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Comunidade de fala, redes sociais e comunidade de prática

1.3 SOCIOFONÉTICA

1.3.3 Comunidade de fala, redes sociais e comunidade de prática

Neste estudo é considerado um grupo particular de falantes: indivíduos por alguma razão associados à prática delituosa, especificamente a relacionada ao tráfico de entorpecente e/ou a (tentativa de) homicídio(s), apresentando todos eles histórico de aprisionamento, seja em unidade de reabilitação socioeducativa27 ou em unidade prisional convencional, em razão de cumprimento de pena ou de prisão preventiva.

Tais indivíduos, apesar de nunca terem interagido comunicativamente entre si, solidarizam-se no emprego de comportamentos linguísticos tipicamente associados ao contexto de execução de crimes, entre eles, o referente ao uso de expressões cujo significado é de entendimento restrito ao grupo de usuários de drogas e/ou traficantes e a quem os investiga ou pericia, a exemplo: “partir o cara” significando assassinar alguém, “tá baixado” significando estar foragido, “fazer uma caminhada” significando fazer algo determinado por um superior (por exemplo uma entrega de drogas ou uma execução), “escolher um bicho” significando escolher um veículo, que será furtado ou roubado para cometimento de outros delitos, “escama” significando maconha, expressões rotineiramente observadas em gravações de diálogos mantidos entre criminosos.

Ao se considerar o critério de definição de comunidade apontado por Saville- Troike (2003), qual seja, o de compartilhamento de alguma significativa dimensão da experiência, pode-se aceitar a proposição de que, mesmo advindos de facções ou grupos criminosos distintos, os traficantes e, por vezes, consequentes homicidas, em razão da função em exercício (que requer compreensão rápida e maximamente limitada aos membros do grupo), desenvolvem uma linguagem própria, adaptada ao contexto laboral.

Na perspectiva sociolinguística tem-se difundida a noção de comunidade de fala, a qual, segundo Saville-Troike (2003, p.15, tradução nossa), está relacionada “ao modo com que os membros do grupo usam, valoram e interpretam a linguagem”.

Por conceito (GUMPERZ apud ROMAINE, 1980, p.13, tradução nossa), a comunidade de fala compreende “um grupo de falantes que compartilham um

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Dois dos sete sujeitos participantes desta pesquisa eram menores de idade e encontravam-se detidos na Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (FASE) do Estado do RS à época da gravação desavisada.

conjunto de normas e de regras referentes ao uso da linguagem”. Refere-se ao uso convergente de determinadas variáveis por uma dada comunidade, em razão de motivação social comum, essa considerada na organização dos significados linguísticos.

Para Romaine (1994, p.22, tradução nossa), uma comunidade de fala é:

Um grupo de pessoas que não necessariamente compartilham a mesma língua, mas que compartilham um conjunto de normas e regras a serem consideradas no emprego da linguagem. As fronteiras entre as comunidades de fala são essencialmente sociais e não linguísticas.

A composição das comunidades de fala considera fatores demográficos como gênero, idade, raça, etnia, classe social, local de trabalho (entre outros) ou observa uma população geograficamente definida (local de residência, região, etc). No entanto, há ao menos duas outras importantes abordagens de comunidades de falantes: as redes sociais e as comunidades de prática (MULLANY, 2007).

A abordagem de comunidade conhecida como redes sociais (MILROY, 1987) foca as relações sociais que falantes específicos mantêm entre si, examinando como tais relações afetam o comportamento linguístico desses locutores. A unidade de referência nessa abordagem é a força da rede, avaliada como densa ou leve (em decorrência da sucessão de contatos interativos entre os membros do grupo) e como única ou múltipla (em decorrência do número de ambientes de interação existente entre os pares).

No entanto, é a comunidade que se constitui a partir do exercício de uma atividade regular conjunta, a intitulada “comunidade de prática”, que melhor exprime a relação sociolinguística existente entre os participantes do presente estudo.

Segundo Eckert (2006, p.1)28, a comunidade de prática é “[...] um grupo de pessoas que recorrentemente se envolvem em algum empreendimento comum”. Para a autora, as comunidades de prática formam-se em razão de interesses ou posições sociais comuns aos falantes que a compõem, desenvolvendo esses “jeitos de fazer coisas, visões, valores, relações de poder, jeitos de falar” próprios.

Nessa abordagem, a prática linguística reflete a identidade que o falante constrói enquanto membro do grupo, identidade essa que guia o comportamento

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linguístico manifesto e que faz com que seja reconhecido como um falante típico, como o falante participante desta pesquisa, cujo padrão de fala é associado, no âmbito da criminalística, como sendo, entre outros, do traficante e/ou do homicida, o que, para Caldeira (2000) corresponde à “fala do crime”.

Da Hora (2008), ao analisar a problemática social da droga, destaca a autenticidade e os modos peculiares de construção da realidade encontrados nesse contexto social e aponta, ao discutir as interações locais socialmente construídas, a linguagem como um dos elementos marcadores do grupo.

Feitas as considerações teóricas julgadas relevantes à compreensão do desenvolvimento deste trabalho, assim como da discussão encaminhada em item próprio, segue, no próximo capítulo, a revisão de literatura relativa aos aspectos temporais da fala; à variabilidade, potencial individualizante e aplicação forense das taxas em estudo e à relação dessas com os possíveis fatores condicionadores.

2 SOBRE O TEMPO DE FALA

Neste capítulo será apresentada uma revisão de literatura sobre o tempo de fala. Na Seção 2.1 aborda-se a conceituação, classificação e contextualização das medidas comumente utilizadas para representá-lo e a problemática que permeia a sua investigação. A Seção 2.2 contém informações referentes à variabilidade das taxas temporais estudadas (TE e TA), ao respectivo potencial individualizante (de indivíduo) e à aplicação forense de tais medidas.