II. SANTA FILOMENA: A MATERIALIZAÇÃO DE UM PROCESSO
1. Uma história de resistência
1.2. Os Moradores PER
Os finais de tarde assistem à chegada dos moradores do bairro a casa, testemunham a sua presença e as conversas na hora que antecede o jantar. A igreja tem gente no seu interior e a mesa onde se lançam as cartas ocupa o solo de outras contendas. Restam alguns moradores. Muitos dos primeiros a chegar são também os últimos a partir. Inscritos no Programa PER à data do único recenseamento no bairro, estes agregados têm direito ao realojamento. Sublinhe-‐se que algumas das famílias PER têm vindo a ser realojadas no decorrer de todo o processo mas, grosso modo, continuam a ser a maioria ainda presente no bairro. Muitas destas pessoas são portuguesas e negras, por naturalização, nascimento ou ambos. Desde Janeiro que têm vindo a receber correspondência da Câmara, alguns antes, até. São chamados a atendimentos onde lhes pedem documentação e propõem a casa que passará a ser sua mediante o pagamento de uma renda calculada a partir do rendimento do agregado. São propostas casas em Bairros de habitação social na Amadora como o Casal da Mira ou o Casal da Boba, são sítios longínquos dos seus percursos habituais, mas sobre isso não falam muito embora não escondam, quando questionados, a vontade de permanecer ali com a comunidade que construíram, nas ruas onde cresceram e envelheceram – isso sim, seria o ideal, ainda por cima se lhes permitissem ou auxiliassem o restauro das habitações construídas.
Apesar do desgosto pela saída do bairro, o grande problema face à proposta da Câmara e ao realojamento tem sido a rejeição da mesma em desdobrar os agregados familiares. Segundo os moradores acontece que a Câmara não equaciona a variável tempo uma vez que as crianças dos anos 90 são muitas delas pais e mães na segunda década de 2000: os agregados cresceram, desdobraram-‐se em novas pequenas famílias e exigem, hoje, a sua autonomia e a sua intimidade. Apesar disso a Câmara parece insistir em albergar num mesmo apartamento T4 (máximo) avós, filhos e netos. Os moradores rejeitam esta solução, argumentando que é necessário
actualizar o plano de realojamento de acordo com as necessidades actuais das pessoas e não realizá-‐lo atendendo a um passado que não existe.
Em desacordo com esta proposta, que ora desconsidera a hipótese de desdobramento ora procura excluir membros do agregado familiar porque estes embarcaram temporariamente em projectos de migração, os moradores têm declinado as propostas de realojamento das técnicas da Câmara:
“(...) que tinham lá uma casa, quatro assoalhadas mas eles só cabem lá se a Câmara retirar um elemento do agregado familiar e então estão a atacar um rapaz que viajou (...) durante dois ou três meses, não deve ter chegado aos três meses.. e agora regressou e a Câmara não quer... exclui-‐o do PER... vai exclui-‐lo do PER porque ele já não vive cá... É que tu já nem podes viajar... quando o próprio Primeiro Ministro está a dizer: “viajem!”. Estamos reféns do próprio Estado, não é? Não podemos sair porque se sairmos perdemos um direito que é nosso, eles até rezam para que isso aconteça” (Morador 1, 02/10/2013).
A Câmara, no entanto, argumenta que o desdobramento não é possível e perante esta situação tem procurado coagir os moradores a aceitarem o realojamento nos termos propostos. Tal tem correspondido ao envio de cartas que solicitam a presença dos moradores para a entrega das chaves da casa e da afixação de editais de aviso de demolição (Anexo XIII), o que parece figurar como uma forma de pressão para aceitação dos termos do contrato propostos pela CMA:
“... as pressões... que eu saiba, é no sentido de “Ou vêm buscar a chave ou
nos excluímos-‐vos do PER”... “ou vocês aceitam a casa, esta casa... esta casa... ou vêm buscar a chave” – vinha mesmo a falar das chaves – “ou vêm buscar a chave ou nós excluímos-‐vos do PER” (Morador 1, 02/10/2013). Assim, se no caso dos moradores não-‐PER a pressão parecia ser exercida através da documentação, aqui a casa e a tipologia da casa parece ser o centro da tensão. Neste sentido, uma das estratégias das famílias tem sido o acompanhamento dos pais por parte dos filhos:
“... cada jovem tornar-‐se dentro da sua própria casa o escudo para a família... e a sua própria casa, não deixar os pais irem sozinhos à Câmara (...)
Basta as técnicas criarem uma dúvida que eles podem ficar sem casa para eles aceitarem qualquer coisa. Que podem perder a casa e ficar na rua para eles aceitarem qualquer coisa...” (Morador 1, 02/10/2013).
A situação é agora de impasse, não se sabe o que acontecerá nem de que forma a Câmara procederá. Denote-‐se no entanto que é neste momento que as lutas dos moradores PER e não-‐PER se cruzam, não no tempo mas no propósito, uma vez que embora com objectos diferentes o problema é o mesmo: a desactualização de um programa e as assimetrias entre o programa e a sua aplicação, num contexto autárquico que parece ignorá-‐los como cidadãos de pleno direito. Sublinhe-‐se aqui a ligação entre a racialização dos bairros da Amadora que concorre para a criação da ideia de um corpo urbano poluído – radicado numa ideia de diferencial colonial – que parece personificar-‐se no corpo dos seus habitantes subalternizados na sua relação com e pelo poder político. O silêncio das instituições públicas, da provedoria da justiça, da classe política, dos intelectuais públicos e da sociedade maioritária, em geral, estabelece os termos da inexistência de um debate.
Enquanto a etnicidade é comercializada, agora, nas esplanadas do centro, a discriminação racial é silenciada na periferia. Quando muitos dos bairros sociais camarários co-‐existem já há algum tempo nas franjas da periferia de Lisboa e começa a haver um discurso de que a concentração não funciona, e numa altura em que o país se encontra financeiramente ainda mais constrangido que antes, a estratégia implementada pela Câmara Municipal parece ser a dispersão, essencialmente através da exclusão:
“Criaram a ideia de que os bairros sociais, a solução dos bairros sociais é uma má ideia, que não se devem criar mais bairros sociais porque dão problemas para depois, quando resolvessem avançar e demolir as casas as pessoas não pensarem “ai não, eles têm direito a um bairro.. a uma casa social... a um bairro social, devem ser deslocados”... não vão pensar porque vão pensar “ai não... eles dão problemas se fizerem isso e então o melhor é demolir as casas, vamos fechar os olhos e fingir que não estamos a ver, eh pá, que se lixem!” (Morador 1, 02/10/2013).
De acordo com um relatório da Câmara Municipal da Amadora, em Junho de 2013, o PER tinha já no Casal de Santa Filomena uma taxa de execução de 80,04%, traduzindo-‐se no realojamento de 229 agregados e na exclusão de outros 114 (Anexo XIV). Perante o processo de silenciamento do protesto e da imutabilidade do decurso da história os moradores experimentaram uma vez mais, depois de tantas, agarrar essa mesma história com as próprias mãos.