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Os modelos de juízes mitológicos de Ronald Dworkin, François Ost,Marcelo Neves e outros autores mais que venham a tratar do tema partem sempre da elaboração de modelos teórico-jurídicos associados a personagens da mitologia universal no intuito de prover uma elucidação quanto ao meio ou modo através do qual a Jurisdição ou o direito é ou devam ser operacionalizados.

A construção de modelos teórico-jurídicos com base em personagens mitológicos tem como virtude facilitar a compreensão de teorias descritivas da atuação judicial. Um exemplo disso está na construção do modelo de juiz Hercules.

Criado por Ronald Dworkin, o juiz Hercules representa “um jurista de capacidade, sabedoria, paciência e sagacidade sobre-humanas”.404 Seria um juiz que aceita as principais

regras não-controversas que regem o direito da sua Jurisdição, mas que, nos seus julgamentos, também adentra na análise de filosofia política quando seja necessária a decisão de casos difíceis (hard cases).

Para Hércules, os precedentes atuam sob uma força gravitacional de uns sobre os outros, onde os primeiros estabelecem regras gerais que são assimiladas pelos julgados seguintes por argumentos de equidade – ou coerência. Todavia, Hércules conclui que “se deve

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A este respeito, Miguel Reale assinala: “a ética do juiz não pode ser reduzida a um catecismo de deveres abstratos, pressupondo, ao contrário, a vivência do Direito em sua circunstancialidade cultural”. REALE, Miguel. A ética do juiz na cultura contemporânea. In: NALINI, José Renato (Coord.). Uma nova ética para o

juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 139.

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DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 165.

limitar a força gravitacional das decisões anteriores à extensão dos argumentos de princípios necessários para justificar tais decisões”.405

O juízo de decisão de Hércules leva em consideração, logo desde o início, as suas convicções políticas406 de forma a complementar o direito onde o caso difícil necessite; ao

contrário do juiz Herbert – outro modelo de juiz criado por Dworkin – que primeiro verifica os limites do direito para, só então, aplicar um juízo discricionário.407

É de se perceber que o juiz Hércules é um modelo criado para a descrição de uma teoria do direito que diz respeito a um modelo de racionalidade de decisão judicial em contraposição teórica a Herbert L. A. Hart.408 Ronald Dworkin busca a resposta correta ou a

melhor dentre todas as possíveis; Herbert L. A. Hart, uma aplicação da discricionariedade judicial onde as regras do direito não sejam suficientes para decidir, e nisto assemelha-se ao formato de moldura que Kelsen descreve no capítulo 8 da “Teoria Pura do Direito”.409

405 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins

Fontes, 2007. p. 177.

406 A questão de levar em conta “suas convicções políticas” não quer dizer que o juiz Hércules emita simples

juízo de opinião particular, mas que, em outro sentido, leva em consideração as convicções políticas dos demais membros na comunidade – moralidade comunitária – antes de exarar essas convicções dele. Escreve Ronald Dwordin: “um juiz pode basear-se em sua própria crença em um sentido diferente: considerando a verdade ou a solidez da crença”. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 194. E Dworkin diz mais: “A teoria da decisão judicial de Hércules não configura, em momento algum, nenhuma escolha entre suas próprias convicções políticas e aquelas que ele considera como as convicções políticas do conjunto da comunidade. Ao contrário, sua teoria política identifica uma concepção particular de moralidade comunitária como um fator decisivo para os problemas jurídicos; essa concepção sustenta que a moralidade comunitária é a moralidade política que as leis e as instituições da comunidade pressupõem”. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 197. Em concepção complementar, cf.: DWORKIN, Ronald. O império do

direito. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 378.

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DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 195-196. Esse modelo do juiz Herbert seria semelhante ao que descreve Hart em sua teoria para a solução dos casos difíceis. Cf.: HART, Herbert L.A. O conceito de direito. Trad. de A. Ribeiro Mendes. 5.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. p. 335. Acrescente-se, por fim, que Dworkin não parou por aí na criação de modelos de juiz, basta mencionar o juiz Hermes “que é quase tão arguto quanto Hércules e igualmente tão paciente, e também aceita o direito como integridade assim como aceita a teoria da intenção do locutor na legislação. Acredita que a legislação é comunicação, que deve aplicar as leis descobrindo a vontade comunicativa dos legisladores [...]”. DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 382.

408 HART, Herbert L.A. O conceito de direito. Trad. de A. Ribeiro Mendes. 5.ed. Lisboa: Fundação Calouste

Gulbenkian, 2007. p. 335.

409 NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: Martins Fontes,

2013. p. XVI. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. 7.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. cap. VIII.

O acatamento do modo de decidir baseado no modelo do juiz Hércules não implica, necessariamente, erro ou acerto na escolha da melhor teoria, mas sim uma opção por um modo de racionalidade jurídica.

E há outros modelos de juízes mitológicos. A partir da tripartição de François Ost,410

podemos visualizar um juiz servo das normas, juiz Júpiter; um juiz transformador da realidade, mas dependente do Judiciário enquanto instituição, juiz Hércules; e um juiz interativo-comunicacional que independe de hierarquias e é atualizador da dinâmica social, juiz Hermes. Para Germano Schwartz, o juiz Hermes de François Ost é o preferido para lidar com a complexidade da sociedade contemporânea.411

Na doutrina brasileira, Marcelo Neves também elabora sua teoria sobre a figura mitológica de Hércules, mas com uma concepção diferente da de Ronald Dworkin e de François Ost. Marcelo Neves adentra na discussão sobre a função das regras e princípios e utiliza-se de referência à mitologia grega – a história do segundo trabalho de Hércules – para afirmar que “enquanto os princípios abrem o processo de concretização jurídica, instigando, à maneira de Hidra, problemas argumentativos, as regras tendem a fechá-lo, absorvendo a incerteza que caracteriza o início do procedimento de aplicação normativa”. 412 Ou seja, para o

modelo teórico elaborado por Marcelo Neves, o trabalho hercúleo cabe às regras, e não aos princípios como sugere a atuação do juiz Hercules de Ronald Dworkin ou de François Ost.

Pensar alternativas ao fluxo judicial ou interpretativo, produzir sentidos de ação como justificantes das opções teórico-práticas encontradas, ilustrar as soluções através de alegorias que tornem mentalmente mais palpável a aceitação dos modelos, em tudo isto

410 OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez. DOXA: Cuadernos de Filosofía del Derecho,

n. 14, 1993, p. 169-194. Disponível em: <http://bib.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/013606298 72570728587891/index.htm>. Acesso em: 12 maio 2013.

411 SCHWARTZ, Germano. A Constituição, a literatura e o direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado,

2006. p. 25-27.

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NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: Martins Fontes, 2013. p. XVIII.

contribui a doutrina quando se ocupa dos problemas do direito e se lança na empresa de propor os caminhos mais seguros ou menos temerosos a serem trilhados.

Contudo, e aqui partilhando do ensinamento popular de que nem só de pão vive o homem, tanto no direito quanto na arte os caminhos que conduzem à satisfação do espírito humano nem sempre se pautam pela estrita adequação aos comandos jurídicos, uma vez que atuam na busca da justiça e do belo. 413

A imaginação, como dizia Mário Moacyr Porto, “resume o universo, não em modelos que o expliquem, mas em representações que o manifestem”.414

E é nesse patamar de sentido prático, no dos pensamentos da razão prática, que as relações sociais se desenvolvem e que, em última instância, a justiça e a Jurisdição são compreendidas aos olhos do povo que integram o observatório popular do Judiciário.

Interessa ao homem comum saber o que o juiz decidiu e a adequação dessa decisão aos parâmetros de justiça auferidos das regras sociais de convívio. É certo que a exposição dos motivos é a alma do julgamento,415 e que o controle da juridicidade (legalidade em

sentido amplo) é essencial à integridade do direito, mas essa verificação e esse controle cabem aos juristas, é sua função precípua.

Ao povo interessa o bom andamento da ordem, a boa distribuição da justiça, e tudo segundo as possibilidades delineadas nos fatos da vida. Se fulano matou, merece uma pena; se

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Sobre a penetração do belo no direito, Maria Francisca Carneiro registra: “Quer seja pela harmonia, ritmo e equilíbrio dos textos e das decisões; que seja pelas proporções entre conteúdo, método e resultados formais; ou que seja pelo virtuosismo idiossincrático das inovações pretorianas, não se pode negar a presença do belo em muitos atos da justiça”. CARNEIRO, Maria Francisca. Direito, estética e arte de julgar. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2008. p. 46.

414 PORTO, Mário Moacyr. Estética do direito. Revista do Curso de Direito: Universidade Federal do Rio

Grande do Norte, Natal, v. 1, n. 1, jan./jun. 1996. p. 23.

415 Para Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave, há diferença entre decisão e julgamento: a decisão é a

explicitação de comando normativo para o caso concreto enquanto que o julgamento estaria na exposição de motivos da construção judicial, ou seja, o julgamento é a alma do julgado que serve de orientação para decisão dos casos futuros, passando a integrar o direito e os novos fundamentos do decidir. PRESGRAVE, Ana Beatriz Ferreira Rebello. A vinculação nas decisões de controle de constitucionalidade e nas súmulas vinculantes: uma análise crítica da atuação do Supremo Tribunal Federal. 2013. 238f. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal de Pernambuco. CCJ. Programa de Pós-Graduação em Direito, 2013. Cap. VI-2.

roubou ou furtou merece outra menor; se furtou por necessidade de sobrevivência, talvez aqui nenhuma pena seja apropriada. É o imaginário de que as ações humanas devem ser limitadas para possibilitar o convívio.

É na confluência das racionalidades dos juristas e do povo que está o melhor direito. A racionalidade dos juristas aponta e descreve os caminhos normativos a serem trilhados; a do povo traça os parâmetros da legitimidade e aceitabilidade das decisões, e da assimilação e apreensão das diretivas do agir em sociedade.

É certo que os juízes mitológicos são deveras uma estratégia de apresentar ideias através de embalagens intelectualmente assimiláveis, mas nem sempre as ideias com embalagens bonitas podem ou devem ser admitidas como interessantes, coerentes ou mesmo aceitáveis.416

A adoção de um ou outro modelo de juiz mitológico como fonte de reflexões na atividade da Jurisdição, ou como proposta de racionalidade na interpretação e aplicação do direito, será sempre bem-vinda quando atentar para o fato de que o direito existe enquanto campo do conhecimento que atua no regramento para a sociedade e em benefício desta.

416 Um exemplo de ideia inaceitável seria pensar numa ‘teoria de juízes fruta’ e querer elaborar para a teoria

insensata um programa a ser seguido. Ora, é corrente na sociedade brasileira atual um fenômeno social, ou midiático, que se constitui em apresentar os atributos físicos de mulheres através de nomes de frutas. Daí tem-se ‘mulher melancia’, ‘mulher moranguinho’, ‘mulher melão’ e outras tantas. Até a ficção das novelas televisivas já adotou uma ‘mulher mangaba’. Partindo-se da ideia de ‘mulheres frutas’, um jurista mais ou menos desavisado poderia pensar na pertinência e relevância de se criar ‘juízes frutas’. Algo assim: um ‘juiz abacaxi’ que teria nota distintiva em criar problemas ao juízo e à Jurisdição; um ‘juiz caju’ que se apresenta como simbologia de um juiz doce, mas que é tanto juiz quanto o caju é uma fruta (e caju é pseudofruto); um ‘juiz castanha’ que rígido e inflexível e nem aparenta ser juiz, mas que é juiz e firme assim como a castanha é fruto e dura; um ‘juiz limão’ que é azedo, mas que faz muito bem à saúde; um ‘juiz coco verde’ que é resistente às adversidades e apreciado por aplacar a sede de justiça; e tantos outros ‘juízes fruta’ quanto a imaginação seja capaz. Claro, como se disse, a ideia é insensata.