• Nenhum resultado encontrado

A tributação tem sido, ao longo da história, pensada sob a ótica da fiscalidade. O Estado, por meio de tributos, deveria financiar apenas uma proteção passiva aos direitos fundamentais à liberdade e à propriedade308.

Ocorre que, como já mencionado nos capítulos anteriores, o Estado contemporâneo tem adquirido novas funções, como a de promover direitos fundamentais prestacionais, tais como educação, saúde, habitação, meio ambiente equilibrado etc., bem como a de corrigir falhas de mercado, o que exige atitudes positivas do Estado, sendo a tributação concebida como uma forma de indução de comportamentos virtuosos ou desestimuladores de comportamentos indevidos. Assim, a tributação extrafiscal tem sido compreendida como um instrumento de reforma social ou de desenvolvimento econômico, redistribuindo renda ou intervindo na economia309.

O estudo da função das normas tributárias pela dogmática jurídica tradicional limitava-se à divisão entre tributos com função preponderantemente arrecadatória ou fiscal e tributos com função preponderantemente extrafiscal. Tal classificação, segundo Vanessa Rahal Canado, ganha relevância principalmente diante da aplicação dos princípios da legalidade e da anterioridade tributárias, já que a finalidade extrafiscal de alguns tributos justificaria a existência das exceções a esses princípios310.

De acordo com a autora, a realidade é que todos os tributos podem ter efeitos fiscais e extrafiscais, pois o aumento ou a instituição de um tributo, em princípio, pode resultar não somente no comportamento de pagar tributo, mas induzir outros comportamentos. A lei tributária pode provocar atitudes diversas nos agentes do mercado; a instituição ou o aumento de um tributo com finalidade extrafiscal geram aumento de arrecadação311.

Assim, mesmo um tributo que possua finalidade fiscal pode estimular ou desestimular comportamentos nos contribuintes. Os tributos com finalidade extrafiscal também cumprem o

308

SILVEIRA, Paulo Antônio Caliendo. Tributação e ordem econômica: os tributos podem ser utilizados como instrumentos de indução econômica: In: Rev. direitos fundam. democ., v. 20, n. 20, p. 193-234, jul./dez. 2016. p. 195.

309 Ibid. 310

CANADO, Vanessa Rahal. Desenvolvimento, direito, economia, fiscalidade e extrafiscalidade: análise da natureza dos incentivos e benefícios fiscais sob uma perspectiva interdisciplinar. In: SANTI, Eurico Marcos Diniz (coord.). Tributação e desenvolvimento: homenagem ao professor Aires Barreto. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p. 818-819.

311

papel de arrecadar recursos para os cofres públicos, de modo que é possível dizer que os tributos, de modo geral, podem ter mais de uma finalidade inerente à sua essência.

Nesse mesmo sentindo, Alfredo Augusto Becker observa a coexistência de múltiplas finalidades dos tributos312. Afirma que na construção jurídica de cada tributo jamais estarão ausentes o finalismo fiscal e o extrafiscal, havendo apenas maior ou menor prevalência em um ou outro sentido, a fim de melhor estabelecer o equilíbrio econômico e social313.

Paulo Caliendo, por sua vez, ao tratar da forma como a tributação influencia o comportamento dos contribuintes, destaca o fato de que a tributação possui efeitos fiscais e extrafiscais na sociedade, os quais podem ser intencionais, como no caso da concessão de benefícios fiscais ou na tributação ecológica; ou podem ser não intencionais, já que todo tributo carrega em si uma carga de finalidade extrafiscal314.

Para o autor, é indiscutível que o simples aumento de um percentual na alíquota de um tributo, a criação de uma nova obrigação tributária ou a mudança na forma de adimplemento de uma obrigação acessória agem sobre as condutas e as expectativas de ação dos agentes econômicos, bem como na promoção dos direitos fundamentais315.

Da mesma forma, Luís Eduardo Schoueri destaca, com base nas lições de Klaus Vogel, que toda norma tributária, ao tempo que possui a função de arrecadar, também pode ter outras três funções, que podem ou não estar presentes simultaneamente: a) a função de distribuir a carga tributária, com base em critérios de justiça distributiva; b) a função indutora; e c) a função simplificadora316.

Schoueri ainda aponta como critério de distinção entre uma norma indutora e uma norma arrecadatória o seu caráter finalístico, que deve ser buscado perquirindo-se qual a finalidade do legislador ao traçar os contornos jurídicos do tributo, de modo que uma norma será considerada indutora se houver o desejo deliberado de influir na ordem econômica e social317.

312

BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 3. ed. São Paulo: Lejus, 1998. p. 597. 313

Ibid. 314

SILVEIRA, Paulo Antônio Caliendo Velloso da. Direito tributário e análise econômica do direito: uma visão crítica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. p. 100.

315 Ibid. 316

SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 27.

317

Paulo Caliendo destaca que, ao lado da tentativa estatal de corrigir falhas sociais ou de mercado, a utilização extrafiscal dos tributos pode suscitar alguns questionamentos acerca da moralidade estatal no seu uso, entre os quais o autor destaca318:

será que o Estado não poderia sofrer a captura de grupos de pressão e ao invés de produzir uma ação virtuosa transferir recursos públicos para grupos privados (fenômeno rent-seeking)? Será que o Estado não poderia ser capturado por comportamentos oportunísticos de redução de compromisso social, de entregas com base na fruição de bens públicos (dilema do carona ou free-rider)? Será que simplesmente o Estado não sabe como escolher bem, não por motivos de má-fé, mas simplesmente porque não detém todas as informações do sistema econômico (limitação informacional), acarretando mais danos do que benefícios em sua atuação?319

Estabelecer os limites constitucionais para a utilização tributação com finalismo extrafiscal é um dos problemas centrais do constitucionalismo moderno, a fim de que este instrumento de promoção econômica e social não fira a essência dos direitos que deseja preservar320.

Paulo Caliendo lembra que a possibilidade de indução econômica do Estado está prevista no art. 174 da CF/88, segundo o qual, como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado poderá exercer, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado321.

Assim sendo, é possível compreender que este dispositivo atribui ao Estado uma competência extrafiscal em matéria econômica? De acordo com Paulo Caliendo, esse comando normativo se dirige especialmente à função de planejamento, que deve ser determinante para o setor público e meramente indicativo para o setor privado.

Já no que se refere às funções de fiscalização e incentivo, segundo o autor, o texto legal adverte que estas serão realizadas na forma da lei, de modo que não há como deduzir diretamente do texto constitucional uma autorização direta para o uso de medidas de extrafiscalidade econômica, a qual deve ter autorização expressa para a sua utilização322.

Ainda de acordo com o autor, a função incentivadora dos tributos deve ser distinguida da função indutora, já que nem toda função indutora é incentivadora, podendo ela ser

318

SILVEIRA, Paulo Antônio Caliendo. Tributação e ordem econômica: os tributos podem ser utilizados como instrumentos de indução econômica: In: Rev. direitos fundam. democ., v. 20, n. 20, p. 193-234, jul./dez. 2016. p. 195. 319 Ibid. 320 Ibid. 321 Ibid., p. 208. 322 Ibid.

igualmente indutora por desincentivo a determinado comportamento, o que exige autorização constitucional e lei expressa, sob pena de ser considerada inconstitucional por falta de competência323.

Para ele, existem princípios constitucionais que devem limitar a extrafiscalidade, entre os quais destaca o princípio da segurança jurídica, o princípio da legalidade, o da anterioridade, o da periodicidade mínima e o da publicidade324.

No caso dos municípios, um exemplo claro de como o exercício das competências tributárias pode, a partir de sua finalidade extrafiscal, induzir comportamentos e, deliberadamente, influir no desenvolvimento local, dá-se quando o município elabora uma lei reduzindo alíquotas de ISSQN com o intuito de atrair empresas prestadoras de serviços para atender às demandas locais e movimentar a economia; ou quando, a partir de uma utilização extrafiscal do IPTU, resolve promover o desenvolvimento e a ocupação de bairros distantes e pouco habitados.

No que diz respeito ao IPTU, por exemplo, é possível a administração pública promover a desocupação de determinada região da cidade já congestionada e caótica, a preservação e a recuperação de prédios antigos mediante seu uso para atividades de natureza empresarial, o uso racional do solo e do subsolo em áreas mais problemáticas, a redução da poluição no centro da cidade e o congestionamento no trânsito mediante estímulos para que as indústrias se localizem em bairros mais afastados325.

Outra questão que precisa ser destacada é que o exercício do poder de tributar municipal não deve ser confundido com o aumento da carga tributária, mas deve ser compreendido como o manejo de instrumentos tributários que viabilizem o desenvolvimento local, a partir de um exercício da competência tributária municipal voltado para a melhoria das condições sociais, estruturais e econômicas de uma localidade, com respeito aos limites constitucionais ao poder de tributar, necessário para garantir não somente os direitos dos contribuintes, mas os direitos fundamentais como um todo.

É o caso do uso da extrafiscalidade com objetivos de natureza econômica e sustentável mediante a criação de sistemas e mecanismos próprios dentro da legislação municipal. Nesse

323

SILVEIRA, Paulo Antônio Caliendo. Tributação e ordem econômica: os tributos podem ser utilizados como instrumentos de indução econômica: In: Rev. direitos fundam. democ., v. 20, n. 20, p. 193-234, jul./dez. 2016. p. 208.

324

Ibid., p. 217. 325

BERTI. Flávio de Azambuja. Impostos: extrafiscalidade e não confisco. 1. ed. Curutiba: Juruá, 2004. p. 114-115.

sentido, Flávio de Azambuja Berti traz exemplo bastante elucidativo da utilização dos tributos como instrumento de política econômica e urbana:

Um município qualquer enfrenta graves problemas resultantes da presença de indústrias cujas sedes estão localizadas próximas à sua região central, problemas esses expressos sob a forma de congestionamentos pesados à vista dos inúmeros caminhões que chegam e que deixam as fábricas, poluição crescente, dificuldades na prestação de serviços de transporte em face do grande número de trabalhadores que se dirigem à mesma região da cidade nos horários de pico e falta de espaço físico para instalação de serviços e centros de comércio nas regiões centrais, tais como restaurantes, lanchonetes, bancos, estacionamentos, prédios de escritórios etc., em face das imensas áreas ocupadas pelas indústrias em questão. De outro lado, há bairros mais afastados que também sofrem de problemas econômicos, dada a inexistência de centros de comércio e serviços que possam empregar os habitantes, os quais precisam percorrer grandes distâncias, utilizar duas ou até três linhas de transporte coletivo, agravando ainda mais os problemas de transporte rodoviário local e o trânsito de ônibus e automóveis que se dirigem à região central da cidade. Em constatando tais problemas, o Poder Público dispõe de um importante instrumento de política econômica e urbana para reduzir as referidas dificuldades: a utilização do IPTU com fins extrafiscais326.

Ainda quanto ao uso da extrafiscalidade como técnica a ser utilizada pela política tributária municipal como instrumento para estimular o desenvolvimento local, é importante destacar que a autonomia municipal, incluindo a autonomia para instituir e arrecadar tributos, deve ser exercida observando de modo sistemático o conjunto de normas trazidas pela Constituição Federal, o que impõe a proteção a todas as dimensões de direitos fundamentais.

5.2 Instrumentos Tributários Previstos no Estatuto da Cidade para Impulsionar o