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COMPETÊNCIAS E CONTEXTOS DE SAÚDE / DOENÇA

PARTE I – ENFERMAGEM, PRÁTICAS CLÍNICAS E FORMAÇÃO

2. ENFERMAGEM, CONTEXTOS E PRÁTICAS

2.3. COMPETÊNCIAS E CONTEXTOS DE SAÚDE / DOENÇA

“Cabe a cada indivíduo construir e definir as suas competências.

Tem de saber usar os seus recursos”

Hesbeen (2001, p. 73)

Como já tivemos oportunidade de mencionar, a profissão de enfermagem entrou neste século detentora de um processo evolutivo considerável a nível da formação, demarcando-se do ascendente médico, adquirindo uma formação superior e sustentando a sua prática em estudos de investigação.

No contexto nacional o processo traduz-se fundamentalmente pela integração no ensino superior e formação de base para o nível da licenciatura; possui o REPE que regulamenta o exercício profissional, a Ordem dos Enfermeiros que é responsável pelo desenvolvimento, regulamentação e controlo da formação e do exercício profissional; existem diversas associações profissionais e sindicatos cujo objectivo é defender os interesses dos seus associados.

Face a isto, tanto a população como os próprios enfermeiros exigem que sejam prestados cuidados cada vez mais de excelência. Importa, pois, ter em conta alguns aspectos formais da regulação do exercício profissional dos enfermeiros, dos quais destacamos os referidos no artigo 8º - Exercício profissional dos enfermeiros:

“1- No exercício das suas funções, os enfermeiros deverão adoptar uma conduta

responsável e ética e actuar no respeito pelos direitos e interesses, legalmente protegidos, dos cidadãos.

2- O exercício da actividade profissional dos enfermeiros tem como objectivos fundamentais a promoção da saúde, a prevenção da doença, o tratamento, a reabilitação e a reinserção social.

3- Os enfermeiros têm uma actuação de complementaridade funcional relativamente aos demais profissionais de saúde, mas dotado de idêntico nível de dignidade e autonomia o exercício profissional” (Ordem dos Enfermeiros, 2003, p. 6-7).

Para isso, os enfermeiros têm que ser mais qualificados e competentes. Mas ser qualificado não significa que se é competente, e vice-versa. Efectivamente, existem diferenças entre os dois conceitos.

Canário (1999) refere-se à qualificação como um termo que está directamente relacionado com a obtenção de graus e títulos, certificados e diplomas, obtidos no percurso de formação formal, que comprovam a capacidade de alguém para desempenhar funções específicas. Portanto, ter uma qualificação não é sinónimo de ser competente. Enquanto as qualificações dizem respeito essencialmente à formação formal, as competências vão-se construindo ao longo da vida.

Para Pires (1995), as competências são o conjunto de saberes ligados à formação inicial de base e à experiência, adquiridas empiricamente e de forma não sistematizada ao longo do tempo, que se manifestam em situações concretas de trabalho. Sveiby (1997) citado por Bemfica e Borges (1999) utiliza o termo atribuindo-lhe um significado algo abrangente. Para os autores, a “competência não seria passível de ser copiada, mas sim

transferida pela prática” e “cada indivíduo desenvolveria a sua própria competência com treinamento e pelas suas práticas” (p. 235). Na sua óptica, seriam cinco os elementos

constituintes:

 conhecimento explícito – conhecimento dos factos, adquirido essencialmente pela educação formal;

 habilidade – a arte de saber fazer, que envolve a proficiência prática e que é adquirida através dela e do treino;

 experiência – que decorre da reflexão sobre a acção;

 julgamentos de valor – percepções consideradas correctas e que actuam como filtros “conscientes e inconscientes” no processo de saber individual;

 rede social – constituída pelas relações com os outros no interior de um ambiente e de uma cultura transmitidos pela tradição.

Mais do que saber, saber fazer ou saber ser, um indivíduo é competente se possuir uma característica que lhe permite tornar a qualificação eficiente e actualizá-la face a uma determinada situação de trabalho.

A noção de contexto de trabalho como local privilegiado da aprendizagem ressalta mais uma vez; é aí que os saberes formalizados se confrontam com a prática e que os saberes práticos se formalizam com base numa transacção, constante e inacabada, entre essoa, situação de trabalho e instituição. Costa (1997), reportando-se a Malglaive, fala-nos num ciclo recursivo onde se articulam o momento de fazer (saber investido na acção) e o momento cognitivo (o que já é conhecido na prática (re)elabora-se a um nível superior de formação). No decorrer deste ciclo, “o tempo e a forma reportam-nos às incertezas da

prática que resistem à rotina e às qualidades do profissional que se implicam na forma como executa” (p. 10).

A nível da profissão de enfermagem, as competências necessárias para o seu exercício são “mais amplas do que as competências exclusivamente técnicas” sendo, por isso, útil a sua identificação (Costa, 1997, p. 10). Correia (1993), referido pela mesma autora, classifica-as da seguinte forma: as de domínio técnico-científico (onde se dá importância à relação com o instrumento de trabalho) e as de domínio sócio-relacional (que incidem na relação com os outros agentes de trabalho). Evoca competências específicas, tais como:

 “profissionais – onde o agir mobiliza saberes técnicos e da experiência em

processos indutivos;

 técnicas – mais relacionadas com o ensino formalizado: ciência e técnica;  polifuncionais – como capacidade de intervir em actividades com

finalidades diferenciadas” (Costa, 1997, p. 11).

O enfermeiro competente é aquele que, na mutabilidade e imprevisibilidade do contexto de trabalho, sabe agir; e, para isso acontecer, tem a consciência da necessidade de aprender ao longo de toda a vida.

Martinho (2004), num estudo multicasos em contexto psiquiátrico e de saúde mental, agrupa as competências que todos os enfermeiros devem possuir:

 competências profissionais ou conhecimentos de base, adquiridos principalmente nos sistemas formais de formação e educação;

 competências técnicas, que podem ser adquiridas quer nos sistemas educativos quer nas organizações, estando directamente associadas à profissão;

 competências pessoais, como a capacidade de aprendizagem e de adaptação à mudança, flexibilidade e polivalência funcional;

 competências relacionais, ou seja, do domínio das relações interpessoais e dos processos psicossociais envolvidos no funcionamentos dos grupos e das equipas;

 competências do contexto, que se caracterizam por não existirem por si só, estando por isso situadas em relação a um problema particular, num contexto específico.

Machado (2000, p. 22) considera que um enfermeiro competente no século XXI deve demonstrar “capacidade de comunicação, de trabalho em equipa, de autonomia, de

responsabilidade, de decisão, de criatividade, de animação de grupos, de liderança, de trabalhar por projectos, de assumir riscos, de garantir resultados (…) [de se adaptar] a novos contextos que vão ser necessariamente diferentes dos contextos em que desempenhamos as nossas funções hoje”. O enfermeiro competente deve exercer

plenamente a cidadania; como um dos actores mais importantes na área da saúde, deve ser capaz de tornar visível o seu trabalho, mostrando os ganhos em saúde resultantes das suas intervenções autónomas.

Como resposta aos desafios impostos pela sociedade de hoje, nomeadamente no que concerne à evolução científica e tecnológica e à globalização, exige-se uma (re)adaptação contínua das competências, uma aprendizagem ao longo da vida e uma capacidade de desenvolver, transformar e transmitir novos conhecimentos, de os valorizar através das tecnologias da informação e da comunicação.

Machado (2000) destaca como desafios que se colocam aos enfermeiros, os seguintes:

 A sociedade de informação – uma competência fundamental do enfermeiro é o domínio das novas tecnologias, quer para a sua formação contínua, quer para a comunicação com os seus pares, outros profissionais e até com os utentes.

 Alteração do cenário dos cuidados – as alterações demográficas, o aparecimento constante de equipamentos cada vez mais sofisticados e a especialização dos

profissionais de saúde conduzem à criação de hospitais de agudos onde o doente permanece durante o menor tempo possível. Torna-se necessária a articulação entre hospital e comunidade, sendo a prestação de cuidados centrada na família/comunidade. Aos enfermeiros exige-se a capacidade de prestar cuidados em conjunto com as pessoas e grupos inseridos na comunidade, no seu ambiente, na medida em que o hospital será uma experiência curta e transitória na vida dos utentes.  Orientação para a prática na comunidade – o enfermeiro, ao intervir de uma

forma mais efectiva na comunidade, vai ser mais autónomo, polivalente e flexível. Em conjunto com outros membros da equipa interdisciplinar, irá proporcionar aos clientes cuidados holísticos e integrados, centrados no indivíduo e na família, onde será privilegiada a avaliação das necessidades e o direito à decisão informada.

 Novos problemas de saúde – o envelhecimento da população, as doenças crónicas, as doenças relacionadas com os estilos de vida, a SIDA/HIV, a toxicodependência, a exclusão social e a multiculturalidade são alguns dos problemas que subsistem na nossa sociedade. Para delinear e planear a sua intervenção, o enfermeiro tem que adquirir conhecimentos e competências sobre estas problemáticas, planeando novas intervenções que possam responder às necessidades da população.

 Os direitos e os deveres dos cidadãos – o enfermeiro deve ter sempre em consideração a Carta dos Direitos e Deveres dos Doentes e o Código Deontológico dos Enfermeiros – Decreto Lei nº 104/98 de 21 de Abril.

 Classificação Internacional para a Prática de Enfermagem (CIPE) – com o objectivo de proporcionar uma descrição da prática de enfermagem e das suas contribuições para a saúde, o ICNP (International Council of Nursing Practice) propôs a elaboração de um instrumento indispensável em todos os domínios da prática de enfermagem. A CIPE vem dar resposta à necessidade de uniformização dos sistemas de classificação para o cuidar em enfermagem, dos sistemas de controlo de informações e do conjunto de dados sobre enfermagem. A nível nacional, existe já a versão traduzida Beta 2 e inicia-se a introdução duma outra versão readaptada.  Qualidade – “na senda da excelência do cuidar em enfermagem” os enfermeiros

devem ter em conta, na sua prática, não só as bases científicas para a justificarem como também uma auto reflexão crítica sobre as suas experiências e as dos outros.

 Bioética – apesar das constantes e desenfreadas inovações no domínio técnico da medicina é importante não esquecer o humanismo. Independentemente dos dilemas éticos com que se vai deparando, a intervenção dos enfermeiros tem que valorizar a relação interpessoal e a individualidade de cada ser humano.

A Ordem dos Enfermeiros, nomeadamente o Conselho de Enfermagem, contribuiu de forma indelével para a acreditação da formação graduada e pós graduada e para a certificação de competências do enfermeiro de cuidados gerais capazes de dar resposta a estes desafios. Neste sentido, realizou um estudo a nível nacional, que teve inicio em 2001, onde foi feita a análise de literatura sobre o tema, a elaboração de documentos de trabalho que tiveram por base os resultados de workshops realizados pelo país e a utilização da técnica Delphi. Foi aprovada a seguinte definição de competências do enfermeiro de cuidados gerais: “A competência do enfermeiro de cuidados gerais refere um nível de

desempenho profissional demonstrador de uma aplicação efectiva do conhecimento e das capacidades, incluindo ajuizar” (Ordem dos Enfermeiros, 2003, p. 16). Os domínios que

elas abrangem são três: a prática profissional, ética e legal (responsabilidade, prática segundo a ética, prática legal), a prestação e gestão dos cuidados (prestação de cuidados – promoção da saúde, colheita de dados, planeamento, execução, avaliação, comunicação e relações interpessoais – e gestão de cuidados – ambiente seguro, cuidados de saúde interprofissionais, delegação e supervisão) e o desenvolvimento profissional (valorização profissional, melhoria da qualidade e formação contínua).

Assumimos que, no âmbito da enfermagem, para se ser competente, mais do que ter um ou muitos diplomas, mais do que não ter ou ter muitos graus académicos, é preciso mobilizar as qualidades pessoais, experiências, conhecimento, saberes-fazer, novas tecnologias de informação, ou seja, é fazer tudo para fazer melhor.