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2. Áreas naturais protegidas: dos conflitos à gestão participativa

2.4 Áreas protegidas e populações humanas

2.4.2 Comunidades Tradicionais

No Brasil alguns povos classificados por “tradicionais”, como os índios e quilombolas, tiveram seus direitos resguardados na constituição de 1988. O mesmo caminho estava sendo trilhado pelos seringueiros, que deram surgimento à Aliança dos Povos da Floresta, fruto dos movimentos liderados por estes trabalhadores, que iniciaram o caminho de lutas das comunidades tradicionais (CUNHA, 2009, p. 285).

Segundo Manuela Carneiro da Cunha (2009), as comunidades tradicionais passam por um processo de intenso paradoxo, pois eram consideradas entraves para o desenvolvimento; mas agora são “candidatas à linha de frente da modernidade”. Outro ponto de destaque é que as comunidades indígenas, antes discriminadas, tornaram-se referência de lutas para os povos despossuídos de direitos, no caso da região amazônica. Para a construção deste raciocínio, a autora aponta dois mal-entendidos. Um deles é a indagação se seria “o compromisso para com a preservação, as preocupações ecológicas sobre um ‘bom selvagem’ construído ad hoc”. Outro equívoco, continua a autora, é assegurar que Ongs e ideologias estrangeiras criaram tal conexão entre povos tradicionais e conservação (CUNHA, 2009, p. 277).

Esta autora aponta as dificuldades de se definir as populações tradicionais, já que fazê-lo como “adesão à tradição” seria contraditório com os conhecimentos antropológicos atuais. Determinar que estas impactem muito pouco ao meio ambiente, afirmando que são ecologicamente sustentáveis, é “tautologia”, pois “há quem as denomine como ecossistem people”, diz Vianna (2008, p.210). Colocando-as fora do mercado, dificulta-se encontrá-las hoje (CUNHA, 2009, p.278).

No entanto, a autora propõe uma definição que chama de analítica:

[...] populações tradicionais são grupos que conquistaram ou estão lutando para conquistar (prática e simbolicamente) uma identidade pública e conservacionista que inclui algumas das seguintes características: uso de técnicas de baixo impacto, formas equitativas de organização social, presença de instituições com legitimidade para fazer cumprir suas leis, liderança local e, por fim, traços culturais que são seletivamente reafirmados e reelaborados (CUNHA, 2009, p. 300).

Ao observar o histórico dos povos tradicionais, percebe-se que o conceito de “população tradicional” foi forjado de modo a naturalizá-los, como se refere Vianna (2008). E esse processo se inicia em meados de 1980, com a relevância da sociodiversidade e o advento do socioambientalismo. Forma-se a partir daí uma aliança representativa entre parte do movimento ambientalista e populações tradicionais. Podem nem todos os membros de uma comunidade ser “conservacionistas natos”, mas há os que resguardam vasto conhecimento sobre suas realidades, aponta Diegues (2004). O fato é que os povos tradicionais estão na vanguarda dos movimentos que tentaram mudar as políticas em UC.

Para Vianna (2008) o termo foi construído no contexto das Unidades de Conservação, a partir da década de 1990, ressaltando a “harmonia” desses povos com a natureza. Porém, a autora alerta que alguns fatores presentes nestas populações, como mobilidade e territorialidade, entram em choque com diversos preceitos das Unidades de Conservação (VIANNA, 2008). A mobilidade era um fator historicamente presente para a reprodução socioeconômica e cultural, e suas causas eram: casamento, atividades econômicas, sociabilidade, questão fundiária, entre outros pontos (VIANNA, 2008).

E quem se caracteriza como populações tradicionais? No Brasil há uma diversidade: caiçaras, caipiras, babaçueiros, jangadeiros, pantaneiros, pastoreios, praieiros, quilombolas, caboclos/ribeirinhos amazônicos, ribeirinhos não-amazônicos, varjeiros, sitiantes, pescadores, açorianos, sertanejos/vaqueiros, entre outras, são alguns exemplos (DIEGUES, 2001). Estes povos tradicionais, também chamados de não-indígenas, possuem semelhanças em suas

organizações sociais, constroem representações e símbolos que compõem seus meios e desenvolvem seus saberes de acordo com seus contextos.

Para Diegues (2001) tais povos “desenvolveram modos particulares de existência, adaptados a nichos ecológicos específicos”, havendo ênfase no apoio mútuo, já que seus modos de vida são baseados em “cooperação social e formas específicas de relações com a natureza”, com base no “manejo sustentado do meio ambiente” (DIEGUES, ARRUDA, 2000, p. 22). Historicamente, estes povos se desenvolveram à margem dos muitos ciclos econômicos que ocorreram na história brasileira, frutos da miscigenação entre colonos portugueses, índios e negros, distribuindo-se pelo território brasileiro (DIEGUES, 2004).

Atualmente verifica-se a necessidade em estabelecer políticas públicas que ajudem a promover e estimular o desenvolvimento destas comunidades. Como observa Diegues (2001), esta atitude tem relevância para o desenvolvimento da prática de participação social. Para Diegues e Arruda (2000) as “sociedades tradicionais” são:

[...] grupos humanos culturalmente diferenciados que historicamente reproduzem seu modo de vida de forma mais ou menos isolada, com base em modos de cooperação social e formas específicas de relações com a natureza, caracterizados tradicionalmente pelo manejo sustentado do meio ambiente. Essa noção se refere tanto a povos indígenas quanto a segmentos da população nacional que desenvolveram modos particulares de existência, adaptados a nichos ecológicos específicos (DIEGUES, ARRUDA, 2000, p. 22).

No ano de 1989, foi aprovada a Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). Em 2002, o Brasil ratifica e assume o compromisso como signatário da convenção de proteção às populações tradicionais. O desdobramento maior ocorre em 2007, quando estas comunidades foram contempladas por uma legislação específica com a promulgação do Decreto Nº 6.040/2007, em 7 de fevereiro de 2007, que visou instituir uma política nacional para estas comunidades. No que tange às definições, o que assegura direitos aos povos tradicionais estabelece uma concepção em que podemos destacar o fator “auto-reconhecimento”, tanto de “si”, como dos “outros”:

Povos e Comunidades Tradicionais: [são] grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (BRASIL, 2007).

O Brasil tem sido um dos países com maiores registros de conflitos socioambientais, que não ficam restritos ao seu interior. É certo que as regiões do centro-oeste e Amazônia despontam em registros de violência fundiária, que são frequentes nos noticiários de diversas

mídias. Mas, além destas áreas, a região litorânea brasileira, área habitada por muitas comunidades pesqueiras, tem sido campo de embates por recursos naturais.

O vale do Ribeira, sudoeste do Estado de São Paulo, apresentando os maiores remanescentes de mata Atlântica do Estado, é um local marcado por conflitos territoriais, onde a disputa pelos recursos naturais coloca de um lado interesses sociais versus interesses econômicos. Comunidades desta região se unem contra a construção de barragens ou legislações ambientais estritamente “preservacionistas”. No caso da Juréia, o embate ideológico tem como baluartes os ambientalistas paulistas, constatado por Ferreira (2012) e Queiroz (1992). Nos trabalhos destes autores, é perceptível que tal grupo é o principal influenciador nas decisões da região, tanto na formalização das leis, quanto na execução das áreas protegidas. Resumidamente, são quem influenciam e que decidem.

Além do fato histórico da centralização do poder no Brasil (SANSOLO, 2009), é importante também observar que o estado paulista atua de modo defensivo, freando constantemente a participação local. E o que sobressai, no pano de fundo desta discussão, é também a questão territorial. A maior representante das comunidades da Juréia, a União dos moradores da Juréia, tem buscado diversos apoios, entre eles parceiros da academia, para construir argumentos que comprovem uma presença histórica dos povos tradicionais na região.