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1 ECOCRÍTICA: PONDERAÇÕES TEÓRICAS E CONSIDERAÇÕES ACERCA DA

1.1 COMPREENDENDO A ECOCRÍTICA

Percebe-se que pensar ecocriticamente requer uma visão integrada, na qual sociedade, cultura e meio ambiente se imbricam em um campo de preocupações sociais e existenciais que envolvem a vida do planeta no sentido ecológico. Nesse caso é interessante destacar as reflexões de Isabel Carvalho, quando coloca que a Ecologia é uma “ideia migrante, uma ideia ponte que transitou de um mundo a outro” (2011, P. 08) e habita, tanto no seio da biologia quanto do contexto social, com objetivos diferentes.

Dessa forma, a perspectiva ecocrítica, como uma forma de ativismo ecológico, procura acender, no homem, um sentimento positivo em relação aos seres em geral, pois “Só se pode

viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”. (GSV, 2006, p. 311) Essa perspectiva observa o mundo indo além do aparente, de modo que permite um olhar interativo entre a natureza humana e a natureza externa.

A abordagem ecocrítica é um método acessório do olhar crítico que vê a natureza nos contextos de vivência do humano em interação com os outros seres e com as dimensões materiais (fisiográficas) que compõem o espaço ambiente. A natureza assume papel secundário ou relevante nos textos literários, o olhar ecocrítico pontua esse aspecto e procura observar como se revela o contexto ambiental nas obras, incluindo espaço, seres, elementos e fenômenos da natureza externa e a postura humana perante esse contexto.

Convida-nos o texto literário, para assumirmos posturas de interpretação socioambiental. As características que afetam o pensamento literário precisam ser interpretadas sem a rigidez metódica de sistemas epistemológicos ligados ao cumprimento de regras estritas, herméticas que, via de regra, acabam por limitar a criatividade do pesquisador, como bem exemplifica Feyranbend (1989, p. 22):

O mundo que desejamos explorar [é] uma entidade, em grande parte desconhecida e a educação científica [representa] uma tentativa de fazer crescer em liberdade, de atingir vida completa e gratificadora e a tentativa correspondente de descobrir os segredos da natureza e [por extensão] do homem implica, portanto, rejeição de todos os padrões universais e de todas as tradições rígidas.

Observa-se que a visão primária da análise Ecocrítica, por parte dos que não a conhecem, é de achar que com essa abordagem discutem-se as catástrofes ambientais ou se restringe à observação dos bichos ou das paisagens. Essa forma de olhar a natureza pode afastar ainda mais o indivíduo dela, porque ele tende a continuar vendo o ambiente natural como algo externo a ele e sobre o qual tem o “poder” de cuidar, porque é um patrimônio da humanidade. Esse tipo de visão pode levar o indivíduo a não se ver como integrante da natureza e não perceber a condição de irmandade que pode existir, como são apresentados, por exemplo, a cachorra Baleia e os filhos de Fabiano em Vidas secas ou Riobaldo em GSV, em relação ao sertão: “eu sou o sertão”. A terra poderia ser vista como a que deu vida à árvore, mas também ao homem tal e qual, e que nascemos, crescemos e morremos em condição cíclica igual a qualquer outro ser.

Esses aspectos são apreciados, também, através do tempo. Em Grande sertão:veredas, quando ocorre a morte de Joca Ramiro, um ciclo vai sendo findado (estiagem) para outro começar, assim como o ciclo vital na terra. É uma relação simbólica como se o inverno que corta o ano no sertão (seca e chuva) cortasse a obra em antes e depois da morte de Joca Ramiro. Ainda se pode ver que a chuva torrencial, que cai depois da notícia da morte, remete à tormenta pela qual o líder do sertanejo passou na luta com seus algozes e aos conflitos criados no sertão especialmente na vida daqueles que viam Joca Ramiro como um deus.

O frio que os jagunços sentem depois do fato ocorrido é um tipo de sinestesia que pode simbolizar a frieza do matador. Do mesmo modo, a dor dos jagunços também é partilhada pela natureza: “A mesmo estava o céu encoberto e um mormaço” [...] (GSV, 1984, p. 229). Observa-se aí uma relação de cumplicidade entre homem/natureza.

O momento do assassinato dos cavalos em GSV mostra a crueldade do homem, no caso, dos jagunços do lado de Hermógenes no uso do poder proporcionado pela arma. Nessa perspectiva, não só o cavalo, mas também o homem seria dirimido da mesma forma. Esta situação mostra a condição de igualdade entre homem e animal e a posição de vulnerabilidade de um perante o outro. Também se observa a semelhança da irracionalidade (na verdade, inconsciência ou racionalidade negativa) daquele que mata. Uma irracionalidade malvada, ao contrário da irracionalidade animal que é instintiva.

Esse fato é uma constatação da crueldade de Hermógenes tão falada por Riobaldo. É como se, através da cena, ele conseguisse provar o sadismo e o prazer de Hermógenes em matar. Nesse sentido, evidencia-se a visão do homem em relação ao animal, do qual ele dispõe da vida e a visão do “mais forte sobre o mais fraco” e sobre a natureza em geral.

Assim, é interessante perceber como a ação estético-criativa da obra literária pode chamar atenção para o que estamos fazendo e destruindo, na medida em que nos afastamos da natureza. Ao pensar o ecológico, a natureza é vista como externa quando o homem é parte integrante e, em muito, comprometido, pelo menos em tese, com a causa ecológica, uma vez que só a ele foi dado o ‘dom’ da razão. O homem deveria agir em prol um do outro e das outras dimensões da natureza, no intuito de tornar o mundo um lugar de convívio e não um espaço (campo de batalha), no qual alguns vivem enquanto outros tentam sobreviver. Nessa perspectiva, “observar o homem no seu convívio socioambiental é um fator ecológico e ao fazê-lo através da literatura, é um olhar literoambiental”. (ALMEIDA, 2008, p. 28)

De acordo com Garrard (2006), uma observação contextual na situação atual leva a pensar que o homem pode estar no lugar errado e no momento errado, porque parece que esse homem passa por um período transicional, que culminará na transmutação do ser humano em máquina. Se nada se fizer a respeito o humano será, em breve, cooptado e controlado por máquinas e não prescindirá das demais dimensões da natureza, pelo menos da mesma forma que o homem atual.

Em períodos pretéritos o humano se adaptava às condições naturais, hoje ele adapta a natureza conforme seus interesses, como afirma Milton Santos (2006, p. 234): “Quando tudo era natural, o homem escolhia da natureza aquelas partes consideradas fundamentais ao exercício da vida, valorizando diferentemente, segundo os lugares e as culturas, essas condições naturais, constituíam a base material da existência do grupo.” Santos revela ainda os meios de exploração da natureza, seus benefícios e malefícios que culminam sempre no lucro e na rendição à globalização:

Quanto mais tecnicamente contemporâneos são os objetos, mais eles se subordinam às lógicas globais. Agora se torna mais nítida a associação entre objetos modernos e atores hegemônicos. Na realidade ambos são os responsáveis principais no atual processo de globalização. (2006, p. 240).

De acordo com Santos, dentro em breve estaremos em um mundo artificializado, onde os recursos dependerão do homem, o que pode ser perigoso, haja vista as danosas consequências do capitalismo, nas suas relações contraditórias e desiguais no uso do poder opressor. Dessa forma, os menos favorecidos serão os primeiros a desaparecer, a exemplo dos animais indefesos, à mercê da crueldade e do egoísmo humano.

Nesse sentido, a ecocrítica possibilita uma melhor compreensão da complexidade dos elementos que compõem a natureza, porque os mostrará numa realidade fictícia, fomentando a reflexão sobre o que é visto. A percepção ambiental tenta compreender como as dimensões humanas se integram às demais dimensões da natureza e com o próprio homem que, nesse contexto, participa constitutivamente de um todo indissociável.

A análise ecocrítica, não diferentemente de outras formas de análises, traz à tona a fenomenologia do sujeito e a crítica social, só que o insere no contexto natural e o faz refletir sobre isso, tendo em vista a complexidade e heterogeneidade de todos os seres (condicionantes fisiográficos e vivos que integram a natureza). Esse olhar analítico procura

observar a natureza externa ao mesmo tempo em que observa a natureza humana, intrínseca na capacidade de “ser” de cada um.

Assim, a ecocrítica procura mostrar que os seres, em todas as dimensões da natureza, são constituintes de um mesmo contexto, distintos pelas diferenças de espécies e de funções, que devem ser respeitadas como os animais o fazem. A natureza acompanha a fauna, a flora e o homem em igual instância cíclica. Note-se que, nessa concepção, a racionalidade natural do homem não é superior, apenas o faz diferente dos demais e dá, a ele, a responsabilidade de cuidar.

Nesse sentido, pontuamos que o termo “Nature Writing” (escrita sobre a natureza) é uma expressão reveladora da presença da natureza na literatura, a exemplo de poemas árcades que têm, em sua maioria, a natureza como pano de fundo, ou de poemas e narrativas que contenham muitas paisagens de natureza primitiva. Já a ecocrítica remete ao sentido de observar como a natureza está representada, não só a natureza externa, mas também a humana e as suas correlações em todas as dimensões. Trata-se de crítica literária que tem como objeto de observação as representações da natureza na obra literária.

A literatura acompanha e revela o olhar do homem para o mundo e, através dos tempos, percebe-se que esse olhar vai sofrendo variações e a natureza, como um dos elementos literários, também vai sendo vista de modos diferenciados. É justamente dessa percepção de espaço-ambiente e dos elementos que o complementam, que trata a análise literoambiental.

Nesse contexto, se encontram, entre outras, a análise fenomenológica, historiográfica e sociocultural. A primeira busca evidenciar a percepção humana perante o mundo, o não-dito, o encontro de naturezas entre o que compõe o interior do homem e o que está externo a ele. Vê as atitudes e comportamentos humanos que se evidenciam a partir do encontro com os elementos naturais e não-naturais, sendo todo esse cabedal de perspectivas visto no contexto literário, ou seja, a partir da vivência dos personagens ou do que pode revelar o texto poético. A segunda, por sua vez, mostra os processos mediante as contradições das relações sociais, imersas em determinados contextos, espaços e situações e o comportamento humano em meio a esse contexto.

Se enfatizarmos que a natureza é fonte de inspiração literária desde a antiguidade, que os haicais são uma das maiores representações da natureza na literatura; que a natureza é o

tema preferido de William Wordsworth (poeta romântico inglês) e que ela está presente na literatura árcade e romântica, essas assertivas serão apenas a reafirmação de tudo que se sabe e que já foi dito anteriormente. A missão da ecocrítica é de observar como cada discurso narrativo e cada eu poético mostra linguística e imageticamente a natureza, como ela está perceptível ao humano e a relação do homem com ela.

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