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Ritmo pontuado da Abertura Francesa e da Marcha Fúnebre

Um dos mistérios que porventura não merece a pena ser esclarecido é a medida exacta da subdivisão do ritmo pontuado da abertura francesa. O carácter deste tipo de trechos, assim como no caso da marcha fúnebre, determina que a subdivisão seja encontrada “com o côrpo,” quando este consegue “entrar” no movimento que o respectivo carácter solicita. É impossível materializar uma explicação puramente objectiva ou mecânica: este ritmo não é mensurável, fica algures entre a 4.ª e a 6.ª parte da pulsação. O seu equilíbrio e identidade passa por não soar “quadrado” nem exageradamente nervoso. O resultado tem de manter a simplicidade de algo profundamente enraizado e não de um efeito superficial exterior.

Rubato

Um exemplo de técnica de flutuação rítmica é o chamado “rubato.” Com um significado algo metafórico, o qual foi evoluindo ao longo do tempo (confundindo-se com

ad libitum), este termo indica ao intérprete a possibilidade de gerir a pulsação com uma

certa liberdade.

De entre os inúmeros depoimentos de personalidades da Música sobre este tema, um dos que mais sobressai é o do pianista polaco Ignace Paderewski, não só pela peculiar frontalidade, mas também pela prestigiada validade dos seus conhecimentos e juízos musicais de referência, nomeadamente em repertórios como o de Chopin:

O ritmo é a pulsação da Música. Marca o batimento do coração, prova a sua vitalidade, atesta a sua existência. Ritmo é ordem. Mas, em Música, esta ordem não pode mover-se com a regularidade cósmica de um planeta, nem com a uniformidade automática de um relógio. Ele reflecte a vida, a vida orgânica humana, com todos os seus atributos, por isso, está sujeita aos humores e emoções, ao arrebatamento e à depressão. Na Música não há ratios absolutos de movimento. O tempo, como costumamos chamá- lo, depende das condições físicas e fisiológicas. É influenciado pela temperatura interior e exterior, pela envolvente, instrumentos, acústicas.

Não existe ritmo absoluto. No curso da evolução dramática de uma composição musical, os temas iniciais vão mudando de carácter, mudando consequentemente o seu ritmo. . . . Ritmo é vida.

De acordo com um suposto relato, Chopin costumava dizer aos seus alunos: "Tocar livremente com a mão direita, mas a mão esquerda assume o papel de maestro e mantém o tempo." Não sabemos se a esta história deve ser concedida o benefício da dúvida. Mesmo que seja exacta, o grande compositor entrou em contradição com a energia maior de composições maravilhosas como o Estudo em dó sustenido menor, Prelúdios n º 6 e n º 22, a Polonaise em dó menor, e em fragmentos de tantas outras obras-primas suas, onde a mão esquerda não desempenha o papel de um maestro, mas claramente o de uma prima- donna. Outra contradição desta teoria, ou melhor, da maneira como Chopin a colocava em prática, é o testemunho de alguns de seus contemporâneos. Berlioz afirma enfàticamente que Chopin não conseguia tocar a tempo, e Sir Charles Hallé pretendia ter provado a Chopin que, contando os tempos, este tocava algumas Mazurkas em compasso quaternário, em vez de ternário. Respondendo a Charles Hallé, diz-se que Chopin terá observado com humor que isso estava bastante de acordo com o carácter nacional.

O tempo como uma indicação geral de carácter numa composição é, sem dúvida, de grande importância; o metrónomo pode ser útil; dispositivo engenhoso o metrónomo- Melzel [42], embora longe de ser perfeito, é particularmente útil para os alunos não

dotados pela natureza de um aguçado sentido rítmico, mas a imaginação de um compositor e a emoção de um intérprete não se sujeitam a ser humildes escravos de qualquer metrónomo ou ritmo.

Tempo Rubato, esse irreconciliável inimigo do metrónomo, é um dos mais antigos amigos da Música. É mais velho que a escola romântica, é mais velho do que Mozart, é mais velho que Bach. Girolamo Frescobaldi, no começo de século XVII, fez amplo uso do mesmo. Tempo Rubato é um potente factor na retórica musical, e cada intérprete deve ser capaz de usá-lo com habilidade e discernimento, pois enfatiza a expressão, apresenta variedade, infunde vida à execução mecânica. Ele suaviza a nitidez das linhas, arredonda os ângulos da estrutura sem arruiná-la, porque a sua acção não é destrutiva: ela intensifica, torna subtil, idealiza o ritmo.

Tal como habitualmente aceite, o lado técnico do Tempo Rubato consiste num abrandamento ou aceleração mais ou menos relevante do tempo ou do ratio do andamento. Algumas pessoas, conduzidas pelo louvável princípio da equidade, e insistindo na ideia de tempo roubado, defendem que o que é roubado deve ser restituído. Reconhecendo, como é nosso dever, as motivações altamente moralizadoras desta teoria, humildemente confessamos que a nossa ética não atingiu um tão elevado nível. A ideia de algo perdido é natural no caso de se tocar com orquestra, onde, por questões de segurança do conjunto, apesar das alterações fragmentárias do andamento, a integridade métrica deve ser rigorosamente preservada. Com um solista é bem diferente. A duração

das notas de um período diminuídas através de um accelerando, nem sempre pode ser restaurada noutro com um ritardando. O que está perdido, perdido está. Para qualquer ilegalidade existe, após um determinado tempo, a prescrição. Tempo Rubato aparece com frequência na música popular, especialmente nas danças, consequentemente, deve ser empregue nas obras de Chopin, Schubert, Schumann (Papillons, Carnaval), Brahms, Liszt, Grieg, e em todas as composições que têm a música popular como base.43

A desmistificação do hábito do juízo e da regra normativa neste tipo de assunto é bastante “refrescante.” Contudo, nalguns detalhes podemos confirmar a existência de uma grande variedade de caminhos possíveis. Por exemplo, nem sempre o solista tem a obrigação de “correr” para apanhar o tempo da orquestra, compensando algum rubato. E, inversamente, as flutuações da parte solista podem incluir dilatações (atrasandos) seguidas de contracções (acelerandos) no tempo do andamento. Colla parte é uma indicação frequente em partituras, a qual obriga o maestro, ou o acompanhador, a seguir todas as pequenas inflexões de tempo por parte do solista.

A propósito da abordagem interpretativa em Chopin, o pianista italiano Maurizio Pollini, em entrevista em 2005, refere:

O seu estilo [de Chopin] foi influenciado por aquilo que pode ser descrito como belcanto. Pode-se ouvir a voz humana em todas as obras de Chopin, como uma ária ideal. A música de Chopin tem sido tocada muitas vezes com muito rubato, e também tem sido tocada com muito pouco rubato. Liszt descreve Chopin a utilizar rubato. Mas, no século XIX, as interpretações da música de Chopin adquiriram certas qualidades a que talvez se pudessem chamar de maneirismos. há hoje muitos pianistas que utilizam um rubato mecânico: um ligeiro accelerando, um ligeiro diminuendo. O rubato deve surgir espontâneamente a partir da música, não pode ser calculado, mas deve ser totalmente livre. Não é algo que se possa ensinar: cada artista deve senti-lo com base na sua própria sensibilidade. Não há fórmula mágica: assumir o contrário seria ridículo. Rubato não é algo que se possa racionalizar.44

Se é verdade que a gestão destas flutuações depende exclusivamente da sensibilidade artística do intérprete, alguns dos parâmetros lógicos que a condicionam podem e devem ser analisados. Assim, no caso do rubato, a sua origem está directamente relacionada por um lado com as flutuações da dança, e por outro, com a plasticidade orgânica da projecção sonora dos diferentes instrumentos, em particular da voz. Esta característica particular da técnica vocal contrasta com a mecanicidade idiomática de certos instrumentos como o piano.

Nas mãos de intérpretes especialistas, para além da voz, outros instrumentos, como por exemplo o violino, o cravo, o pianoforte, o alaúde ou a guitarra, “respiram” a pulsação de forma bastante elástica. A técnica de détaché do violino, por exemplo, inclui uma certa diferenciação entre a arcada descendente e a ascendente. Nalgumas sequências de notas mais expressivas, este detalhe técnico pode conduzir a uma ligeira, mas identificável, diferença rítmica entre a primeira nota e as restantes (por exemplo, nas

Allemandes das Suites de Bach). No caso da guitarra, podemos observar que, mesmo em

obras do repertório do período clássico, onde a manutenção da regularidade do tempo é um valôr estético e estilístico, a execução de muitas passagens respira uma certa liberdade.