municípios, consistente na autorização de

151 Inconteste que a atividade econômica dos impetrantes é lícita, inconteste que a CRFB/88 consagra os

princípios da livre iniciativa e livre concorrência, inconteste que tais princípios claramente definem a liberdade de iniciativa e livre concorrência não como uma liberdade anárquica, porém social, e que pode, consequentemente, ser limitada pelo Estado, mas não cerceada completamente como pretendem o Decreto MRJ nº 40.518/15 e a Lei Complementar MRJ nº 159/15. (...) (6ª Vara de Fazenda Pública do Rio de Janeiro. Mandado de segurança nº 0406585- 73.2015.8.19.0001. Juíza de Direito Mônica Teixeira Ribeiro. Decisão de 08/10/2015).

regulamentar as normas legislativas federais ou estaduais, para ajustar sua execução a peculiaridades locais, sempre em concordância com aquelas e desde que presente o requisito primordial de fixação de competência desse ente federativo: interesse local152.

Em suma, o transporte individual de passageiros, reitere-se, não configura serviço público, mas atividade econômica em sentido estrito153, razão pela qual não se enquadra na competência municipal especificamente prevista no art. 30, V, da Constituição Federal. Mesmo para àqueles que entendem que o transporte individual público de passageiros é serviço público, certamente isso não vale para o transporte individual privado realizado pela Uber. Diante disso, os Estados, os municípios e o Distrito Federal não detêm competência legislativa para disciplinar a atividade econômica desenvolvida pela Uber, cuja competência é privativamente da União Federal, nos termos do art. 22, inciso XI, da Constituição.

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