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3.1 O Status Semiótico do Jogo

3.1.2 Especiicidades

Depois de apontar a natureza simbólica e o papel no de- senvolvimento como aspectos aproximativos do fenômeno da

linguagem e da brincadeira, necessário se faz traçar os aspec- tos que diferenciam as duas atividades.

Embora sejam modalidades de representação que fran- queiam o acesso a formas mais abstratas de funcionamento do psiquismo, como os processos lógico-dedutivos, os dois fenô- menos situam-se em níveis semióticos diversos.

Retomando a comparação anterior, ainda que em ambos haja uma realidade X representada por um signiicante Y, na brincadeira essa relação é de tipo analógico,8 enquanto na lin-

guagem essa relação é arbitrária.

Ainda que o termo brinquedo deva ser distinguido do termo brincadeira, uma vez que o primeiro é o suporte mediador sobre o qual pode se sustentar a última, essa relação não é apenas instru- mental, pois o brinquedo pertence à categoria de objetos semióti- cos complexos. Brougère (1995) o deine como um objeto extremo. Com a expressão quer designar o caráter especial da relação que no brinquedo se estabelece entre o simbólico e o material.

Na maior parte dos objetos, pode-se, segundo o autor, distinguir uma função e um valor simbólico. Por exemplo, uma caneta tem a função de ser instrumento de escrita, mas a ela pode ser agregado um valor simbólico dado pela marca, pelo uso por uma personalidade famosa, por um design mo- derno, clássico, popular etc. Nos objetos em geral, é variável o predomínio de um aspecto sobre o outro, por vezes, no mesmo objeto. Na obra de arte, o valor simbólico predomina sobre a função, embora também possa ser considerado um investi- mento inanceiro e, nesse caso, a equação se inverte.

8 A relação analógica supõe alguma semelhança entre o representante, por exem-

plo, uma boneca, e o representado, um bebê. Na relação digital, ao contrário, a liga ção entre representante e representado é arbitrariamente convencionada, como é, por exemplo, a relação entre um bebê e a palavra bebê.

No brinquedo, a função consiste em ser um símbolo. Uma boneca serve para representar um bebê ou uma mulher, por exemplo. Embora qualquer objeto tridimensional possa servir de suporte físico para uma brincadeira, o brinquedo, aquele especialmente produzido para o uso da criança, a des- peito de sua necessária materialidade, é apenas um fornecedor de representações manipuláveis.

Com seu valor expressivo, o brinquedo estimula a brincadeira ao abrir possibilidades de ações coe rentes com a representação. Pelo fato de representar um bebê, uma boneca-bebê desperta atos de carinho e de cui- dados ligados à maternagem. Porém, não existe no brinquedo uma função de maternagem, há uma repre- sentação que convida a essa atividade num fundo de signiicação (bebê) dada ao objeto num meio social de referência (BROUGÈRE, 1995, p. 15-16).

A brincadeira, por sua vez, também é uma atividade cuja complexidade nem sempre pode ser percebida a olho nu. Para Vygotsky (1989a, p. 113), o brincar é uma atividade paradoxal, na medida em que “a criança opera com um signiicado aliena- do numa situação real”. Permite assim a possibilidade de distin- ção entre signiicante e signiicado: aquilo que é necessário para que um objeto (lençol) possa perder sua função real (objeto de cama) para assumir um valor simbólico ou iccional (fantasma).

Ela é, assim, um compromisso entre o real e a fantasia, pois, mesmo que altere o signiicado do objeto, seus traços de realidade devem ser levados em conta para que a atividade alcan ce condições de realização. Uma agulha, por exemplo, não serve como suporte, para a criança pequena, da atividade de brincar de fantasma, uma vez que não permite o exercício da ação para representá-lo. Nesse caso, a criança pode preferir

usar a voz como suporte mais adequado. Ainda assim, o real é convocado (a voz é real), seu signiicado é que é ictício.

Como já vimos a propósito da relação entre uma rea- lidade X e sua representação Y, essa relação varia conforme a natureza da modalidade de representação em causa, po dendo ser uma relação de semelhança ou uma relação arbitraria- mente convencionada entre representante e representado.

No nosso caso, tanto na linguagem como na brin ca dei- ra, temos uma realidade X, como uma situação da vida coti- diana, um desaio entre equipes ou uma realidade conceitual, representada por Y, que pode ser uma situação de faz de conta, objeto substituto ou um signiicante sonoro ou gráico.

No entanto, no que se refere ao signo linguístico, o cri- tério deinidor de sua especiicidade é a dupla articulação. A primeira articulação é entre as unidades signiicativas, os con- ceitos, e a segunda entre as unidades distintivas do sistema, os fonemas. Porém, isso não quer dizer que a signiicação apro- xima apenas dois termos unilaterais, pois o signo é ao mesmo tempo termo (exteriormente) e relação (internamente) e essa relação não é de identidade, mas de equivalência.

A linguagem verbal, portanto, é um sistema de se gunda ordem, ou seja, temos o signiicante, a imagem acústica ou seu correspondente gráico, que representa um conceito, o signiicado, que, por sua vez, recorta a realidade sob a forma de uma abstração.

É uma arbitrariedade convencionada por determinada comunidade linguística para a qual as marcas sonoras da pala- vra livro, por exemplo, representam um determinado conceito que designa uma classe de objetos que possuem certas carac- terísticas comuns. A partir dessa convenção, e por essa marca, tais objetos serão signiicados.

Na brincadeira essa ligação pode ou não ser con tratual e, mesmo nesse caso, sua estabilidade pode ser contestada. Como já foi referido, uma boneca convencionalmente sig- nifica um bebê, porém, na brincadeira, pode assumir outras significações.

Entretanto, isso não quer dizer ausência de qualquer cri- tério para objetos e ações substitutivas. Como já foi assinalado, na brincadeira, a escolha dos objetos ou ações obedece ao cri- tério de adequação dos mesmos à ação que se quer representar. Por exemplo, uma estrela na roupa pode ser suiciente para identiicar alguém como o xerife. Na ausência desse objeto, os gestos (captura), a voz (ordem de prisão) podem permitir a identiicação do xerife. Uma garrafa plástica de refrigerante pode representar um bebê melhor do que uma boneca muito pequenina, posto que se pode aninhá-la nos braços, ainda que em termos de imagem daquilo que se quer representar seja o inverso. Uma mesma boneca pode ora ser alimentada, como se faria com um bebê, ora pode ser maquiada, como se faria com uma mulher adulta.

A obediência a esse critério é o que permite a “leitu- ra” do tema da brincadeira por seus integrantes, a despeito da arbitrariedade incessante, e, portanto, uma metacomunicação que garante a partilha do sentido entre os brincantes.

Nesse caso, o componente contratual não reside na natu reza do signiicante em si, mas na intervenção da “função do real”, pois o que faz brinquedos e brincadeiras permutáveis é o fato de representarem uma instância fora do real. Em ou- tras palavras, o que deine que uma atividade é brincadeira é o fato de que alguém lhe atribuiu um sentido iccional. Como não existe, nesse caso, um sistema formal convencionado, tal qual a língua, a partilha de sentido é contingencial e requer

dos parceiros o estabelecimento de diversos códigos apoiados tanto na palavra como na ação.

Certamente, a brincadeira guarda especiicidades em rela ção ao tipo de simbolismo presente na linguagem verbal, a mais importante das quais talvez seja a de não permitir algo da ordem da linguagem interior. A linguagem verbal possui ainda a capacidade de autorreferir-se. É, assim, a única linguagem entre os sistemas semióticos que pode metacomunicar usando seu próprio sistema, ou seja, a língua.

A brincadeira infantil, diferentemente da linguagem verbal, é uma modalidade semiótica complexa, uma vez que o processamento cognitivo se dá na ação aberta, que dirige o processo interno ao mesmo tempo que o expressa ou externa- liza. Logo, exige uma ação externalizável ou um suporte ma- terial externo e em geral não se submete a ensaio, uma vez que seu desenvolvimento está sujeito ao inusitado. Contudo, esses componentes, inclusive o inusitado, só podem emergir mediante uma linguagem que os torne passíveis de ser capta- dos enquanto tais.

Podemos dizer, então, que se trata de um complexo de modalidades semióticas ou ato plurissemiótico, dentro do qual a linguagem verbal pode exercer uma função metadis- cursiva, na medida em que pode fazer referência à própria prática discursiva lúdica.

Resumindo, a brincadeira e o brinquedo usam um modo de representação analógico que apresenta a particulari- dade de exigir que a analogia se dê entre a ação ou o objeto e o sentido iccional que se quer com um deles representar, não existindo uma convenção prévia e estável para essa relação, ao passo que a linguagem verbal é um modo de represen- tação digital que supõe o estabelecimento de um contrato

inicial arbitrário que se torna, a partir daí, convencional e, enquanto tal, necessário à comunicação entre os usuários do sistema.

Roza (1993), tentando essa mesma aproximação, faz uma elucidativa comparação entre a linguagem cinematográ- ica e a brincadeira, airmando que em ambas estão presentes o caráter iccional, para o que a montagem de planos e sequên- cias provoca um efeito de sentido que não é obtido por seus elementos isolados, mas pelo recurso a diferentes modalidades comunicativas, tais como gestos, imagem, sons etc., e a irredu- tibilidade a categorias gramaticais, sintáticas e lógicas.