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3.1 O Status Semiótico do Jogo

3.1.3 Complementaridades

Destacadas as analogias e especiicidades entre os dois construtos, podemos procurar as relações que os articulam.

Em Vygotsky (1989a) e Wallon (1968), o jogo, enquanto ligado à ação, e a linguagem, enquanto ligada à palavra, podem ser tomados como uma relação na qual a ação precede gené- tica e funcionalmente a palavra.

Vygotsky compreende o jogo como a pré-história da linguagem escrita, situando-o numa modalidade semiótica anteri or ao desenho.

Wallon (1968, p. 160), por sua vez, airma que os sím- bolos derivam dos atos, através dos quais se opera a passage m da coisa à imagem. “O gesto, depois de ter sido complemen- to da coisa a modiicar, tornou-se complemento da coisa a exprimir.” Para ele, na criança pequena, a palavra ainda está absorvida na coisa e a enunciação é um eco que se acrescenta ao ato, à percepção ou à imagem e, por isso, ainda não tem força para dirigir o pensamento.

Tal ideia supõe que a linguagem verbal terá posterior- mente um outro papel, o de dirigir o pensamento, logo o de subjugar as funções cognitivas que lhe precederam. Nesse caso, temos uma relação hierárquica entre as duas.

Entretanto, para Bakhtin (1995), ação e palavra se colocam em relação de complementaridade necessária à compre en são do sentido.

A situação e o auditório obrigam o discurso interior a realizar-se em uma expressão exterior deinida, que se insere diretamente no contexto não verbalizado da vida corrente, e nele se amplia pela ação, pelo gesto ou pela resposta verbal dos outros participantes na situa- ção de enunciação. Uma questão completa, a excla- mação, a ordem, o pedido são enunciações completas típicas da vida corrente. Todas (particularmente as ordens, os pedidos) exigem um complemento extra- -verbal assim como um início não verbal. Esses tipos de discursos menores da vida cotidiana são modela- dos pela fricção da palavra contra o meio extra-ver-

bal e contra a palavra do outro (BAKHTIN, 1995, p. 125, grifo nosso).

Podemos, então, pensar a possibilidade de a palavra apoiar a ação, antecipando-a, classiicando-a ou organizan- do-a, como se observa na brincadeira, assim como o gesto, a situação ou o tom emocional da voz podem deinir o sentido de uma mesma palavra em diferentes momentos.

Estando deinido que a situação é de brincadeira, as pa- lavras passarão a adquirir um outro valor diferente daquele que assumem numa situação real. Se uma criança diz a outra criança: “Seu monstro, você vai morrer!”, numa brincadeira de luta, o efeito sobre o interlocutor é completamente diferente daquele produzido numa situação de briga.

Por im, é possível pensar a relação interdiscursiva entre as semioses do jogo e as formas ordinárias de linguagem verbal.

Resumindo, a despeito das particularidades presentes nos modos de simbolização da linguagem e da brincadeira, é possível considerá-las como modalidades semióticas soli- dárias, solidariedade essa apoiada na complementaridade de suas diferenças.

Tal hipótese vai de encontro às posições dominantes na psicologia, que postulam uma hierarquização das funções cognitivas, em cujo patamar mais alto estaria a linguagem verbal. Vejamos o lugar da linguagem no âmbito da psicolo- gia do desenvolvimento.

Lier-De Vitto (1998), ao tratar dos monólogos da crian- ça, assinala os limites do interacionismo piagetiano e da con- cepção de linguagem adotada pela psicolinguística, airmando que, ao postular a independência (paralelismo) entre ações individuais (cognitivas) e coletivas (social), Piaget acaba su- bordinando as últimas às primeiras.

Em consequência, a linguagem, a mais social das práti- cas sociais, ica relegada ao papel secundário de instrumento do pensamento. A noção empiricista de monólogo, adotada por Piaget, denuncia o impossível constructo de uma manifes- tação linguística destituída do caráter social.

O desinteresse pela linguagem já aqui se anuncia. Ai- nal, sua presença na voz da criança é posterior ao perío- do sensório-motor. Mas, seria ela, após suas primeiras ocorrências, indício de socialização? Em Piaget, sim e não. Sim, porque falar implica “fazer como o outro faz”. Não, porque esse falar não é dirigido ao outro e, prin- cipalmente, porque “esse fazer” é governado pelas pos- sibilidades cognitivas do sujeito. Insisto, como pensar

a ‘solidariedade’ entre subjetivação e objetivação nesse quadro? (LIER-DE VITTO, 1998, p. 48).

A autora atribui à tese de que as operações originaria- mente estariam aquém e além da linguagem um compromisso com as raízes acadêmicas do pensamento piagetiano, a biologia, o que implica uma decisão metodológica que colo ca a linguagem à margem do conceito de interação e, em consequên cia, fora do foco de análise dos dados empíricos.

Ao contrário de Piaget (1986a), Vygotsky (1989a) recusa uma compreensão do desenvolvimento que coloque os proces- sos psicológicos especiicamente humanos em continuidade com os processos biológicos inferiores. O elemento genético dessa ruptura é a linguagem, que coloca o ser humano desde o início de seu desenvolvimento em um meio não apenas mate- rial, mas sobretudo simbólico.

Por outro lado, sendo a consciência uma estrutura de signiicação, é de material semiótico que ela é constituída.

Em outras palavras, a linguagem, entendida como tra- balho social das gerações, é o meio que recepciona o futuro su- jeito humano, que, entretanto, só se constituirá como tal pelo trabalho de apropriação desse produto cultural, trabalho esse que é o próprio movimento de constituição do sujeito e que se dá na relação com seus pares da espécie humana.

Aqui a interação tem valor de radicalidade, posto que a emergência do psicológico não pode ser concebida sem sua interferência, a qual é constitutivamente social, no sentido de signiicações compartilhadas.

A linguagem, nesse caso, não vai encontrar sua origem numa suposta base biológica, mas na materialidade da vida so- cial. É o trabalho humano, que exige o uso de instrumentos e

a comunicação, incluindo as formas precursoras da linguagem verbal, que levará à criação dos instrumentos simbólicos.

O uso desses instrumentos simbólicos, porém, possibi- lita um salto no modo de funcionamento cognitivo ou a emer- gência de processos psicológicos superiores, uma vez que, enquanto o uso de instrumentos materiais possibilita, pela ampliação da capacidade física, um modo mais eicaz de li- dar com a realidade externa, o uso de instrumentos simbólicos atua sobre os processos internos, introduzindo um mediador entre o estímulo e a ação.

Ambos são ampliicadores culturais,9 mas o segundo in-

corpora-se ao aparato cognitivo, modiicando sua forma de fun- cionamento, enquanto o primeiro permanece exterior ao sujeito.

O momento de maior signiicado no curso do desen- volvimento intelectual, que dá origem às formas tipi- camente humanas de inteligência prática e abstrata, acontece quando a fala e a atividade prática, até então duas linhas independentes de desenvolvimento, con- vergem (VYGOSTKY, 1989a, p. 2).

A linguagem e o pensamento operariam de forma inde- pendente até esse momento, a partir do qual o pensamento se tornaria verbal e a linguagem, intelectual. A fala egocêntrica é o elo genético que une esses dois processos, criando uma nova função, a função de organizador interno da conduta nos mol- des da linguagem socializada. Esse é o princípio da internali- zação, ou lei do desenvolvimento: todo processo intrapessoal (cognitivo) é inicialmente interpessoal (comunicativo).

9 São todos os artefatos produzidos pelo homem com a inalidade de transpor as

barreiras impostas pelas limitações de ordem biológica que possibilitam elevar certas atividades a um patamar superior. Por exemplo, computador, telefone, óculos, a linguagem oral e escrita etc.

Lier-De Vitto (1998) chama a atenção para o fato de que, apesar de tentar recuperar o papel da linguagem, logo, do so- cial, na psicogênese, Vygotsky repõe as dicotomias que separam a linguagem do social. Quando invoca uma fala pré-intelectual supõe uma função comunicativa, porém não social, e quando invoca um pensamento pré-verbal supõe um elemento cogni- tivo fora da linguagem.

Igualmente assume que o interno preexiste ao social, conforme atesta a independência das linhas ontogenéticas primitivas.

Como resultado da internalização, as formas culturais de comportamento serão reconstruídas internamente pela media - ção do signo. Por im, embora Vygotsky assuma uma visão dialógica da linguagem, o sujeito se reduz a uma instância de controle e a linguagem a um instrumento.

Vê-se que, neste quadro, as coisas se complicam para quem pretende destinar à linguagem um papel estru- turante. Se há aquisições e organizações anteriores e externas ao domínio do lingüístico, sua função não ul- trapassará a de um regulador e, diga-se, de um regula- dor regulado. “Estruturante” talvez deva ser entendido como aquilo que põe em ordem, que estrutura algo que já tem existência [...]. Vygotsky procura afastar o empi- rismo implicado em sua história natural, introduzindo a mediação na/da história cultural e seu instrumento principal com “ação reversa”: a linguagem. “Ação re- versa” por causa da internalização: de instrumento externo ela passa a instrumento interno. É isto que a fala egocêntrica é chamada a explicitar. Com a inter- nalização, o direcionamento da ação passa a icar sob o controle do sujeito (LIER-DE VITTO, 1998, p. 71).

Em resumo, a autora pergunta: como conciliar a hipótese de uma ruptura dos processos psicológicos superiores com os inferiores, se o social não estiver desde o início como elemento de determinação?

O interacionismo piagetiano se ressentiria de um enclau- suramento no mundo interno (sujeito), origem e suporte da interação. O social é assimilado em função da evolução interna, que gradativamente se abre à objetividade.

Por outro lado, no interacionismo de tipo vygotskiano, o social é invocado como elemento estruturador do psiquismo.

Nos dois autores, ainda podemos pressupor uma noção de sujeito que se constrói para exercer o controle voluntário dos processos psicológicos.

Essa ideia, como veremos mais adiante, constitui uma limitação de ambas as abordagens. Lier-De Vitto (1998), de- tendo-se sobre esse modo de conceber o sujeito, procura su- perar essa limitação trazendo para o cerne do debate sobre a aquisição da linguagem o reposicionamento do problema da emergência do sujeito clivado, aquele cuja unidade é ilusória, condição que a linguagem atesta em suas manifestações.

Para uma elaboração mais explícita do caráter interativo da linguagem vejamos como esse aspecto é tratado em Bakhtin.