• Nenhum resultado encontrado

NEM O JUIZ É MESSIAS NEM A CONSTITUIÇÃO A SALVAÇÃO

A garantia de uma vida digna aos cidadãos e à sociedade também passa pela esfera judicial de proteção. As esferas de poder que compõem o Estado devem atuar no sentido de promover uma sociedade mais livre, justa e solidária (CF, art. 3º, inc. I), e a garantia de acesso à Jurisdição (CF, art. 5º, inc. XXXV) é um dos meios470 ou instrumentos na busca de

concretizar o plexo de direitos fundamentais que devem ser garantidos e protegidos.

Mas o magistrado não será o messias471 redentor do ambiente distópico, do plano

social repleto das más afetações aos direitos fundamentais, mas sim o profissional do direito responsável pela manutenção e proteção da ordem jurídica em favor da sociedade, tendo no indivíduo seu ponto alto de atenção protetiva.472

Nem a Constituição será a responsável pela salvação nacional. Com diz Karl Loewenstein, “a constituição não pode salvar o abismo entre pobreza e riqueza; não pode

470

Diversos dispositivos da Constituição Federal de 1988 garantem o diálogo do cidadão com o Estado na cobrança de direitos e deveres: direito de receber informações dos órgãos públicos (art. 5º, inc. XXXIII), direito de petição (art. 5º, inc. XXXIV, “a”), direito de obter certidões (art. 5º, inc. XXXIV, “b”), e mesmo as garantias processuais de “habeas-corpus” (art. 5º, inc. LXVIII), mandado de segurança (art. 5º, inc. LXIX), mandado de segurança coletivo (art. 5º, inc. LXX), mandado de injunção (art. 5º, inc. LXXI) e “habeas data” (art. 5º, inc. LXXII) são algumas das possibilidades previstas na Constituição.

471 Daí que Paulo Freire vem a consignar: “Não devo julgar-me, como profissional, ‘habitante’ de um mundo

estranho; mundo de técnicos e especialistas salvadores dos demais, donos da verdade, proprietários do saber, que devem ser doados aos ‘ignorantes e incapazes’. Habitantes de um gueto, de onde saio messianicamente para salvar os ‘perdidos’, que estão fora. Se procedo assim, não me comprometo verdadeiramente como profissional nem como homem. Simplesmente me alieno”. FREIRE, Paulo. Educação e mudança. 29. ed. São Paulo: Paz e terra, 2006. p. 21.

472

O discurso fácil de que a tudo se aplica a “função social” pode comprometer os direitos fundamentais do cidadão. É preciso atentar para o fato de que a noção de “função social” é diversa de “função socialista”. Um exemplo está na “função social da propriedade”. Ora, a propriedade é um direito fundamental de primeira geração ao qual, em situações específicas, pode ser aplicada a tese da “função social”, bem como restrições ao direito de propriedade que são até anteriores a essa ideia de função advinda do pensamento de Léon Duguit. Nesse sentido, o magistrado deve voltar sua atenção protetiva primeiramente para a “função individual da propriedade”, que é a regra geral. A propriedade serve primeiro ao indivíduo para, só depois, servir à sociedade. Não por acaso o termo propriedade advém do latim “proprius”. Além disso, em verdade, servindo ao indivíduo já é uma forma de a propriedade servir ao todo social; e a garantia da propriedade de um será, por igual, a garantia do direito de propriedade de todos.

trazer comida, nem casa, nem roupa, nem educação, nem descanso, ou seja, as necessidades essenciais da vida”. 473

José Eduardo Sapateiro escreve: “nenhum Juiz é uma ilha. Cercada de cidadãos. Ou sequer um Robinson Crusoé. Civilizando Sextas-Feiras. Partilha antes, ombro a ombro com a comunidade onde se encontra inserido, o sentir e devir coletivos”.474

Civilizar Sextas-Feiras, decerto, está distante do que cabe ao Judiciário fazer, tal qual lhe são indevidas as funções de messias,475 de profeta e de visionário iniciador da revolução

cultural do mundo contemporâneo. 476

A cultura da sociedade diz o que a sociedade diz de si mesma, e essa cultura deve ser observada e respeitada nas resoluções judiciais. É preciso prudência na identificação e declaração de possíveis mudanças no percurso da evolução sociocultural.

Daí que a diretiva deva ser a de que o juiz deve caminhar pelos passos trilhados pelo direito, deve buscar ater-se à esfera jurídica quando das decisões jurídicas que deva tomar, uma vez que essas decisões partem – devem partir – do sentimento jurídico social, que é apanhado pelo Legislativo na edição do direito posto. Nesse sentido, é semelhante ao que Mario Benedetti477 escreve sobre caminhar pelo sonho dos outros. O percurso é feito pelo

473 Tradução livre de: “la constitución no puede salvar el abismo entre pobreza y riqueza; no puede traer ni

comida, ni casa, ni ropa, ni educación, ni descanso, es decir, las necesidades esenciales de la vida”. LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. Trad. de Alfredo Gallego Anabitarte. 2.ed. Barcelona: Ariel, 1979. p. 229.

474 SAPATEIRO, José Eduardo. Ser juiz hoje. In: RANGEL, Rui (Coord.). Ser juiz hoje. Coimbra: Almedina,

2008. p. 28.

475 Diz João Maurício Adeodato: “não se deve idealizar que a concretização da Constituição, por intermédio da

jurisdição constitucional, seja panaceia para resolver problemas brasileiros de ordem inteiramente distinta, tais como educação, previdência, fome e violência. [...] É ingênua essa visão messiânica da jurisdição constitucional[...]”. ADEODATO, João Maurício. A retórica constitucional: sobre tolerância, direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 203.

476 A esse respeito, ponderando a importância como agente de transformação, afirma Dalmo de Abreu Dallari

sobre o Judiciário: “É evidente que, por sua própria natureza, a magistratura não pode assumir o papel de uma vanguarda revolucionária, mas, sem dúvida, pelo significado social de suas funções e pelo alcance que podem ter suas decisões, a magistratura pode e deve assumir a condição de participante ativa do processo de mudança social”. DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 53.

477 Diz Mario Benedetti: “El hombre caminaba por el sueño, pero no por el proprio. Caminaba por el sueño de

los otros”. BENEDETTI, Mario. Pasos del hombre. In: ______. El porvenir de mi pasado. Madrid: Alfaguara, 2010. p.75.

magistrado, mas seguindo os parâmetros do direito ditado pela sociedade através de seus representantes no Poder Legislativo.

A posição de “juiz desconfiado do legislador” revela uma atitude de descrença institucional que pouco ou nada contribui para o desenvolvimento da democracia. Antes o contrário, o que é o caso do perigo de ingerência sobre a vida das leis478 e também o perigo do

populismo judicial. 479

A atuação política dos juízes não implica em que o Judiciário funcione como observatório do Legislativo.480 A função política dos juízes deve ser exercida no âmbito dos

processos, de onde emana as noções gerais de direito aplicadas ao ambiente vivencial de uma sociedade e de um Estado e, com isso, informa e educa a sociedade e fornece subsídios para que o legislador possa reavaliar, sendo o caso, os caminhos e percursos de sua política legislativa. Exacerbar o juiz da função de julgar é querer corromper a harmonia de convivência e entrar no campo de decisões que a Constituição outorga ao legislador.

As ideias de ‘legislador desconfiado’ e ‘juiz desconfiado’ são trabalhadas por André Ramos Tavares481 como contrapontos sob os quais efluem para o constitucionalismo da

contemporaneidade tanto aspectos positivos, decorrentes da vigilância mútua entre Poderes na busca de melhor atuação; quanto negativos, concernentes ao perigo da interpenetração no sentido de ‘usurpação’ de funções.

478 Afirma André Ramos Tavares que “a ideia de juízes desconfiados, especialmente desconfiados do legislador,

impõe, por assim dizer, uma releitura de um fenômeno amplamente discutido, o fenômeno do ‘poder de destruição’ da lei, atribuído (ou autoatribuído) ao juiz constitucional”. TAVARES, André Ramos. Juízes desconfiados. In: ______. Paradigmas do judicialismo constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 19.

479 O ‘populismo judicial’ ocorre quando o juiz, na busca de popularidade, atua visando provocar nos

jurisdicionados sentimentos emotivos de aprovação às suas decisões e seus procedimentos. André Ramos Tavares entende que o ‘populismo judicial’ é nocivo, devendo ser “combatido e banido das práticas judiciais”. TAVARES, André Ramos. Juízes desconfiados. In: ______. Paradigmas do judicialismo constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 22-23.

480

Em sentido contrário, ao que parece, André Ramos Tavares admite a desconfiança no legislador no sentido de “um dever funcional da magistratura”, ou seja, uma espécie ou “hipótese de desconfiança institucional”. TAVARES, André Ramos. Juízes desconfiados. In: ______. Paradigmas do judicialismo constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 26.

481

TAVARES, André Ramos. Juízes desconfiados. In: ______. Paradigmas do judicialismo constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 19-31.