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1.3 Chuveiros atmosféricos extensos

1.3.2 Composição química

Assim como a energia, a composição química da radiação cósmica primária também inuencia a formação de um EAS. Durante o desenvolvimento da frente do chuveiro, a transferência de energia da parte hadrônica para a parte leptônica ocorre por canais diferentes. A taxa de decaimento de píons carregados é várias ordens de grandeza menor do que a de seus equivalentes neutros (veja tabela 2), resultando no crescimento mais lento, em número, da quantidade de múons em relação às partículas da componente eletromagnética. Além disso, os múons não se multiplicam: eles perdem pouca energia para a atmosfera, por ionização; seu número total cresce até um valor máximo e depois

é atenuado lentamente devido a seu decaimento. Em contraste, a criação de pares é limitada unicamente pela energia de corte Ec e, após o número máximo, a atenuação

na quantidade de elétrons e pósitrons é bem mais acentuada (veja gura 3).

Figura 3: Pers esquemáticos de dois chuveiros de baixa energia (∼ 1016 eV). As

linhas sólidas referem-se à componente eletromagnética; as tracejadas representam a quantidade de múons. Nµ é multiplicado por 20 em relação a Ne em uma escala linear

arbitrária. Figura da referência [25].

Com base nesses efeitos, Gaisser (ref. [25]) argumenta que é razoável assumir que múons possuam uma relação mais simples com a energia primária e que o perl desse desenvolvimento longitudinal seja menos susceptível a utuações, preservando melhor a informação sobre o conteúdo hadrônico do núcleo inicial. Para um chuveiro atmosférico iniciado por um próton com energia E0, o autor deduz

Nµp(> 1 GeV) ∝ Epµ

0 (9)

como o número total de múons de baixa energia. O expoente pµ depende do modelo

usado nas simulações. Ele também assume o modelo da superposição, cuja hipótese é a de que um chuveiro iniciado por um núcleo de número de massa A e energia inicial E0

equivale à sobreposição de A chuveiros iniciados por prótons com energia inicial E0/A,

para escrever

NµA(> 1GeV) ∝ A E0 A

pµ

. (10)

NµA= A1−pµNp

µ. (11)

Integrações numéricas cuidadosas das equações de cascatas, feitas por Elbert e publicadas por Elbert e Gaisser (1979, ref. [26]), demonstram similaridade à equação (10) e produzem como resultado pµ = 0.86na faixa de energia 1012− 1018eV, com uma pre-

cisão 6 10%. Segundo a equação (11), isso signica que, em relação ao número de múons em um chuveiro extenso iniciado por um próton, um núcleo primário de carbono (A = 12) produziria ∼ 42% a mais de múons, enquanto um núcleo de ferro (A = 56) se- ria responsável por um excesso equivalente de ∼ 76%. Gaisser (ref. [25]) ainda faz uma comparação entre energias dessas simulações e alguns resultados de AGASA14(ref. [27])

para apontar que o conteúdo muônico medido dos EAS é compatível com uma com- posição química primária pesada, envolvendo principalmente núcleos do grupo CNO.

O motivo pelo qual a equação (9) foi integrada para múons com energia acima de 1GeV é que detectores desse tipo de partícula devem ser enterrados ou protegidos por concreto para que não sofram inuência da componente eletromagnética. Isso é garan- tido, por exemplo, por uma espessura de 2 m de concreto, com densidade 2.5 g/cm3,

que tipicamente exclui múons com energia . 1 GeV. No caso de arranjos de superfície, esse é um problema para qualquer número de detectores acima de algumas dezenas, separados por quilômetros de distância.

A gura 3, apesar de esquemática, reete uma separação real entre as curvas do desenvolvimento longitudinal da componente eletromagnética. Esse efeito também pode ser usado para estimar a composição química de um núcleo primário. Heitler (1936, ref. [28]), em sua teoria quântica sobre radiação, introduziu a noção do processo de formação de uma cascata a partir da idéia de que um elétron rápido com energia inicial Ei, ao sofrer bremsstrahlung em um meio material, deve emitir um fóton com uma

energia comparável a Ei; o autor sugere Ei/2. Esse fóton de alta energia, por sua vez,

produz um par elétron-pósitron ao interagir com um núcleo do meio, cada qual criado com ∼ Ei/4. O elétron inicial, que possuía Ei/2 após a emissão, continua o processo

através do bremsstrahlung gerando um fóton com ∼ Ei/4, tendo sua energia degradada

para este mesmo valor. Evidentemente, o número de partículas da cascata cresce até que ambos os tipos de partícula tenham seus mecanismos de produção interrompidos quando suas energias passam a ser menores do que um limiar Ec. Heitler percebeu o poder dessa

abordagem simples ao notar que os caminhos livres médios para o bremsstrahlung e para a criação de pares são comparáveis em todos os meios materiais (em seu livro, ele mostra que essas distâncias são praticamente iguais no chumbo e na água).

Figura 4: Modelo de interação de Heitler. Figura adaptada da referência [25]. Gaisser (ref. [25]) observa que, apesar de Heitler discutir sobre cascatas puramente eletromagnéticas, a estrutura básica da teoria também se aplica a chuveiros iniciados por hádrons. Nesse modelo simples, um raio cósmico de energia inicial E0 sofre a

primeira interação no topo da atmosfera, a uma profundidade X0, resultando em duas

partículas com a metade dessa energia. Cada subproduto repete o processo após percor- rer um comprimento característico λint, e assim sucessivamente (veja gura 4). Então,

o número total de partículas

N (X) = 2(X−X0)/λint (12)

é denido para uma profundidade atmosférica arbitrária. Supondo que a energia seja dividida igualmente em cada interação, uma única partícula em X deve possuir a energia

E (X) = E0

N (X). (13)

Quando a frente do chuveiro extenso atinge o número máximo de constituintes, a equação (13) toma a forma N (Xmax) = E0/Ec e, em conjunto com a equação (12)

para X = Xmax, o resultado é

Xmax = X0+ λintlg

E0

Ec

uma relação15 importante envolvendo parâmetros mensuráveis por técnicas diferentes.

A composição química também é inserida na análise de Heitler através do modelo da superposição ao considerar que um núcleo de número de massa A e energia total E0, na

forma de um raio cósmico, interage com um núcleo da atmosfera gerando A chuveiros extensos de energia inicial E0/A. A equação (13) passa a ser escrita como

E (X) = E0 A N (X) que, sob o mesmo raciocínio em torno de X = XA

max, resulta em XmaxA = X0+ λint  lgE0 Ec − lg A  . (15)

Devido à natureza das interações envolvidas no desenvolvimento de um EAS, a profundidade atmosférica da primeira interação sempre possuirá alguma utuação, acar- retando na distribuição dos valores de XA

max em algum intervalo (ref. [29]). Portanto, a

equação (15) é usada na forma

XA

max = Dp[lg E0− hlg Ai] + cp, (16)

onde Dp (≡ λint) é chamada de taxa de elongação e cp (≡ X0− λintlg Ec) é conhecida

como escala de profundidade absoluta. O índice p refere-se ao próton. A relação direta

XA

max = hXmaxp i − Dphlg Ai

mostra que chuveiros iniciados por núcleos primários pesados se desenvolvem mais rapi- damente em comparação às cascatas geradas por núcleos leves com a mesma energia por nucleon, já que XA

max < hXmaxp i. Pela denição X = X (h), dada pela equação (3) na

sub-seção anterior, as altitudes h mais baixas em que os números máximos de partículas Nmax são observados nos EAS decorrem de raios cósmicos primários protônicos.

Na equação (16), Dpe cprepresentam a dependência inerente de XmaxA com as pro-

priedades das interações hadrônicas nas altas energias. Antes do Observatório Auger, a atribuição de valores a esses parâmetros só era possível através de simulações do desen- volvimento de chuveiros atmosféricos extensos com base na extrapolação de modelos, em duas ou mais ordens de grandeza no sistema do centro de momento, a partir de

dados de aceleradores. Portanto, qualquer inferência a respeito da composição química de raios cósmicos com E & 1018 eV dependia fortemente desses modelos de interação

(veja as referências publicadas em [29]).

Na maneira como as observações de raios cósmicos eram feitas até recentemente, mesmo se os dados possuíssem uma qualidade que permitisse uma boa caracterização do chuveiro, a variação dos parâmetros com o número de massa do núcleo é pouca e, em geral, menor do que os erros experimentais. Havia também a diculdade envolvendo o uxo de 1 partícula/(km2 ano) em torno de 1019 eV, tornando qualquer análise

estatística impraticável na região do espectro de energias ultra-altas. O Observatório Pierre Auger tem mudado essa situação através da coleta de uma quantidade maior de dados com precisão sem precedentes. Para uma determinada faixa de energia, as medidas de profundidade atmosférica permitem que seja feita uma análise comparativa entre A1 e A2através de XmaxA1

e XA2

max

, sem qualquer hipótese a respeito dos valores das massas atômicas dos núcleos primários. Como a escala de profundidade absoluta do próton é muito mais incerta do que sua taxa de elongação, a equação (16) é derivada para dar origem ao parâmetro

D = dX A max d lg E0 = Dp  1 −d hlogbAi d logbE0  , (17)

chamado simplesmente de taxa de elongação (ref. [30]), onde b é uma base qualquer. Esta é a principal grandeza utilizada hoje no estudo comparativo entre partículas primárias leves e pesadas.