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Compreensão da Família nas Perturbações do Comportamento

PARTE I – PROJETO DE INTERVENÇÃO EM SERVIÇO

5. Enquadramento Teórico

5.1 Sobre a Anorexia Nervosa

5.1.4 Compreensão da Família nas Perturbações do Comportamento

Os pais dos adolescentes também vivenciam lutos relativos ao crescimento dos seus filhos, não se deixando ficar insensíveis a todas as alterações que neles observam e de que sentem algumas repercussões. Se o adolescer é traumático para o jovem, para os pais não é mais pacífico. Por um lado, quando as crianças se tornam adolescentes, muitos destes pais encontram-se na “crise do meio da vida”, descrita por alguns autores, idade em que

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ocorre a reavaliação das ambições e são feitos balanços, em que o pensamento e a reflexão prevalecem sobre a acção, as esperanças se tornam menores em termos profissionais, apesar de se ter atingido o auge das competências, podendo ocorrer no plano familiar perdas, nomeadamente dos pais (avós dos adolescentes) (Braconnier & Marcelli, 2000). Por outro lado, surge o sentimento de estranheza acerca daquela criança não mais presente, contribuindo assim para a ocorrência de um desencontro no seio da família (Cobelo et al,

2007).

Do ponto de vista dinâmico, considera-se que a causa da AN se encontra nas dificuldades na resolução do processo de separação da mãe numa fase precoce do desenvolvimento infantil (Mintz, cit. por Gabbard, 2006). Os indivíduos com estas perturbações foram ao longo da infância, por norma, crianças super adaptadas, que nunca deram qualquer tipo de problema aos pais e professores, o que de acordo com Nodin (1999), pode constituir uma fachada que encobre problemas de personalidade implícitos.

Bruch (1962), nas suas observações, descreve estas crianças (de acordo com os seus pais), como boas e sossegadas, obedientes e limpas, ansiosas por agradar e ajudar em casa, precocemente confiáveis e excelentes no desempenho escolar, sendo consideradas pelos pais como o seu orgulho e esperando destas, grandes feitos (aumentar a fortuna da família, compensar as frustrações parentais ou o comportamento de um irmão problemático). Descreve ainda as mães como conscienciosas no seu conceito de maternidade, mulheres muitas vezes não realizadas ou frustradas nas suas carreiras e aspirações, tendo sido subservientes de seus maridos. Estes, por sua vez, apesar do sucesso financeiro e social considerável, sentem-se de alguma forma “os segundos melhores”. Homens muito preocupados com as aparências exteriores, amantes do desporto e da beleza, esperando, no entanto, comportamentos adequados e conquistas mensuráveis dos filhos.

Bemporad e Ratey (1985, cit. por Gabbard, 2006) observaram um padrão habitual de envolvimento parental com filhas anoréticas, sendo o pai tipicamente carinhoso e apoiante de modo superficial, abandonando a sua filha emocionalmente sempre que esta necessitava dele. Além do mais, muitas vezes, estes pais buscavam conforto emocional nas suas filhas, em vez de serem eles a fornecê-lo.

A filha pode ser tratada como um objeto do self, proporcionando funções de espelho e de validação para cada um dos pais, sendo o seu próprio sentido de self negado. Esta não pode confiar nas pessoas para preencher as suas necessidades de objeto do self,

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sendo forçada a duvidar de que os pais ou qualquer outro significativo em sua vida, irão, alguma vez, ceder aos seus próprios interesses e necessidades para prestar atenção às suas necessidades de tranquilização, afirmação e “espelhamento” (Bachar et al, 1999, cit. por

op. cit.). A jovem pode, numa tentativa desesperada de chamar a atenção dos seus pais para

o seu sofrimento e urgência de ajuda, aumentar e intensificar a restrição alimentar.

Já de acordo com Selvini (1978, cit. por Nodin, 1999), estas mães são definidas como sobreprotetoras em relação à criança, considerando-a como uma extensão dos seus próprios corpos e não como ser autónomo. Selvini (1978, cit. por Gabbard, 2006) refere que estas pacientes são incapazes de se separar psicologicamente das suas mães, originando uma lacuna no alcance de qualquer sentido estável do seu próprio corpo. O corpo é percebido como se fosse habitado por uma introjeção materna má, e a inanição pode ser uma tentativa de parar o crescimento desse objeto interno intrusivo e hostil. Descritas por Nodin e Leal (2005) como excessivamente intrusivas em relação à criança, principalmente durante as fases iniciais do seu desenvolvimento, dificultando-lhes a fundação de uma identidade sólida, estável e distinta da figura materna. Assim, estes indivíduos foram bem tratados, não de acordo com as suas necessidades, mas de acordo com as vontades e decisões da mãe, deixando-os incapazes de identificar as suas próprias sensações e ações. Em criança, nunca tiveram a oportunidade de sentir fome porque a mãe os alimentava antes que esboçassem qualquer desejo, tendo aprendido que a alimentação está associada ao seu relacionamento com a mãe, sendo algo que esta decide pela criança, não estando vinculada à sua necessidade física de alimento (Lawrence, 1991, cit. por Santos et al, 2004).

De acordo com Marcelli e Braconnier (1989, cit. por Nodin & Leal, 2005), o pai é descrito em termos de personalidade, como uma pessoa fraca, passiva e de organização obsessiva e, ao contrário da mãe, caloroso, permissivo e “apagado”, com pouca influência nas decisões familiares. Já Sours (1974, cit. por op. cit.) faz referência à existência de hábitos alcoólicos por parte dos progenitores masculinos de muitas anoréticas. Brusset (1991, cit. por op. cit.) acrescenta que esses hábitos ocupam um lugar importante na vida familiar, fomentando atritos conjugais. No que respeita à relação com a filha, ela é apontada como tipicamente superficial. Alguns autores referem uma atitude sedutora da parte do pai, anterior ao aparecimento da doença, a qual teria continuidade, a posteriori, sob a forma de fascinação pela conduta anorética da filha (Kestemberg, Kestemberg & Decobert, 1972, cit. por op. cit.). Segundo Sours (1974, cit. pot Nodin, 1999), a criança não

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teve a oportunidade de demonstrar nem a angústia do estranho do oitavo mês nem a de separação, e a aquisição da locomoção bípede transformou-se em motivo de ansiedade e tristeza, ao invés de alegria para ambas, mãe e criança. Também não ocorre, frequentemente, encorajamento dos comportamentos de separação e exploração da criança pela progenitora. Desta forma, a tarefa desenvolvimental de separação da mãe nunca terá sido adequadamente elaborada pelo indivíduo, permanecendo este dependente da figura materna para a regulação das suas necessidades, prazeres e afetos. A separação real é dificilmente tolerada porque não se efetuou uma interiorização securizante do objeto, sendo o indivíduo invadido por sentimentos de vazio e angústias de aniquilação intensas, tendo de recorrer à realidade externa como contra investimento de uma realidade interna ansiogénica. A difícil vivência da carência, aliada a esta lacuna ao nível da elaboração mental, leva a uma atuação compulsiva, cujo objetivo é o da redução da dor psíquica, compulsão essa que se securiza num objeto substituto, que é a alimentação (Nodin, 1999).

O terapeuta familiar Minuchin e colaboradores (1978, cit. por Gabbard, 2006) descrevem padrões familiares confusos nas famílias destas pacientes, existindo uma marcada ausência de limites entre gerações e pessoas. Cada membro encontra-se demasiado envolvido na vida de todos os outros familiares, ao ponto de ninguém ter um sentido de identidade separada da matriz familiar.

A jovem pré-anoréxica, através da sua inteligência, obediência, perfecionismo e devoção aos estudos e ao trabalho, satisfaz essa rígida expectativa, colaborando para manter a aparente harmonia da vida familiar, em detrimento da sua personalidade em formação. Porém, a chegada da adolescência, faz com que a jovem aparentemente bem adaptada seja inundada por sentimentos de ineficiência, desamparo e descontrolo sobre o seu corpo e sua vida (Bruch, 1972; 1978, cit. por Santos et al, 2004).

5.1.4.1 Terapia Familiar

A essência da terapia familiar é o foco na família como um todo e não apenas no elemento doente. A atenção é focalizada na função familiar e na comunicação e não na psicopatologia. As áreas mais comuns de atenção são: a eficácia do subsistema parental, as dificuldades relacionais do casal, a relação de sobre-envolvimento ou de superproteção pais – criança e a comunicação disfuncional.

Tomando agora como foco a AN pré-pubertária, habitualmente a família encontra-se perturbada e desesperada. A atenção é quase exclusivamente centrada na

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criança doente, adotando os pais, por norma, atitudes distintas para gerir o problema, enquanto um apresenta dificuldades em não ceder, o outro apresenta-se firme e mesmo punitivo. Estas divergências conduzem a discordâncias e incoerência entre o casal, aproveitando a criança para acentuar o conflito entre os pais. Frequentemente um dos pais encontra-se mais envolvido na relação com a criança, protegendo-a, enquanto o outro permanece mais marginalizado ou desligado. As tensões na relação parental estão, muitas vezes, presentes, como resultado do problema do filho. Este conflito é frequentemente antigo e, em alguns casos, a doença emergiu neste contexto.

Existem numerosas escolas de terapia familiar, não existindo no entanto, evidências de qual a mais eficaz. A tarefa do terapeuta familiar não consiste na substituição dos pais na tomada de decisão, mas antes em ajudá-los a encontrar um consenso e um comum acordo. Este assume o papel de facilitador, devendo evitar tomar partidos, assim como confrontar o casal diretamente, uma vez que se trata de um assunto emocionalmente pesado, não sendo naquele momento, na sua perspetiva, esse o seu principal problema. Para além do mais a relação enquanto casal poderá já não existir. Assim, o terapeuta deverá dar a conhecer aos pais que entende que possam estar em desacordo, pois o problema da criança não é fácil de lidar, no entanto sabe que ambos querem, em primeiro lugar o melhor para a(o) filha(o) e posteriormente poderão pensar acerca do seu relacionamento. Poderá ser útil encorajar uma partilha de opiniões, em que cada figura parental exprime como gostaria que a outra lidasse com a situação. Esta técnica traz inúmeras vantagens, nomeadamente, promove uma comunicação mais aberta no seio da família, inicia um processo de compromisso e cooperação e demonstra à criança que os seus pais se estão a esforçar para trabalhar em equipa. Outro objetivo da terapia familiar consiste na promoção da expressão de sentimentos mais apropriada entre os membros da família, englobando a criança com AN (a qual tem tendência para bloquear ou negar os seus sentimentos), através do reconhecimento e aceitação dos sentimentos de cada um, pelo terapeuta. Este processo de validação dos sentimentos, ao invés da sua negação ou desqualificação, tem um efeito terapêutico considerável (Lask & Bryant-Waugh, 2006).

Pesquisas têm demonstrado a eficácia da terapia familiar face às abordagens psicoterapêuticas individuais na AN clássica (Fishman, 2006). De entre as muitas técnicas e concetualizações desenvolvidas para o tratamento efetivo da AN, uma das melhor sucedidas é a do almoço terapêutico. Técnica introduzida por Salvador Minuchin com vista à iniciação da família da pessoa anorética no tratamento. De acordo com Rosman,

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Minuchin e Libman (1975, cit. por Fishman, 2006) o almoço terapêutico com a família fornece oportunidades excecionais ao terapeuta para realizar a observação das transações familiares em torno da alimentação assim como realizar intervenções in loco, com vista a modificar os padrões dessas transações. Esta sessão também permite um propósito diagnóstico mais amplo, uma vez que as características estruturais e disfuncionais da família estão mais a descoberto neste contexto. Na experiência clínica de Fishman (2006) a sessão de almoço terapêutico expõe os padrões familiares problemáticos e a intervenção do terapeuta no momento, como que força a uma necessidade de mudança. Os resultados obtidos são por norma muito positivos, pois a jovem começa a comer mais adequadamente e os pais conseguem mudar os seus padrões transacionais.

Assim, torna-se difícil cuidar apenas da paciente sem a inserir no seu contexto familiar. A psicodinâmica da família interpõe-se na doença, sendo necessária a realização de intervenções familiares, aconselhamento e fornecimento de apoio, quer para a paciente, quer para os seus familiares (Lupo, 2004).

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