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Na vida da Jurisdição, no espaço da atuação do juiz e da produção de decisões, a presença de automatismos constitui perigo de dano ou, quando o menos, concretizam a certeza do potencial de perigo que a ausência ou alheamento da sensibilidade humana é capaz de representar.

Um ensaio de propostas no intuito da diminuição do automatismo judicial deve iniciar com a constatação simples e de suma relevância que propõe Marco Bruno Miranda

Clementino, ou seja, a de que “parar para pensar é uma boa solução para o direito”.461 Se a

intenção é afastar o automatismo, nada melhor que a atitude reflexiva para superar essa inércia, estática ou dinâmica, a que o juiz de hoje está submetido.

No Habeas Corpus 93.157/SP,462 o ministro Ricardo Lewandowski do Supremo

Tribunal Federal, em voto vencido, entendeu por conceder a ordem dada a violação do dever de fundamentação das decisões e no intuito pedagógico463 de alertar os juízes a não aplicarem

de forma automática a produção antecipada de provas prevista no art. 366 do CPP.464

Sobre esse Habeas Corpus, Lenio Luiz Streck465 identifica um “atuar conforme a

própria consciência” no automatismo do juiz de primeira instância que determinou a produção antecipada de provas à vista do mero fato de o réu encontrar-se foragido. Entretanto, a racionalidade do juiz na decisão, ao que parece, obedecia a uma lógica do tipo “se x, então y”, é dizer, inexistiu, propriamente, um parar para pensar, mesmo que para fazer prevalecer a determinação da própria consciência. É preciso dizer, até, que a atuação foi inconsciente, no sentido de não refletida.

Como adverte José Ortega y Gasset, viver é dirigir-se ao mundo, é atuar no mundo, e, nesse sentido, a pessoa que está no piloto automático não vive.466

Esse atuar de que fala José Ortega y Gasset revela um nível de comprometimento com a realidade circundante, onde o magistrado dirige-se à sociedade com percepção de

461 CLEMENTINO, Marco Bruno Miranda. Por que filosofar? FIDES, Natal, v. 1, n. 1, fev./jul. 2010. p. 30.

Disponível em: <http://www.revistafides.com/ojs/index.php/br/issue/view/1>. Acesso em: 11 jun. 2013.

462 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Habeas Corpus 93.157/SP. Primeira Turma. Rel. Min. Ricardo

Lewandowski. Rel. para Acórdão Min. Menezes Direito. J. 23/09/2008. DJe. 216, div. 13/11/2008, publ.

14/11/2008. Inteiro teor. Disponível em:

<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=561169>. Acesso em: 15 jan. 2014.

463 Esse viés pedagógico é dito pelo ministro nas páginas 372 e 380 do inteiro teor do Acórdão. Cf. nota anterior. 464 De acordo com o art. 366 do Código de Processo Penal brasileiro: "Se o acusado, citado por edital, não

comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312". Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto- lei/Del3689Compilado.htm>. Acesso em: 15 jan. 2014.

465 STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2010. p. 31-32.

pertencimento, no sentido de que o juiz também é parte integrante, e com demonstração de atuação consciente e autêntica na área do conhecimento humano a que está encarregado.

Paulo Freire entende que o compromisso do profissional com a sociedade emerge quando da sua participação comprometida, quando da sua verdadeira generosidade e quando o profissional mostra-se multilateral na interação do comprometimento mútuo.467

A capacitação humana e humanística do magistrado é imprescindível no sentido de afastá-lo dos automatismos de pensamento e ação. O juiz está imerso na sociedade como parte que habita o corpo social, e sua função precípua, a do magistrado, é de atuar em benefício da sociedade de forma comprometida,468 técnica e humanisticamente comprometida.

Daí que Paulo Freire vai afirmar:

Se o compromisso só é válido quando está carregado de humanismo, este, por sua vez, só é conseqüente quando está fundado cientificamente. Envolta, portanto, no compromisso do profissional, seja ele quem for, está a exigência de seu constante aperfeiçoamento, de superação do especialismo, que não é o mesmo que especialidade. O profissional deve ir ampliando seus conhecimentos em torno do homem, de sua forma de estar sendo no mundo, substituindo por uma visão crítica a visão ingênua da realidade, deformada pelos especialismos estreitos.469

Esse profissional que atua utilizando-se de reflexões críticas é o juiz que consegue parar para pensar. Ele interage nas tarefas da Jurisdição tendo anteparo numa formação humana e humanística, que tem no ser humano o cidadão a quem deve dedicar as suas reflexões jurídicas banhadas da percepção do contexto da cultura e da noção atuante da garantia de direitos.

467 FREIRE, Paulo. Educação e mudança. 29. ed. São Paulo: Paz e terra, 2006. p. 19 e 21.

468 Em entrevista sobre mutirão de julgamento de processos de seu gabinete, o ministro Mauro Campbell do

Superior Tribunal de Justiça destacou que comprometimento é fundamental no sentido de afastar automatismos num ambiente de Jurisdição de massa: “Se nós não tivermos esses comprometimentos com o que nós fazemos vamos entrar no automatismo. O meu temor da jurisdição de massa, que é essa nossa, é a jurisdição de injustiça, de você julgar tecnicamente. No meu gabinete, nós não só fazemos um controle de produtividade como o de eficiência”. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Mauro Campbell realiza mutirão para julgar processos. Site

do STJ, Sala de Notícias, Rádio, 31 ago. 2009. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/portal_stj/

publicacao/engine.wsp?tmp.area=448&tmp.texto=93455>. Acesso em: 15 jan. 2014. Cabe ressalva o ponto de que julgar tecnicamente não implica numa Jurisdição de injustiça, além do que as noções de produtividade e eficiência guardam compatibilidade com o ato de julgar tecnicamente.