I. O PER: ONTEM E HOJE
1. Pré-‐textos e Contextos: segregação, academia e media
1.1 Da Produção da História: a Academia e os Media
A História é uma construção narrativa, um projecto sociopolítico de enquadramento e revisitação da realidade. Como tal, concorrem para a sua consolidação enquanto disciplina um conjunto de pensadores que densificaram correntes e perspectivas ao longo do tempo. É necessário considerar, no entanto, que a produção da história excede, em larga medida, as fronteiras do espaço
académico, coexistindo no sistema educativo, político e mediático, alargando, desta forma, o conjunto de actores que participam na construção da narrativa histórica (Trouillot, 1995). Se por um lado, esta polifonia permite antecipar a existência de diferentes interesses e perspectivas no estabelecimento dos termos do debate, convém não esquecer que devido à existência de uma matriz de pensamento dominante, pode admitir-‐se a existência de um denominador comum na diferença inerente às narrativas produzidas no espaço público. Acrescente-‐se ainda que da produção académica aos meios de comunicação social as representações ditas científicas, objectivas e neutrais ou mesmo aquelas que se admitem ficcionadas sobre a realidade foram fruindo no seio das sociedades modernas, consagrando-‐se ora como verdades absolutas ora como aproximações à realidade e, desta forma, constituindo argumentos e justificações ontológicas das sociedades contemporâneas e das suas políticas (Alves, 2012). É nesta linha que se considera que o discurso é iminentemente ideológico e produz posições (Hall, 1992), o que faz com que “o conhecimento não possa ser considerado uma ‘simples reflexão’ sobre o mundo exterior” (Wolf, 1999: 3), já que as ideias têm um papel fundamental no estabelecimento de relações de cooperação ou de conflito entre as pessoas (idem, ibidem: 4), fazendo com que o discurso e, em particular, o discurso público – tutelado pelas elites simbólicas (van Dijk, 2007) se constitua como um campo de batalha. Não obstante, “cada sociedade tem os seus regimes de verdade, a sua política geral de verdade”, isto é, “os tipos de discurso que aceita e operacionaliza como verdade” (idem), como se pode notar através dos discursos académicos e mediáticos. Em relação a ambos persiste, em parte, a ideia de que se limitam, através da instrumentalização do método e da objectividade, a analisar e a reportar uma verdade que provém directamente de um facto real (de um acontecimento). Ora, estas concepções ignoram o processo de recorte do real, contribuindo para a perpetuação de um ideia de neutralidade da produção do conhecimento e do consenso social (van Dijk, 1996). Este processo de produção de conhecimento constrói um conjunto de realidades que servem determinadas disposições de poder
(Alves, 2013). A produção do conhecimento está, portanto, num processo dialéctico entre metodologia e ideologia26 e é neste sentido que deve ser analisado.
A década de 90 é marcada pela abertura pública de um debate sobre a cidade, com especial ênfase nas condições habitacionais que existiam na periferia das grandes metrópoles de Lisboa e Porto, pautada por um discurso académico que reconhece a existência de áreas degradadas e segregadas fora do centro da cidade e que é desenvolvido, essencialmente, pelas disciplinas da Geografia, da Sociologia e da Arquitectura. Embora os estudos sobre Lisboa, uma cidade segregada, não se acumulem nas estantes das bibliotecas, a realidade é que houve sempre alguém que olhou para os acontecimentos e que discorreu sobre os mesmos. Uns optaram por sínteses históricas mais longas, a maioria optou por começar num tempo longo, num tempo de mudança. Cada um à sua maneira traçou as linhas da continuidade, a exposição dos acontecimentos. No caso específico dos bairros posteriormente abrangidos pelo PER, o recuo estava maioritariamente no tempo pós-‐PREC (Processo Revolucionário em Curso), um período que traduzia as consequências do pós-‐guerra, do final do colonialismo, do fim do fascismo e do início das guerras civis em Angola e Moçambique.
A vinda de pessoas dos países então independentes, lançava um novo conjunto de debates, nos quais a habitação parece não ter tido lugar, pelo menos imediato. No entanto, é certo que a vinda conjunta de cidadãos brancos e negros veio introduzir algumas alterações na geografia sociocultural das cidades, essencialmente de Lisboa, dado que grande parte destas pessoas se estabeleceram na AML (EUMC, 2003: 21). Este fluxos deram continuidade a outro processo em curso impulsionado pelo êxodo rural, nomeadamente, a edificação daqueles que seriam conhecidos como os bairros de génese ilegal. Alguns destes espaços seriam alvo de um processo excepcional de reconversão urbana – as AUGI (Lei nº 91/95, de 2 de Setembro), enquanto que outros seriam intervencionados no âmbito do PER.
26 Para um debate aprofundado sobre questões relacionadas com ideologia, consultar: Essed, 1991;
É com a pretensão de perceber os espaços de tempo e os acontecimentos que deram forma a estes espaços que se procurará estabelecer aqui um fio condutor – do passado ao presente – com especial ênfase na chegada e na consolidação dos anos 90 enquanto a década de reconhecimento e de intervenção sobre o que estava ocluso: a periferia e os bairros. Com isto espera poder sintetizar-‐se o contexto histórico, político, social e discursivo que antecede e caracteriza o período da implementação do programa PER.
Considerando que a visibilidade nem sempre é um fenómeno positivo (Brighenti, 2007), tentar-‐se-‐á traçar a história de algumas oclusões que teimam em permanecer no silêncio da tinta, das pontas dos dedos e da história, subtraídas ao debate sobre o passado e secundarizadas no presente.
Numa sociedade caracterizada pela celeridade da produção e pela importância do arquivo – na qual o conhecimento sempre assumiu um papel central – a imensa quantidade de trabalhos realizados jamais caberia na extensão do papel, por isso escolheu contar-‐se aqui uma narrativa abreviada da segregação espacial e residencial em Lisboa. Para tal, seguir-‐se-‐ão histórias escritas por outros, analisadas criticamente. Da síntese dos trabalhos editar-‐se-‐á uma espécie de história portátil de alguns dos acontecimentos que desenharam Lisboa até à actualidade, numa linha de discussão sobre a cidade segregada. A escolha dos autores revela não só a centralidade da sua produção mas também o facto de os seus trabalhos contemplarem a segregação espacial e residencial como um factor central na análise da construção do espaço. Simultaneamente, tentar-‐se-‐á perceber de que forma “raça” e racismo são contemplados enquanto categorias de análise, já que de acordo com as sociólogas Marta Araújo e Sílvia Maeso:
“(…) as theoretical reflections on ‘race’ and racism are quite marginal and linked to the differentiation between biological and cultural racism, on the one hand, and lacking a thorough discussion of the close relationship between routine forms of racialised governance and nation-‐formation, on the other hand, much academic work continues to focus on the opposing stereotypical representations of majority and minority groups. The sociological and political question is framed as one that is related to the
acceptance, understanding and recognition of the culturally different ‘other’. The state systems of bio-‐political administration are generally left out of the analysis or superficially mentioned as a problem concerning the gap between laws/policies and their effective application” (Maeso e Araújo, 2011: 27, ênfase minha).