GLOSSÁRIO
XII) Comunicado sobre as Demolições no Bairro de Santa Filomena
A Plataforma Gueto vem por este meio denunciar a forma racista e desumana como, no Bairro de Santa Filomena, está a ser conduzido o processo de demolição de casas e de desalojamento dos moradores. Declaramos que:
1-‐ Uma parte da população do bairro está a ser deliberada e criminosamente desconsiderada neste processo.
O recenseamento do PER, de 1993, anterior às últimas vagas de importação de mão-‐de-‐obra barata, nos períodos extraordinários de regularização de 1996 e 2002, que vieram preencher as necessidades da explosão do mercado de construção e de serviços, fruto dos subsídios da U.E., e que permitiram a Portugal levantar pontes, centros comerciais, estádios, estradas, linhas de metropolitano, condomínios fechados e tantas outras infra-‐estruturas. Hoje, 19 anos mais tarde, esse recenseamento é obsoleto, ignorando os moradores que se instalaram após 1993 e tanto contribuíram económica, social e culturalmente para este país.
2-‐ Este é um processo de higienização urbana e, como tal, não estão a ser respeitados os direitos humanos da população que a Câmara Municipal da Amadora pretende deslocar. Estes trabalhadores, altamente vulneráveis perante a crise económica, são, na conjuntura actual, considerados mão-‐de-‐obra supérflua. É por isso que estão a ser expulsos dos seus lares, deslocados como objectos e afastados do centro da cidade. Este fenómeno tem contornos de:
• Especulação imobiliária – existe pressão dos residentes do empreendimento de Vila Chã para remover o Bairro de Santa Filomena da vizinhança, dado que o valor dos apartamentos é reduzido pela proximidade do bairro;
• Campanha eleitoral – os votos dos residentes adversos à existência do Bairro de Santa Filomena estão aqui em causa. Enquanto isto, os direitos da população do bairro, constituída maioritariamente por imigrantes (pessoas sem direito ao voto), são negligenciados; • E evidente racismo ambiental – assistimos à expulsão dos moradores negros e imigrantes para as zonas periféricas da cidade, mal servidas de transportes e serviços básicos, e onde a única presença institucional são as forças policiais e órgãos dos serviços sociais.
3-‐ Através de mentiras, estão a ser feitos esforços por parte da Câmara Municipal da Amadora e da Santa Casa da Misericórdia para neutralizar qualquer resistência da população, alegando terem sido prestados apoios e alternativas aos moradores.
Os técnicos sociais da Câmara Municipal da Amadora e da Santa Casa de Misericórdia estão a tentar prevenir uma resposta colectiva dos moradores do bairro, servindo-‐se de dados pessoais compilados durante a prestação de serviços sociais. Oferecem soluções individuais de curto prazo, como a “caução e renda”, disponibilizadas através do fundo de emergência social. Esta “caução e renda” consiste no pagamento de 2 meses de renda no mercado de arrendamento livre, após o qual os visados não terão qualquer auxílio. Face à frágil situação económica e às dificuldades na obtenção de emprego, após os 2 meses de “apoio”, nenhuma das famílias terá condições de sustentar o pagamento de uma renda. Portanto, aquilo que, nos meios de comunicação social, foi chamado de “soluções propostas que alguns moradores recusaram” é uma forma de ludibriar os moradores para levá-‐los a sair das suas casas de maneira a que estas possam ser demolidas e, simultaneamente, a Câmara Municipal seja ilibada de todas as suas responsabilidades.
4-‐ Está a ser levada a cabo uma campanha de chantagem e pressão sobre os moradores do Bairro de Santa Filomena.
Assistentes sociais e outros técnicos da Câmara Municipal e Santa Casa de Misericórdia estão a ceder à polícia, fiscais e outras entidades envolvidas neste processo, dados pessoais sigilosos, recolhidos anteriormente para efeito de apoios sociais. Agora, toda essa informação serve para chantagear e pressionar os moradores que recusarem os apoios supracitados, de modo a que estes abandonem os seus lares.
5-‐ Todo este processo está a ser assegurado pela violência física e psicológica das forças policiais.
O Bairro de Santa Filomena está ocupado por agentes de forças paramilitares da polícia que intimidam os moradores, violentando-‐os física e psicologicamente. Esta presença policial, tal como os assistentes sociais, demonstra o seu carácter racista no trato que dispensa aos moradores, chegando apontar-‐lhes armas de fogo como forma de coacção. Alguns exemplos podem ser dados:
• Os acima referidos técnicos estão a sugerir a moradores negros que abandonem Portugal e regressem “à sua terra”. Fazem isto até a pessoas que já possuem nacionalidade portuguesa, residem neste país há mais de duas décadas e aqui construíram as suas vidas e os seus relacionamentos humanos.
• Um morador que recusou abandonar as suas posses após a demolição da sua habitação, foi detido violentamente. Isto ocorreu após assistentes sociais, em forma de retaliação, terem alertado agentes policiais para a “situação irregular” do morador;
• Perante a entrega duma carta, por parte dos moradores, com a exposição da dramática situação à entrada da Câmara Municipal da Amadora, a polícia respondeu com agressões físicas.
Face a tudo isto, os movimentos abaixo-‐assinados vêm exigir à Câmara Municipal da Amadora:
• A suspensão imediata das demolições;
• O realojamento imediato das pessoas que ficaram sem casa por causa das demolições já realizadas;
• O recenseamento de todas as pessoas que ficaram fora do PER.
• Uma solução colectiva, ou seja, que responda ao problema do Bairro de Santa Filomena enquanto comunidade.
Vêm ainda exigir ao Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural que tome
uma posição pública sobre este processo (e outros processos de
desalojamento/realojamento), uma vez que a maioria dos moradores do bairro são imigrantes ou seus descendentes e têm no A.C.I.D.I. a sua maior representação institucional. Devemos recordar o Decreto de Lei 167/2007,à luz do qual o A.C.I.D.I. tem a obrigação de “Promover o acolhimento e a integração dos imigrantes e das minorias étnicas (…)”, como referido na alínea a), “Combater todas as formas de discriminação em função da raça, cor, nacionalidade, origem étnica ou religião (…)”, como referido na alínea d), e “Contribuir para a melhoria das condições de vida e de trabalho dos imigrantes (…)”, como referido na alínea g).
Estranhamos o silêncio do A.C.I.D.I. e das várias organizações e entidades, que se identificam ou são identificadas como defensoras dos direitos dos imigrantes e podiam, em conjunto, fazer pressão para que este processo fosse conduzido de forma digna e respeitosa para os imigrantes e população negra nacional, garantindo aquilo que é um direito humano altamente mercantilizado nos dias de hoje: o direito à habitação.
PLATAFORMA GUETO
XIII) Resposta à Alta Comissária (A.C.I.D.I.)
“Por uma vez, os negros servir-‐se-‐ão das palavras de que têm vontade de se servir, e não já somente das palavras que os brancos estão dispostos a ouvir.”
Kwame Ture (Stokely Carmichael), 1967.
No primeiro dia em que casas foram arrastadas por pás de bulldozers e os pertences dos moradores, cheios de pó, foram levados em carrinhas de caixa aberta para um depósito qualquer, como se de sucata se tratassem, vários moradores de Santa Filomena – acompanhados pela Plataforma Gueto, Colectivo Habita, SOS-‐racismo, entre outros – tentaram ser novamente recebidos pela Alta Comissária para a Imigração e Diálogo intercultural. Inicialmente, ela recusou-‐se.
Após alguma pressão à porta do ACIDI, a comissária disponibilizou-‐se a receber apenas os moradores num acto de desrespeito profundo pelos movimentos sociais. Esses Movimentos que são os únicos que estão presentes nas situações em que é o próprio funcionamento do Estado que está em causa e não há fotos para tirar com um alto representante qualquer e uns pretos de serviço ungidos líderes.
Os Movimentos estiveram presentes para reclamar ao ACIDI a sua pretensa independência política e a defesa dos imigrantes. Aqueles imigrantes que não ganham medalhas nem marcam golos por Portugal, não cantam rap higienizado, não tocam instrumentos de música
clássica, não fazem teatro, não falam bonito, não são bons exemplos de inclusão na sociedade portuguesa. Mas são imigrantes, ou já descendentes de imigrantes, negros. Portugueses negros. São a maioria! São aqueles que chegaram no que a literatura académica chama vagas de imigração, mas que não foi mais do que importação de mão-‐de-‐obra barata. Gente para vir construir, a baixo custo, a EXPO98, os estádios do Euro 2004, os túneis do metropolitano, as auto-‐estradas e os centros comerciais que Portugal vendeu ao mundo com fotos do Mourinho e da Mariza.
Não foi diferente da importação dos nove mil negros escravizados que, há quatro séculos, constituíam 10% da população de Lisboa, plantavam os campos nos arredores da cidade e faziam todo o tipo de tarefas desprestigiantes, face à escassez de mão-‐de-‐obra, apenas para serem depois escorraçados para Alcácer do Sal pelo Marquês de Pombal. Não foi diferente da importação dos que, já no século XX, foram levados de Cabo-‐Verde para São Tomé e Príncipe, através da figura dos Contratados, para as roças de cacau de Salazar, tendo como pagamento apenas um pouco de peixe seco e xerém, porrada e abandono. A esmagadora maioria dos imigrantes portugueses – sim, portugueses – são estas pessoas que, após terem contribuído tanto para as contas, imagem, cultura e valores deste país, entrando pela porta dos fundos de Lisboa, são agora escorraçados para os Alcáceres do Sal dos nossos dias. São aqueles que, do fundo das senzalas de Portugal, são brutalmente agredidos e/ou assassinados pela polícia, sem que o ACIDI arranque uma única condenação. São aqueles negros e negras que, invisibilizados por estatísticas sobre imigração onde a raça não é tida em conta, estarão, certamente, com mais de 50% da sua população desempregada – muito acima dos 15% da média nacional. São aqueles que ficaram fora do casting do programa Nós! Mas Nós quem?
No momento em que escrevemos estas palavras, a P.S.P. ocupa o bairro de Casal da Mira, com 200 paramilitares, tratando toda a população, maioritariamente negra e imigrante, como lixo. Para estes Nós, não há programa Nós.
Mas nós não somos apenas aqueles a quem o ACIDI aponta as spotligths, sempre com um guião escrito em jeito de relatório do sucesso das suas políticas. Aqueles a quem chama de líderes e coopta, arrancando das nossas comunidades uma importante parte do seu potencial e colocando-‐o ao serviço duma intervenção social que tresanda a supremacia branca.
A Alta Comissária insultou os movimentos sociais e aceitou receber apenas os moradores (talvez pensado que estes não têm consciência política ou são facilmente manipuláveis pelas
palavras de ordem do fala-‐escreve editado pelo ACIDI), mas deparou-‐se com um morador, membro da Plataforma Gueto, que a confrontou com o seu silêncio perante todas as questões aqui expostas. E a resposta da Alta Comissária foi acusar os movimentos sociais de estarem a politizar a questão do Bairro de Santa Filomena. Como se o direito à Habitação e à Propriedade, a pobreza e o racismo não fossem questões políticas!
Sim, senhora Alta Comissária, nem todos os negros imigrantes estão presos às grilhetas dos seus subsídios e cargos. Há nego fujão também, e os negros da plantação são mais numerosos do que os da Casa Grande.
Fechamos como abrimos deixando-‐a com as palavras de Kwame Ture (Stokely Carmichael) em 1967:
“Tínhamos a obrigação pela política, visto que os negros americanos são gente sem propriedade num país onde a propriedade sobreleva tudo. Tínhamos a obrigação de procurar obter o poder, visto que não são nem a moralidade, nem o amor, nem a não-‐ violência que fazem funcionar este país, mas sim o poder…”
Queremos Integridade, não Integração! E a Integridade está nas nossas mãos. Agradecemos por ter deixado isso bem escuro neste processo.