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O Discurso Sociológico: o Brincar como

O primeiro trabalho importante nesse domínio, o Homo ludens, do holandês Huizinga, edição original datada de 1938, atribui ao jogo um papel civilizatório, ou seja, as realizações hu-

manas no campo do direito, da ciência, da poesia, da ilosoia, das artes etc. teriam se desenvolvido graças ao espírito lúdico.

No decurso da evolução de uma cultura, quer pro- gredindo quer regredindo, a relação original por nós deinida entre jogo e não-jogo não permanece imutá- vel. Regra geral, o elemento lúdico vai gradualmente passando para segundo plano, sendo sua maior parte absorvida pela esfera do sagrado. O restante cristali- za-se sob a forma de saber: folclore, poesia, ilosoia, e as diversas formas da vida jurídica e política. Fica assim completa mente oculto por detrás dos fenôme- nos culturais o elemento lúdico original. Mas é sem- pre possível que a qualquer momento, mesmo nas civilizações mais desenvolvidas, o “instinto” lúdico se reairme em sua plenitude, mergulhando o indiví- duo e a massa na intoxicação de um jogo gigantesco (HUIZINGA, 1996, p. 54).

Conforme Benveniste (1947) já apontou, o problema dessa concepção é que compromete a especiicidade da noção de jogo, uma vez que toda atividade humana submetida a re- gras se confundiria com jogo.

Por outro lado, se o jogo é a origem da cultura, ele se encontra noutro plano, nesse caso, num suposto “instinto lú- dico”, o que leva Huizinga (1996) a levantar a hipótese do de- clínio do jogo na cultura contemporânea, na qual a produção de necessidades distancia cada vez mais os homens de suas necessidades primitivas e as formas de expressão da conduta assumem formas muito soisticadas de controle.

O mesmo autor, questionando as designações de Homo sapiens e Homo faber atribuídas à espécie humana, conforme a concepção do processo civilizatório tenha por apoio a ra-

cionalidade ou o trabalho, respectivamente, coloca o jogo no mesmo patamar dessas dimensões da vida humana e defende a seguinte tese: “[...] é no jogo e pelo jogo que a civilização surge e se desenvolve [...]. Não quer isso dizer que ela nasça do jogo, como um recém-nascido se separa do corpo da mãe. Ela surge no jogo, e enquanto jogo, para nunca mais perder esse cará- ter” (HUIZINGA, 1996, p. 1, 193). Em favor dessa tese, o autor procura, no patrimônio linguístico, as marcas do processo em- brionário, como, por exemplo, o uso da palavra play em inglês para signiicar brincar e tocar um instrumento ou, no idioma chinês, o uso da palavra jogo para signiicar uma extensa lista de atividades cujo traço comum é se opor à seriedade.

O jogo é, assim, tomado como fenômeno cultural e his- tórico, embora o autor também airme ser uma herança co- mum aos homens e animais e, algumas vezes, utilize o termo instinto para referir-se ao jogo, ideia insustentável dentro de tal perspectiva. O autor adverte, porém, que sua incursão pelo tema é de natureza histórico-especulativa, de cujo caráter não se deve esperar o rigor de um empreendimento cientíico.

Entretanto, seu trabalho é uma importante contribuição para o desenvolvimento do tema, uma vez que reúne um signi- icativo acervo de relexões e observações sobre a relação entre jogo e cultura.

Seguindo a démarche de Huizinga, Roger Callois (1986), na obra Los juegos y los hombres, primeira edição datada de 1967, cujo projeto é fazer uma sociologia do jogo, retoma a ideia do caráter civilizatório dos processos envolvidos no jogo. Esse caráter decorreria do fato de o jogo, ao signiicar prazer e invenção, mas também disciplinamento dos instintos, pela aceitação de regras, oferecer um modelo controlado da reali- dade que permitiria o aprendizado de habilidades necessárias

para enfrentar desaios em outros contextos. Tais habilidades se diferenciariam segundo as variadas modalidades de jogo.

Rejeita, no entanto, a concepção anteriormente exposta, para a qual o jogo representaria formas residuais de atividades que perderam, no curso da história, o caráter de seriedade, e o vê como o fundamento de toda atividade cultural, argumen tando que crianças brincam de simular atividades que ainda têm seu lugar no seio da cultura. Logo, a mesma atividade ocorre nos dois registros, de jogo e seriedade, numa mesma cultura.

Sua contribuição para a discussão do tema parece residir em deslocar a antinomia jogo como fonte da cultura e jogo como formas residuais da cultura para o plano das simultanei- dades, como é sugerido no texto seguinte:

O espírito de jogo é essencial para a cultura, porém, no transcurso da história, jogos e brinquedos são resíduos dela.

Como supervivências incompreendidas de um es tado caduco ou tomadas de empréstimo de uma cultura alheia, privados de sentido naquela em que foram in- troduzidos, os jogos sempre aparecem fora do funcio- namento da sociedade em que se lhes encontra. Nela é apenas tolerado, enquanto numa fase anterior, na so- ciedade em que surgiram, eram partes integrantes de suas instituições fundamentais, laicas ou sagradas [...]. Sua função social mudou, mas não sua natureza. A transferência e a degradação sofrida lhes despojaram de sua signiicação política ou religiosa. Porém, essa decadência não tem feito senão revelar, isolando-se, aquilo que continham em si e que não era outra coisa senão estrutura de jogo (CALLOIS, 1986, p. 108-109).5

Henriot (1989b), tentando um apuro conceitual maior, chega a uma conclusão contrária. Airma que são os processos de nomeação que permitem fazer equivaler diferentes realida- des chamadas de jogo, que, no entanto, permanecem irredutí- veis a uma deinição que não seja tomada em relação à própria prática cultural da nomeação. Nesse sentido, o jogo não é uma estrutura estável, mas uma realidade capturada pela lingua- gem, a partir do que passa a adquirir esse sentido cultural.

Brougère (1995), seguindo a mesma démarche, vê no jogo um produto da cultura. Airma que no conjunto das ati- vidades humanas algumas são assim designadas. Tal processo de designação está subordinado a uma interpretação, de tal modo que o ludus latino não é igual ao jouer francês, uma vez que não é o comportamento que delimita uma conduta como brincadeira, e sim o sentido que ela adquire num determinado contexto cultural. Assim sendo, as condutas às quais se apli- cam essas designações são aprendidas pela criança nas intera- ções de que participa, inicialmente como brinquedo da mãe, depois num papel mais ativo e, em seguida, como parceira.

Logo, há uma cultura preexistente que deine o que é jogo e suas formas de operacionalização, de tal sorte que, m esmo quando solitário, implica uma atividade cultural que requer assi milação personalizada para cada nova atividade lúdica.

Sua hipótese é de que existiria uma cultura lúdica, cons- tituída pelos parâmetros através dos quais uma dada sociedade interpreta uma atividade como jogo e que fornecem referên- cias intersubjetivas ao jogador para assim interpretá-la. É essa transmissão e uso que, particularizando-se, aplicando-se a va- riados temas, diversiicando-se segundo diferentes condições de realização, enriquece a própria cultura lúdica.

Nessa concepção, o jogo, ao invés de produtor de cul- tura, é um produto cultural, dotado de uma certa autonomia: “[...] quem brinca se serve de elementos culturais heterogê neos para construir sua própria cultura lúdica com signiicações pessoais” (BROUGÈRE, 1998b, p. 32). Assim a cultura tem precedência sobre o jogo e a contribuição deste para a mesma restringe-se à própria cultura lúdica.

Nesse sentido, vale ressaltar que a cultura lúdica é tri- butária da cultura em geral, de tal sorte que a televisão e o brinquedo, por exemplo, fornecem novos conteúdos e, às ve- zes, esquemas que contribuem para a modiicação da cultura lúdica. Quanto aos brinquedos, podemos falar de uma cultura lúdica adulta que produz um conjunto de signiicações, em- butidas nos artefatos produzidos para as crianças. No que se refere a esse aspecto, assim se expressa o autor:

Esses produtos integram as representações que os adul- tos fazem das crianças, bem como os conhecimentos sobre a criança disponíveis numa determinada época. Mas o que caracteriza a cultura lúdica é que apenas em parte ela é uma produção da sociedade adulta, pelas restrições materiais impostas às crianças. Ela é igual- mente a reação da criança ao conjunto das propostas culturais, das interações que lhe são mais ou menos impostas (BROUGÈRE, 1998b, p. 29).

Evitando a antinomia condicionamento versus inventi- vidade, o autor insiste na necessidade de considerar os dois aspectos para dar conta da complexidade do processo de pro- dução de signiicação que aí tem lugar.

Ressalta ainda a complexidade dos aspectos envolvidos na experiência lúdica, reivindicando a necessidade de estudos

que aprofundem a compreensão tanto do papel do jogo na cul- tura como na psicologia do sujeito.

Por im, chama a atenção para a transformação da cultura lúdica infantil em função dos processos de produção industrial de brinquedos, que, via propaganda, inaugura uma nova relação da criança com esse universo cultural e, por consequência, leva à reestruturação do lugar ocupado por ela na sociedade.

No entanto, essa abordagem reivindica uma autonomia para essa esfera de atividade que diiculta a compreensão das mediações entre jogo, desenvolvimento e escola, ainda que te- nha o mérito de problematizar ideias aparentemente consen- suais na educação, pois corre o risco de encerrar a cultura lúdica em suas próprias determinações. Segundo as palavras do autor,

O desenvolvimento da criança determina as experiên- cias possíveis, mas não produz por si mesmo a cultura lúdica [...]. O jogo é antes de tudo o lugar de constru- ção (ou de criação, mas esta palavra é, às vezes, peri- gosa!) de uma cultura lúdica. Ver nele a invenção da cultura geral falta ainda ser provado. Existe realmente uma relação profunda entre jogo e cultura, jogo e pro- dução de signiicações, mas no sentido de que o jogo

produz a cultura que ele próprio requer para existir

(BROUGÈRE, 2002, p. 27, 30, grifo nosso).

Vê-se que, nessa abordagem, mesmo postulando uma relação profunda entre jogo e cultura, a cultura em geral forne- ce apenas material para enriquecer a cultura lúdica, que é fon- te de sua própria determinação, enquanto o desenvolvimento fornece apenas as condições dentro das quais a cultura lúdica pode se desenvolver. As mediações que revelariam o liame en- tre o sujeito e a cultura permanecem inexploradas.

Podemos airmar agora que, graças à contribuição dos teóricos, o jogo ganhou assim destaque enquanto atividade que comporta um modo próprio de funcionamento, especíico da infância e distinto de outras condutas infantis, que inscreve a criança num universo cultural, tanto através de suporte ma- terial especíico como da tipiicação de condutas transmitidas de uma geração para outra. Por suas características, tais como frivolidade, lexibilidade e ausência de inalidade útil, não só se distingue como se opõe a outras atividades.

O progressivo reconhecimento dessa especiicidade deu lugar, na atualidade, a diferentes práticas educativas em torno do jogo dirigidas à criança,6 a mais especializada das

quais é a ludoteca. Ainda que exista sob diferentes modalida- des de funcionamento, esta se constitui num lugar destinado exclusivamente a brincadeiras e jogos. Na ludoteca, o jogo encontra o reconhecimento de sua especiicidade como prá- tica cultural da infância.