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Complexidade e o método de investigação

Depois das primeiras tentativas de investigação científica de Otto Ortmann1, foi- se instalando no mundo académico uma apetência pela pesquisa sistemática dos aspectos fisiológicos e neurológicos ligados ao pianismo. Ao longo de décadas muita informação relevante foi-se revelando. De entre os novos conhecimentos destacam-se sobretudo aqueles que maior influência podem exercer na prática profissional e pedagógica pianística, nomeadamente as observações na área da neurociência. Quanto à pesquisa fisiológica, a perspectiva de análise tem sido insistentemente orientada para a observação isolada de aspectos parciais que constituem a técnica pianística, de que resultam registos de tipo quantitativo, exaustivos e minuciosos, de determinado tipo de dados, tanto ao nível temporal do mecanismo do piano como ao nível do desempenho esqueleto-anatómico. Apesar da clareza da exposição de Kochevitsky, muitos equívocos persistem. A começar pelo emprego do termo “psicológico” quando se refere a operações mentais ligadas à execução.

Porventura por razões derivadas de traduções menos exactas, a utilização deste termo levou à generalização no seio da comunidade pedagógica e profissional da ideia redutora e mistificadora que todas as dificuldades técnicas teriam uma origem psicológica, ou seja, seriam exclusivamente o resultado do condicionamento psicológico emocional da auto-estima e da confiança. Ainda que exista efectivamente uma particular relevância nesse condicionamento, aquilo a que Kochevitsky e outros autores se referem quando utilizam o termo psicológico é o trabalho ou processamento mental e neurológico das acções e informações envolvidas nas tarefas da execução.

Para a comunidade médica, tem sido muito importante a identificação de relações causais anatómico-fisiológicas para determinadas afecções que ocorrem no exercício pianístico. A neurociência, pelo seu lado, desenvolveu igualmente estudos que conduziram ao reconhecimento das origens de outro tipo de disfunções impeditivas da execução instrumental. Para além da relevância destes novos avanços na abordagem preventiva e terapêutica das doenças originadas pela actividade pianística, as conclusões destes trabalhos raramente vão além da confirmação de fenómenos parciais e potencialidades que já pertenciam ao domínio do conhecimento intuitivo de qualquer pianista profissional de nível avançado.

Não há dúvida que o estudo científico determinista, baseado na observação experimental e laboratorial, é capaz de esclarecer alguns detalhes relevantes que explicam características específicas de determinados fenómenos e operações. A perspectiva obtida, no entanto, difìcilmente alcança algo mais que uma visão parcelar perante a complexidade e interdependência das competências envolvidas. A nível da metodologia da execução instrumental, este tipo de informação, apesar da sua profundidade e qualidade, ao ser focada e demonstrada em determinados objectos fragmentados do pianismo, sem que seja oferecida a conexão directa das suas implicações ao nível da globalidade e complexidade de interdependências que os ligam aos restantes aspectos, não tem produzido o esperado esclarecimento e a simplificação da sua abordagem, especialmente no campo da pedagogia, e não propicia a desejada expansão e aperfeiçoamento da técnica.

Este é um caso típico em que o método de análise científica necessàriamente deveria focar, referenciar e ligar o objecto de estudo ao “todo” complexo da acção musical e pianística, cruzando informações oriundas de diferentes saberes, numa estratégia inter e multi-disciplinar. A verificação dos limitados avanços em compreensão e progresso da técnica pianística de décadas de pesquisa baseada na disjunção reducionista dos seus componentes deveria alertar a comunidade científica para a necessidade de adopção de novos métodos. Edgar Morin, um dos mais brilhantes filósofos da actualidade caracteriza este tipo de postura académica da seguinte forma:

fundamentais:

(1) O princípio do determinismo universal, ilustrado pelo demónio de Laplace[2,

capaz, graças à inteligência e sentidos extremamente desenvolvidos, de, não só conhecer todos os eventos passados, mas também de antever todos os eventos no futuro.

(2) O princípio da redução, que consiste no conhecimento de qualquer compósito apenas pela noção dos elementos básicos que o constituem.

(3) O princípio da disjunção, que consiste no isolamento e separação cognitiva das dificuldades uma da outra, conducente à separação entre as disciplinas, as quais se tornam herméticas umas das outras.

Estes princípios levaram a desenvolvimentos extremamente brilhantes, importantes e positivos. […] A peculiaridade, não da disciplina em si mesma, mas da disciplina tal como é concebida, não comunicante com as outras, fechada em si própria, naturalmente desintegra a complexidade.

Por todas estas razões compreende-se porque é que a complexidade era invisível ou ilusória, e porque é que o termo foi deliberadamente rejeitado.

Morin acrescenta, todavia:

A chegada da desordem, dispersão, desintegração constituiu um ataque fatal à visão determinista, perfeita e ordenada.

E muitos esforços serão necessários – ainda não chegámos lá precisamente porque é contra o paradigma reinante – para compreender que o princípio da dispersão, o qual aparece desde o nascimento do universo com essa incrível deflagração impròpriamente chamada de big bang, combina-se com o princípio contrário da junção e organização o qual se manifesta na criação dos nuclei, átomos, galáxias, estrêlas, moléculas e vida.3

Em Música, a execução instrumental, caracteriza-se pela combinação e inter- dependência de competências, capacidades, recursos e informação. A sua boa gestão depende exactamente da qualidade, completude e capacidade de leitura dessa informação. A sua observação metodológica implica a consideração de todos os factores que a condicionam e constituem como um sistema e fenómeno complexo cujo conteúdo e significado funcional só atinge sentido nessa dimensão. O próprio Ortmann, apesar da sua elaboração determinista não esconde a sua convicção:

Todos os touchers pianísticos pertencem a uma série altamente complexa e inteira de elementos que se fundem imperceptìvelmente uns nos outros.4

Por outras palavras, a verificação de processos e eventos ligados à operação musical, neurológica, e muscular, dispõe no cérebro do homem o melhor dos laboratórios especializados e que é capaz de sintetizar a informação de modo significante. Não há melhor ferramenta de observação científica que os sistemas somatossensorial, proprioceptivo, auditivo e psicológico. Aquilo que é fundamental no trabalho do pianista

é o desenvolvimento das capacidades de cada um destes sistemas e “afinar” a respectiva monitorização. Toda a estratégia de observação e linhas de recomendação aqui propostas baseiam-se nesta concepção operativa. Espera-se que, um dia, esta concepção possa beneficiar a continuação da investigação nesta área.