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A compreensão do princípio democrático à luz dos distintos modelos de democracia

2 PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO COMO FUNDAMENTO JURÍDICO DO CONAMA

2.1 O PAPEL DO PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO NA INTERPRETAÇÃO DO DIREITO AMBIENTAL

2.1.1 A compreensão do princípio democrático à luz dos distintos modelos de democracia

Em sua obra “Teoria da Democracia Revisitada”, Giovanni Sartori aborda a democracia etimológica, ou seja, a concepção democrática no sentido original, segundo a qual ela simplesmente significa “o governo ou poder do povo”133

.

A definição etimológica de democracia passou por um processo evolutivo de maneira que, na contemporaneidade, a palavra “democracia” tem sido aplicada a diversas dimensões da vida humana, ex. economia, religião, esportes, etc. Em virtude disso, Sartori estabelece uma distinção entre macrodemocracia e microdemocracia, com a primeira designando a democracia no sentido político e a segunda se referindo às manifestações fragmentadas em que se exerce o compartilhamento das decisões de maneira localizada ou setorial134.

Sob a ótica macrodemocrática, a democracia política é tradicionalmente dividida em três categorias quanto a forma de exercício do poder: democracia direta, democracia indireta e

131

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional ambiental português: tentativa de compreensão de 30 anos das gerações ambientais no direito constitucional português. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. Direito constitucional ambiental brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 4-5. 132

Ibid., p. 5. 133

SARTORI, Giovanni. Teoria da democracia revisitada: o debate contemporâneo. São Paulo: Ática, 1994, v. 1, p. 40.

134

democracia semidireta135.

A democracia direta foi o modelo concebido por Jean-Jacques Rousseau, o qual inspirado na experiência ateniense, afirmava que “toda lei que o povo não tenha ratificado diretamente é nula, não é uma lei”. E prossegue o referido autor iluminista que “sendo a lei apenas a declaração da vontade geral, torna-se claro que, no poder legislativo, o povo não pode ser representado”, sendo o povo o autêntico soberano136

.

Ela se encontra caracterizada pelo fato de que a legislação, assim como as principais funções executivas e judiciárias, serem exercidas pelos cidadãos em assembléia popular ou assembléia primária, sendo aplicada a pequenas comunidades, v.g., a Landsgemeinde realizada em alguns Cantões da Suíça137.

Considerada por John Stuart Mill como um tipo ideal de governo perfeito138, a democracia representativa ou indireta “(...) significa que o povo inteiro, ou pelo menos grande parte dele, exercite, por intermédio de deputados periodicamente eleitos por ele, o poder do controle supremo, que deve existir em algum lugar em todas as constituições”139.

A democracia semidireta seria, na realidade, a “democracia representativa com a incorporação de alguns institutos de participação direta do povo nas funções de governo”140

. Dessa forma, os cidadãos teriam um raio de atuação bastante limitado aos poucos institutos que estivem previstos pelo ordenamento jurídico.

Na contemporaneidade, observa-se um exaurimento das tentativas de escolha de uma dos modelos como o ideal, mesmo em modelos mistos como a democracia semidireta. Para Gomes Canotilho a democracia contemporânea tem acolhido “os mais importantes postulados da teoria democrática representativa” (separação de poderes, eleições periódicas, órgãos representativos, pluralismo político) e também implicado na “estruturação de processos que ofereçam aos cidadãos efectivas possibilidades de aprender a democracia, participar nos processos de decisão, exercer controlo crítico na divergência de opiniões”, ou seja, em uma democracia participativa141.

135

SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 47. 136

ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios do direito político. 3. ed. 4. Tir. Trad.: Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 114-115.

137

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. Trad.: Luís Carlos Borges. 3. ed. 2. tir. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 412-413.

138

MILL, John Stuart. Considerações sobre o Governo Representativo. Trad.: Manoel Innocêncio de L. Santos Jr. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981, p. 38.

139

Ibid., p. 47. 140

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 136. 141

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 288.

Para Diogo Moreira Neto, a democracia participativa é uma dimensão política caracterizada pelo exercício direto da soberania pelo povo através de instrumentos legislativos, administrativos e judiciais142.

A democracia participativa se caracteriza pela participação direta e pessoal dos cidadãos na formação dos atos governamentais, participação essa que ocorre de maneira coletiva e organizada143. Ela aprofunda a experiência democrática semidireta ao buscar ampliar o raio de influência dos cidadãos nos processos decisórios.

De acordo com Paulo Bonavides, a democracia pode ser compreendida como um “processo de participação dos governados na formação da vontade governativa; participação que se alarga e dilata na direção certa de um fim, todavia, inatingível”144

. Dessa forma, na conjuntura contemporânea, não é possível mais pensar em um estado democrático de direito que não seja participativo.

As concepções de democracia representativa e de democracia participativa têm passado por um processo de interação na conjuntura pós-moderna, sendo essa combinação operada de duas formas: a coexistência, com a convivência, em níveis diversos, das diferentes formas de procedimentalismo, organização administrativa e variação de desenho institucional; e a complementariedade baseada no reconhecimento governamental de certas práticas participativas como efetivos substitutos de alguns mecanismos representativos de deliberação145.

Em que pese os diferentes modelos democráticos listados acima, de fato, a realidade contemporânea não se desvencilhado de uma crise fundamental que atinge as instituições políticas, a crise da democracia, uma crise de identidade na qual “o povo soberano não se reconhece mais no aparelho do Estado que o governa”146

.

Contemporaneamente, o direito sofreu uma significativa mudança com a virada linguística (linguistische Wende) proporcionada pela filosofia da linguagem no início do século XX. Essa mudança deslocou o debate entre as abordagens metafísicas e as

142

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito da participação política: fundamentos e técnicas constitucionais da democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 1992, p. 159.

143

SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 51. 144

BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 57- 58.

145

SANTOS, Boaventura de Sousa; AVRITZER, Leonardo. Para ampliar o cânone democrático. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 75-76.

146

GOYARD-FABRE, Simone. O que é democracia? A genealogia filosófica de uma grande aventura humana. Trad.: Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 282.

materialistas para um seguido plano e colocou a linguagem como um meio de compreensão do mundo147.

Essa ruptura possibilitou “a construção de uma hermenêutica jurídica que problematiza as recíprocas implicações entre discurso e realidade”, demonstrando a existência de um “processo de produção, circulação e consumo do discurso jurídico”, no qual apenas por meio da linguagem seria “possível ter acesso ao mundo (do Direito e da vida)”148

.

Essa abordagem problematizadora foi apreendida por Habermas ao aplicar a teoria da ação comunicativa ao fenômeno jurídico, desenvolvendo uma teoria discursiva do direito que interpreta o estado democrático de direito à luz de uma política deliberativa.

Fruto dessa abordagem, a democracia deliberativa constitui uma concepção contemporânea que pretende aprofundar o princípio participativo. Partindo dessa idéia, adota- se o referencial habermasiano como linha de compreensão do princípio democrático deste trabalho, considerando a contribuição desse filósofo alemão para a idéia de uma democracia deliberativa na qual os próprios indivíduos exercem uma autonomia pública consistente na capacidade de serem, concomitantemente, coautores e destinatários das normas jurídicas produzidas.

Essa abordagem habermasiana será explorada no subtópico relativo à legitimidade democrática do CONAMA para a criação do direito ambiental que se encontra no último capítulo deste trabalho. Também no referido subtópico deste trabalho, haverá uma curta menção à análise microdemocrática quando forem abordadas as dimensões associativa e participativa da democracia ambiental.

2.1.2 Contribuição da teoria do discurso jurídico de Jürgen Habermas para a análise do